22 de fevereiro de 2023.

O dia fica para a história do futebol português: pela primeira vez, a Seleção Nacional apurou-se para o Mundial de futebol feminino. A data aparece sublinhada, como se impõe, mas é só isso, uma data. Ou melhor, um marco.

Não é seguramente o início nem o fim de nada.

O início, de resto, foi há trinta anos: em 1993, quando Carlos Queiroz comandava toda a estrutura das seleções nacionais e cumpriu a ambição de recuperar uma seleção feminina.

«Quando voltei dos Estados Unidos, o Carlos Queiroz quis conhecer-me e encontrou-se pessoalmente comigo, com a intermediação do Toni, que fez a ligação entre os dois. Encontrámo-nos duas ou três vezes, começámos a conversar e percebi que estava ali uma pessoa extremamente culta. Falou-me do hóquei no gelo, da NBA, enfim, dos desportos que eu conhecia bem na altura porque tinha vivido nos Estados Unidos», conta António Simões.

«Nessa altura, ele convidou-me para ir trabalhar para a Federação e disse-me: Para já não tenho forma de o colocar a trabalhar comigo, mas vou lançar a seleção de futebol feminino e quero que seja o selecionador. Depois, quando houver oportunidade, vem trabalhar comigo

António Simões tinha acompanhado de perto o crescimento da seleção feminina dos Estados Unidos, que no espaço de dez anos se tornou campeã do mundo e uma referência na modalidade. O magriço aceitou por isso desafio e tornou-se assim o primeiro selecionador do novo ciclo da equipa nacional.

Na verdade, a seleção feminina já tinha tido uma experiência anterior. Entre 1981 e 1983 surgiu pela primeira vez e realizou um total de oito jogos. Com a chegada de Silva Resende à Federação, porém, a seleção foi descontinuada e durante dez anos não existiu.

Por isso em 1993 foi necessário fazer um trabalho completamente do zero.

«Nada tinha sido feito e tivemos então que realizar um levantamento do que existia e que era muito pouco. Havia cerca de 500 jogadoras na altura», sublinha António Simões.

«Não tínhamos conhecimento nenhum das jogadoras, não tínhamos referências, nada, nada, nada. O que fizemos foi contactar os departamentos técnicos das associações distritais e cada um indicou algumas jogadoras que podiam jogar na seleção.»

A equipa técnica juntou então 66 atletas num estágio de observação no Estádio Nacional, durante o qual colocava as jogadoras em equipas diferentes, a jogar umas contra as outras, de forma a perceber quais eram as melhores para fazer parte da seleção.

«O futebol feminino era algo desprezível para o futebol português. Levantavam-se ainda muitos obstáculos à emancipação da mulher. Confrontei-me com uma sociedade muito conservadora, que não queria que as mulheres jogassem: o futebol era só para os homens. Havia muito poucos clubes, muito poucas jogadoras.»

«Quando comecei a jogar na minha terra, com nove anos, jogava com as seniores»

O futebol feminino em Portugal vivia muito da paixão de quem o alimentava.

Maria João Xavier foi uma dessas atletas que esteve no primeiro estágio de observação no Estádio Nacional em 1993. Ela jogava no Trajouce, que cedeu nove jogadoras ao estágio, mais do que o campeão Boavista (oito) e menos que o Sporting (dez).

No final, Maria João Xavier não ficou no grupo de 25 atletas que ia iniciar a fase de apuramento para o Euro 95, na Alemanha. Ficou com o coração despedaçado, mas nem isso a impediu de viajar para Faro, para ver o regresso da seleção, num particular com a Suécia.

«Muitos dos espectadores no São Luís eram jogadoras e ex-jogadoras. Eu era uma delas. Não fui selecionada para o grupo final de 25 e reconheço que estava bastante desanimada nesse dia, mas nada disso era importante comparado com a emoção de ver a Seleção Nacional voltar novamente ao ativo. Finalmente, o sonho tinha-se tornado realidade», confessou.

António Simões diz que criar a seleção feminina em 1993 foi a mesma coisa que «ensinar uma criança a andar».

«Havia reservas sobre aquilo que devia ser o investimento no futebol feminino. Com a ajuda do Carlos Queiroz, que tinha força dentro da Federação, conseguimos realizar estágios pontuais. Nesses três anos houve uma evolução fantástica. Fomos ganhar à Escócia, fomos ganhar à Itália, que era vice-campeã do mundo, surgiu por exemplo a Carla Couto», adianta.

