Saint-Denis, minuto 109: Éder enquadra-se com a baliza, enche o pé direito e com a força de um país inteiro chuta para a eternidade.

Dois minutos antes, aquando do livre de Raphaël Guerreiro, ele havia apontado para os céus, como que a pressentir algo. Quatro minutos antes, aquando do intervalo do prolongamento, ouvia de Cristiano Ronaldo, capitão fora de combate, a premonição de que ele mesmo havia de marcar o golo.

Assim aconteceu. Éder passou de contestado a herói improvável de uma nação inteira. Ou de «patinho feio a bonito», nas palavras de Fernando Santos. Assim começou a festa em todo o mundo português. Festa no Bairro da Ajuda, em Bissau, que Éder deixou aos três anos, quando os pais decidiram emigrar para Portugal. Festa em Alcarraques, nos arredores de Coimbra, no lar «O Girassol», que foi a casa do novo herói nacional entre 1998 e 2007. Festa por todo o lado.

Isabel Ferreira, funcionária da instituição há 21 anos, conta que assim foi e como «duplamente feliz viveu aquele momento inesquecível».

«Um irmão que vive noutra casa» para os meninos do lar

«Gostamos muito dele. Nunca nos esqueceu, nunca nos ignorou, mantém contacto connosco e com os meninos, que ficam eufóricos quando ele vem cá. Dá-lhes conselhos… É um exemplo para eles. O último rapaz do tempo dele saiu da instituição há meses. Ainda assim, mesmo sem terem convivido com ele, os restantes que cá estão consideram-no como um irmão mais velho que agora vive noutra casa», conta Isabel Ferreira ao Maisfutebol, recordando em seguida aquele rapaz humilde e de sorriso rasgado era uma criança que nunca deu grande trabalho: «Era muito meigo com os colegas. Quando havia um miúdo que se zangava com outro, lá aparecia ele para apaziguar.»

Partiu uns vidros a jogar futebol? Sim. «Mas hoje partem-se ainda mais, que os miúdos agora jogam junto à frontaria do edifício», conta Isabel. Além disso, Éder também ganhou umas febras, prometidas pelo homem do talho por cada golo quando ele começou a dar os primeiros pontapés na bola na Associação Desportiva e Cultural Adémia, clube onde fez toda a formação. No final da época, juntava todos os colegas de equipa e cobrava a dívida. Juntos davam conta das febras todas de uma só vez.

Seguiu-se a primeira época como jogador sénior no Tourizense. Aí, Luís Diogo, treinador adjunto de Ljubinko Drulovic, cruzou-se com o jovem aspirante a goleador em 2006/07, quando ele tinha 19 anos, numa equipa onde estavam outros jovens que viriam a fazer carreira no futebol – como Steven Vitória, hoje no Philadelphia Union, da MLS norte-americana, Gonçalo Santos, do Dínamo de Zagreb, ou Zequinha, agora no Arouca. Não demorou a tirar-lhe a pinta.

«Diamante em bruto» lapidado em Touriz

«Apareceu em Touriz levado pelo padre, que era o tutor e o responsável por ele e pela gestão da carreira dele (tentámos falar com o padre Francisco Serra, que se encontra em recuperação de um AVC). Era um rapaz acanhado, muito humilde, educado e com uma predisposição enorme para trabalhar. Com o tempo, ele foi crescendo, integrando-se no grupo. Logo nos primeiros treinos, vimos o potencial físico que ele tinha. Era diferente de todos os outros: alto, possante; ajudava-nos muito nas bolas paradas… Era um diamante em bruto, que tinha de ser lapidado. Naquele campeonato da II B e para aquele tipo de jogo tinha as características ideais para nos ajudar. Além disso, mostrava outras caraterísticas que foi apurando com a idade, como uma extraordinária força mental.»

Ederzito António Macedo Lopes já tinha a alcunha de Éder, mas nessa altura ganhou outra, ainda antes de o apodarem de «Ederbayor» quando na Académica e no Sp. Braga o comparavam ao ponta-de-lança togolês. «Se o João Tomás era o "Jardel de Coimbra", o Éder passou a ser o "Jardel de Touriz"». Chamávamos-lhe isso por brincadeira, mas a verdade é que ele durante a época fartou-se de marcar golos», recorda Luís Diogo, antes de fazer um pedido: «Pode mandar-lhe um forte abraço de parabéns? A ele e aos outros jogadores, à equipa técnica e ao staff da federação. Merecíamos isto há muito tempo…»

Nos tempos do Tourizense, da II Divisão – Série C, o ponta-de-lança que na última época trocou o Swansea, da Premier League, pelos franceses do Lille ganhava 400 euros por mês. «O que fazia com os primeiros salários? Dei parte à minha mãe, e como o dinheiro era necessário no dia-a-dia gastava-o em coisas essenciais», contou o próprio em entrevista ao Maisfutebol, em maio de 2013.

Saint-Denis, minuto 109: um chuto para a eternindade

No Tourizense, já Luís Diogo achava que «Éder ia vingar no futebol profissional». Já Isabel Ferreira não tinha ideia do que o futuro daquele menino guineense iria ser. Até que um dia, quando ele estava prestes a deixar o lar, lhe fez precisamente essa pergunta.

«Estávamos a falar sobre o futuro dele e ele disse-me: "Um dia ainda vou jogar com o Cristiano Ronaldo". Pensei que ele estava a brincar, que era uma espécie de desabafo ou de ambição distante. Só com o passar do tempo percebi que aquele era o sonho da vida dele e que era mesmo para ser levado a sério. É uma excelente opção para a posição, além do André Silva e do Gonçalo Paciência, outros pontas de lança de qualidade fantástica».

Éder estreou-se na seleção em setembro de 2012, mas o seu sonho só viria mesmo a concretizar-se da melhor forma possível domingo à noite, quando com um pontapé fez a França tombar com estrondo e Portugal subir ao topo da Europa.

Em Saint-Denis; ao minuto 109. Dois minutos depois de apontar para o céu, quatro minutos depois de ouvir a premonição do capitão fora de combate, Éder enquadrou-se com a baliza, encheu o pé direito, chutou para a eternidade… E fez o ídolo Cristiano Ronaldo e um país inteiro chorar. De alegria, finalmente.