Uma boa maneira de colocar as coisas é dizer que António Silva joga com cara de serial-killer: sempre sério, impenetrável, austero. Parece um miúdo insensível a qualquer tipo de emoções.

Mas isso pode ser demasiado agressivo, até mesmo tratando-se de uma metáfora, por isso é mais razoável ir buscar o clã Shelby, da série Peaky Blinders, e fazer a comparação com o patriarca da família, o também pragmático e frio Thomas Shelby.

Antes de continuarmos a olhar para António Silva, vale a pena recordar do que se trata.

Agora que já não há dúvidas, vale a pena dizer que António Silva parece aos 19 anos já ter passado por todas as experiências do mundo: a espionagem na Guerra Fria, a paternidade, o naufrágio do Titanic e a violência de um encontro com o monstro de Loch Ness.

Que outra explicação pode haver para aquela firmeza, aquela impassividade, aquela confiança?

O jogo frente à Coreia do Sul, por exemplo, começou com imagens do túnel de acesso ao relvado e lá estava António Silva: cara fechada, concentrada, fixa. Seguiu-se o protocolo do hino e o central, entalado nos abraços de Diogo Dalot e Ruben Neves, mantinha a expressão.

Ali não havia o mínimo sinal de nervosismo. Nem, já agora, qualquer outra emoção.

Sempre bem posicionado e a recuperar bolas

O jogo começou e logo aos 22 segundos António Silva fez questão de marcar diferenças: entrou duro sobre um adversário e fez falta. Durante o jogo todo só haveria de fazer outra falta, aliás.

Aos dois minutos, saiu com a bola e lançou João Mário, recebeu de volta, tocou com Pepe, deu para Vitinha, devolveu a Pepe. Aos cinco, Ricardo Horta abriu o marcador e António Silva foi calmamente celebrar o golo com o grupo. Um abraço coletivo e voltou para trás a passo.

Aos sete minutos aliviou de cabeça pela linha lateral, aos nove minutos, e sem linhas de passe, fez um passe longo para Dalot, aos onze minutos, e por duas vezes seguidas, saiu com a bola em condução e jogou para a frente.

Colocado como central mais à esquerda, abriu muitas vezes quase encostado à linha, lançando Cancelo para o ataque. Do outro lado, Pepe tinha uma posição mais fixa, mais central, o que dava ao jovem a possibilidade de sair mais vezes a jogar.

Aos 12 minutos saiu muito rápido a pressionar Jae-Sung e impediu a saída perigosa da Coreia, aos 24 minutos apertou Gue-Sung numa bola aérea e Portugal recuperou a bola. Um minuto depois e apertou outra vez Gue-Sung noutra bola área, o que obrigou a Coreia a sair da área.

João Félix tentou arrancar-lhe um sorriso (e conseguiu)

Sempre sério, sempre concentrado, completamente impenetrável.

Na noite em que se tornou o mais jovem português de sempre a jogar num Mundial, batendo um recorde com mais de 35 anos do mítico Paulo Futre, parecia quase um veterano.

Aos 27 minutos, talvez a maior mancha do jogo. Kim Young-Gwon fez o golo do empate e no início da jogada era António Silva que estava mais próximo dele. O central parece, no entanto, ser traído pelo ressalto da bola em Cristiano Ronaldo.

O golo adversário não abalou o central, que aos 35 minutos ganhou de cabeça a Son. Aos 39 minutos cortou a bola a Gue-Sung, impediu a saída da Coreia e levou dois encontrões do adversário, numa atitude provocadora. António Silva continuou impávido e o árbitro avisou Gue-Sung para não voltar a fazer a mesma coisa.

Ora o árbitro, precisamente, apitou então para o final da primeira parte e no regresso aos balneários João Félix vinha a falar com ele muito divertido. António Silva esboçou então um sorriso, num sinal de empatia que foi exemplar único durante o jogo.

A segunda parte, refira-se, foi apesar de tudo mais tranquila.

O golo que transformou a estreia em derrota e um aplauso merecido

Portugal teve quase sempre a bola e quando a Coreia do Sul tentou reagir, raramente entrou no espaço de António Silva. Mesmo assim, aos 55 minutos, por exemplo, Son fugiu pela direita, já dentro da área, e remata forte, surgindo António Silva a bloquear a bola para canto.

Pouco depois, saiu novamente a jogar pela meia esquerda, tocou na frente em Cancelo e apontou ao colega para jogar mais na frente.

Há um ano já era normal fazer essas coisas: na equipa sub-23 do Benfica. Agora está a fazê-lo na Seleção Nacional, num Campeonato do Mundo, e sem aparente receio.

Aos 59 minutos a Coreia tentou entrar na zona perigosa, António Silva recuperou a bola e jogou em Diogo Costa. Já nos dez minutos finais, a mesma coisa: a Coreia tentou lançar Gue-Sung, António Silva recuperou e tocou para Diogo Costa. Sempre limpo, sempre simples.

Aos 91 minutos, aconteceu o pior: Hwang Hee-Chan fez o segundo golo da Coreia e provocou a primeira derrota de Portugal no Mundial. Na sequência de um canto favorável a Portugal, que apanhou Pepe, António Silva e João Palhinha na área contrária. Sem influência, portanto.

Para a história vai ficar que António Silva se estreou em Mundiais com uma derrota, e essa é uma mancha que ninguém conseguirá apagar. Mas a verdade é que um olhar mais atento vai sempre provar que o miúdo, dentro daquele estilo Thomas Shelby, se safou bem.

Merece o nosso aplauso.