«Eu na altura até disse que a mulher era igual ao homem, salvando as respetivas diferenças. O que é que isto queria dizer? Que a mulher também pode jogar bem futebol. Hoje sou um homem feliz porque se ultrapassaram uma série de preconceitos. Levou trinta anos? Não interessa. Para quem questiona o futebol feminino em Portugal, está aí a resposta. Esta gente está toda de parabéns.»

Maria João Xavier não esteve nessa primeira convocatória, como já se disse, mas foi chamada logo a seguir, em fevereiro, e fez a estreia frente à Espanha em Chaves.

Depois brilhou no 1º de Dezembro, somou quase 80 internacionalizações, voltou ao Sporting com funções diretivas e acompanhou sempre de perto a evolução do futebol feminino.

«Eram tempos diferentes, de desbravar caminho, de pequenas conquistas estágio após estágio. Felizmente as mentalidades mudaram», conta.

«As condições que tínhamos nos clubes eram quase sempre conquistadas pelas jogadoras. Por exemplo, a equipa feminina era a última a treinar, porque as jogadoras estudavam ou trabalhavam, e mesmo assim ainda tinha de dividir o campo durante um período do treino.»

A antiga jogadora lembra que nessa altura, no início dos anos noventa, mesmo a seleção masculina não era o que é hoje. Tanto assim que só tinha três presenças em fases finais. As coisas só começaram a mudar com a Geração de Ouro, após uma aposta forte na formação e a criação de torneios como o Lopes da Silva, fundamentais para desenvolver as seleções jovens.

«O trajeto das seleções femininas é idêntico, mas com anos de atraso. Comparando com as condições atuais, as dificuldades eram enormes e os obstáculos surgiam constantemente. Mas a vontade era maior a isso tudo. Para dar um exemplo, quando comecei a jogar futebol, na minha terra, com nove anos, jogava com seniores. Isso agora seria impensável», conta Maria João Xavier.

«E isso sim, deve-se à mudança da direção da FPF em 2011. A anterior direção não tinha nenhum plano estratégico para o desenvolvimento do futebol feminino. É já com esta direção que se dão os grandes saltos qualitativos, com a criação das seleções mais jovens. Potenciaram-se os TIA (torneios inter-associações), as associações começaram a apostar em competições femininas de escalões mais jovens, apareceram escalões de formação para idades cada vez mais precoces e surgiu competição nesses escalões.»

O que é que o apuramento para o Mundial pode mudar no futebol feminino em Portugal?

A antiga jogadora, hoje com 51 anos, lembra que foi já na direção de Fernando Gomes que as seleções femininas conseguiram atingir as maiores conquistas.

A qualificação para a fase final do Euro sub-19, em 2012. A qualificação para a fase final do Euro sub-17, em 2013. O início de atividade de seleções sub-16 (2014) e sub-15 (2017). A qualificação para a fase final dos Euro 2017 e Euro 2022.

E agora, por fim, o apuramento para a fase final do Mundial 2023.

Aqui chegados, e porque este não é um texto sobre história, interessa pensar no que se segue. Ou colocado de outra forma, o que é que o apuramento para o Mundial pode mudar no futebol feminino em Portugal?

Ora o Maisfutebol consultou dez personalidades que trabalham no futebol feminino para lançar uma espécie de debate e promover uma reflexão sobre o que se pode seguir.

Acima de tudo, surge uma ideia: este feito pode ajudar a profissionalizar a Liga Feminina.

Francisco Fardilha, diretor geral do Bayern Munique, diz por exemplo que «as jogadoras nacionais têm cada vez mais visibilidade e mercado a nível europeu e mundial (também pela montra que representam as participações na Liga dos Campeões feminina)».

«Se não houver um aumento do investimento dos clubes portugueses nas secções femininas, haverá cada vez mais dificuldades em segurar os maiores talentos, uma vez que as Ligas de outros países vão-se tornando profissionais e melhorando as suas condições a nível contratual, de competitividade e de infraestruturas. Por isso acredito que este Mundial vai acelerar o processo de profissionalização da Liga Portuguesa.»

A maior parte das personalidades consultadas fala, no entanto, noutra urgência: mudar mentalidades. Afinal de contas, esse ainda é o grande obstáculo para que surjam mais jogadoras.

«Acho que o que pode mudar mais é sobretudo a forma como o público em geral vai passar a olhar para o futebol feminino», diz o antigo selecionador Nuno Cristóvão.

«Feitos como este ajudam sobretudo a mudar mentalidades. Acredito que o país ficará cada vez mais aberto a que as meninas, as raparigas e as mulheres possam sonhar e alcançar tudo o que quiserem. No desporto e na sociedade», adianta a internacional Mónica Mendes.

