Uma das primeiras memórias que tenho do futebol é de uma conversa com o meu pai na véspera da final do Mundial 86. Contava-lhe que na televisão estavam a dizer que a Alemanha tinha melhor equipa. «Mas a Argentina tem o Maradona», respondeu-me o meu pai.

E eu, provavelmente porque a Argentina ganhou a final, nunca me esqueci daquelas palavras.

Uns anos mais tarde, estava na escola quando chegou a notícia de que o Sporting ia defrontar o Nápoles na primeira eliminatória da Taça UEFA. De repente não se falava de outra coisa. E lembro-me de, naquela altura, ter pensado: «Ele vem a Portugal.»

Maradona era por esses dias, ali na parte final da infância, puro fascínio. Só mais tarde, e mais maduro, aproveitei os vídeos desses anos para perceber o que ele tinha sido exatamente: e foi uma agradável surpresa observar que aquela imagem que tinha dele não era uma efabulação de criança.

A história de Maradona foi um romance. A narrativa de um rapaz perfeitamente normal a quem aconteceu nascer com um talento incomparável para jogar futebol.

O argentino estava um patamar acima, por uma razão simples: os outros têm um talento, que pode ser mais evidente ou não, para dominar a bola, mas nenhum deles tem o poder de a domesticar.

Quando Maradona e a bola se encontravam, a relação deixava de ser saudável. Havia claramente uma parte que se superiorizava: a bola parecia ficar subjugada à vontade de Maradona. Deixava de ser um objeto que se pode controlar de uma forma mais fácil ou mais difícil.

A bola tinha a mesma ligação a Maradona que um animal doméstico tem ao seu dono: uma relação de amor e confiança. Nos pés dele tornava-se subserviente, porque sabia que nele podia acreditar.

Por isso, a simples forma como Maradona tocava na bola, como a dominava com a ponta do pé ou com o calcanhar, com as costas ou com o joelho, já era arte. Depois, claro, havia tudo o resto: o remate, a finta, o controlo em velocidade e aquela capacidade ímpar de afastar a bola do alcance do adversário sempre no momento certo. Todo ele era um tratado de talento e arte.

Ora voltando um pouco atrás, e porque cresci fascinado pela imagem de Maradona, tenho uma certa dificuldade em entender a necessidade que existe de acentuar os excessos que ele teve.

Nesta altura em que o astro morreu, nenhum de nós está aqui a pensar no homem: estamos a prestar tributo ao mito. O homem teve imperfeições, como têm todos os homens, mas o jogador de futebol foi perfeito, e é essa perfeição que o mundo celebra.

Não foi o homem que carregou um país ao colo, que interrompeu a pobreza do povo, que escreveu poemas com os pés. Que interessa se o homem foi imperfeito?

O mito, esse sim, foi admirável. Foi sublime. Encheu o futebol de apaixonados, o jogo de epopeias e as crianças de sonhos. De um menino que cresceu enfeitiçado pelo fascínio dele, eu aqui grito, passados trinta anos, obrigado Maradona.

Como escreveu Valdano, hoje até a bola está de coração partido.