Mas vamos então ao debate.

«As pessoas que trabalham no futebol feminino são apaixonadas pelo seu trabalho»

Milene Ramos, treinadora de futebol feminino no EPS (Finlândia)

«Feito fantástico! Fiquei muito emocionada. Ser mulher no desporto em Portugal implica desigualdade, daí ter saído do meu país em 2018 para evoluir como treinadora, mas acima de tudo como pessoa. O futebol feminino tem vindo, pelo seu pulso e a muito custo, a ganhar estatuto, espaço e, pode dizer-se, respeito. Atualmente é visto, acompanhado, comentado, noticiado e tem tido espaço em diretos na televisão. Esta situação era impensável há uns anos. Ainda existe muita coisa para fazer, mas o melhor de tudo é que os alicerces estão bem firmes. A Federação, as associações e os clubes têm efetuado um excelente trabalho. Também fui jogadora, não recebíamos nada, tínhamos de gastar o que não tínhamos e mesmo assim dávamos tudo de nós quando pouquíssimas condições nos facultavam. Para essas mulheres, este feito agora conseguido pela Seleção Nacional é extraordinário. Neste momento, pode ser-se jogadora profissional em Portugal. Quando eu comecei, só era possível no estrangeiro. Não é fácil mudar mentalidades, mas a mulher é tão importante quanto o homem. Temos de começar a olhar para as mulheres na mesma perspetiva e há espaço para nós, mulheres, tanto no futebol feminino como no masculino. Estamos no caminho certo. O futebol feminino é o que mais pode crescer em Portugal, se houver vontade de quem manda. Espero que o número de jogadoras continue a crescer a cada ano e que os clubes de topo invistam mais, tanto em infraestruturas como em recursos humanos. As pessoas que trabalham no futebol feminino não são só competentes, como também são apaixonadas pelo seu trabalho e sentem-se motivadas para fazer evoluir a competição feminina. Viver no estrangeiro, sendo treinadora de futebol, e ver este feito da nossa seleção deixa-me muito emocionada. Grande orgulho!»

«Que esta qualificação mude de vez as mentalidades»

Raquel Infante, jogadora do Famalicão e internacional portuguesa

«Esta merecida qualificação para o Mundial é como uma porta que se abre para maior visibilidade do futebol feminino português. Que este grande feito desperte o interesse a jogadoras estrangeiras de querer disputar o nosso campeonato e que o nosso campeonato seja valorizado pelos meios de comunicação, valorizando não só a seleção principal, como todas as competições de futebol feminino. Espero também que esta qualificação mude de vez as mentalidades em relação ao futebol feminino.»

«Que a qualificação possa acelerar o processo de profissionalização da Liga Portuguesa»

Francisco Fardilha, diretor geral do futebol feminino do Bayern Munique

«Esta qualificação é fruto de um trabalho de muitos anos e de uma aposta clara da FPF no futebol feminino. Jogadoras, staff, dirigentes e, claro, os clubes também estão de parabéns. Penso que a qualificação poderá acelerar o processo de profissionalização da Liga Portuguesa. Isto porque as jogadoras nacionais têm cada vez mais visibilidade e mercado a nível europeu e mundial (também pela montra que representam as participações na Liga dos Campeões feminina). Ora, se não houver um aumento do investimento dos clubes portugueses nas secções femininas, haverá cada vez mais dificuldades em segurar os maiores talentos, uma vez que as Ligas de outros países vão-se tornando profissionais e melhorando as suas condições a nível contratual, de competitividade e de infraestruturas. Finalmente, acredito que esta qualificação pode inspirar mais meninas e mulheres para que acreditem que é possível fazerem carreiras profissionais, não só como jogadoras mas também como treinadoras, árbitras ou dirigentes.»

«Esta conquista é uma vitoria de várias gerações»

Filipa Galvão, antiga jogadora e internacional jovem portuguesa

«Antes de mais tenho de parabenizar todas as atletas e staff envolvidos nesta excelente conquista, que é uma vitoria de várias gerações e um abrir de portas para as gerações futuras. Estas vitórias históricas dão mais visibilidade à modalidade e fazem com que se olhe para o futebol feminino de forma ainda mais atenta. A modalidade tem evoluído bastante nestes últimos anos, Portugal já se apurou duas vezes consecutivas para o Europeu e agora este apuramento para o Mundial foi a cereja no topo do bolo.»

«Os clubes vão seguramente ter mais condições para apostar no futebol feminino»

Luís Andrade, treinador da equipa feminina do Flamengo

«Em primeiro lugar tenho de dar os parabéns a todas as jogadoras que estiveram envolvidas no processo e dar também uma palavra de apreço para todo o staff, e sobretudo para o selecionador. Este apuramento vem engradecer o futebol feminino e ajudar a que a Federação possa investir ainda mais no futuro. A Federação merece também receber os parabéns, porque fez tudo para que este sucesso fosse possível. Acho que a partir de agora vão aparecer mais jovens a querer jogar e os clubes vão seguramente ter mais condições para apostar nesta modalidade. Aliás, os clubes merecem também as felicitações, sobretudo os clubes que já têm condições para tornar profissionais as suas atletas. Espero que no futuro mais clubes possam seguir este exemplo e valorizar as jogadoras, para que elas não tenham de ter dois ou três empregos para poderem jogar. Parabéns a nós, parabéns a Portugal.»

«O país ficará cada vez mais aberto a que as meninas, as raparigas e as mulheres possam sonhar tudo o que quiserem»

Mónica Mendes, jogadora do Servette e internacional portuguesa

«A qualificação para o Mundial é espetacular, é um marco histórico na evolução do futebol feminino. Este é o quarto marco histórico que Portugal atingiu nos últimos dez anos e isso diz muito do que tem sido a evolução do futebol feminino. O número de jogadoras tem aumentado, os clubes têm investido mais de uma maneira geral e isso tem sido muito importante para o crescimento das jogadoras portuguesas e do papel da mulher no desporto em Portugal. Feitos como este ajudam sobretudo a mudar mentalidades. Acredito que o país ficará cada vez mais aberto a que as meninas, as raparigas e as mulheres possam sonhar e alcançar tudo o que quiserem. No desporto e na sociedade. Fico muito feliz e espero que seja a primeira de muitas qualificações para o Mundial na nossa história.»

«Pode mudar a forma como o público olha para o futebol feminino»

Nuno Cristóvão, ex-selecionador nacional feminino

«Na minha perspetiva, este apuramento para o Mundial é mais um passo na consolidação do desenvolvimento do futebol praticado pelas mulheres e raparigas em Portugal.  O que poderá mudar no futuro? Acho que sobretudo o que pode mudar mais é a forma como o público em geral vai passar a olhar para o futebol feminino. Eventualmente vai acreditar que o futebol feminino tem qualidade e capacidade para jogar com seleções de um patamar superior.»

«Este feito representa muitas gerações de raparigas e mulheres»

Solange Carvalhas, jogadora do Racing Power e internacional portuguesa

«A presença de Portugal num mundial é histórico, nunca tinha acontecido e é um feito que representa muitas gerações de raparigas e mulheres. Sem dúvida que a partir deste Mundial, independentemente de como corra, Portugal vai começar a ser visto como uma seleção de topo e a ser mais respeitado. Portugal e principalmente as jogadoras portuguesas vão ser mais valorizadas e vão ver abrir-se-lhes ainda mais portas em campeonatos mais competitivos. Acredito que esta presença significa a luta de várias gerações ao longo de muitos anos, não só desta, e que finalmente estamos a ter os louros.»

«As miúdas vão acreditar que vale a pena sonhar»

Maria João Xavier, ex-jogadora e internacional portuguesa

«O apuramento para o Mundial é o culminar de décadas de trabalho e de quem sempre acreditou - especialmente desta direção da FPF, com o trabalho que tem feito desde 2011 -, tendo sido conquistada, com todo o mérito, pela geração atual. Este feito histórico, depois de dois apuramentos consecutivos para os Europeus de 2017 e 2022, vai potenciar o aparecimento de cada vez mais raparigas a querer jogar futebol. As miúdas vão acreditar que vale a pena sonhar e vão querer chegar um dia ao mesmo patamar desta geração. Vai colocar novos desafios aos clubes de forma a reter todas as raparigas que queiram jogar futebol e vai obrigar, adicionalmente, a incrementar as condições que são oferecidas atualmente. A exigência vai aumentar. A presença no Mundial vai promover a visibilidade do futebol feminino português, algo ainda distante do que merece. A estreia será apadrinhada pela campeã e vice-campeã do mundo em título. O que mais se pode desejar? Sonhar e voar alto.»

«Merecemos esta valorização e reconhecimento»

Cláudia Neto, jogadora do Sporting e internacional portuguesa

«Sinto-me extremamente feliz e orgulhosa por este apuramento histórico. É aqui que Portugal merece estar, entre as melhores seleções do mundo. Espero que este apuramento sirva para impulsionar cada vez mais a modalidade, merecemos essa valorização e reconhecimento.»