Não faltam por aí expressões prontas para nos acudir quando nos lançam temas sobre os quais não conseguimos acrescentar nada. Ao invés de assumirmos que não entendemos patavina do que nos estão a dizer, soltamos um “pois, pois”, franzimos o sobrolho, transmitindo a atenção de alunos de primeira fila, e, se a conversa for de elevador, o outro, talvez, nem tenha tempo de constatar a nossa ignorância.

Chegamos, assim, à origem da utilização do termo “intensidade”, no futebol.

A equipa fez uma má exibição e perdeu? Faltou intensidade.

A equipa fez poucas faltas? Faltou intensidade.

O jogador fez uma má exibição? Faltou intensidade.

O jogador fez poucas faltas? Faltou-lhe intensidade.

O treinador até é um tipo pacato no banco de suplentes? Falta-lhe intensidade.

O lateral deixou-se bater num lance de 1x1? Faltou-lhe intensidade.

O defesa-central estava mal posicionado na jogada do golo? Faltou-lhe intensidade.

Por que é que há médios que conduzem menos a bola? Falta-lhes intensidade.

Por que é que há médios menos capazes de defender em campo aberto? Falta-lhes intensidade.

Por que é que há avançados cujo ponto forte não é o ataque ao espaço? Falta-lhes intensidade.

E se te perguntarem em que é que consistiria uma maior intensidade em qualquer um dos pontos supra citados, não te acanhes, soltas logo a wild card: “faltou atitude”. O futebol é simples, a nova geração de comentadores é que adora complicar.

Eu cá gostava de saber quantas vezes é que João Mário já ouviu que lhe faltava intensidade. Intensidade e golo, claro. Foi preciso chegar aos 30 anos para alcançar e transpor a marca dos 10 golos numa época desportiva, obra de quem sempre nos obrigou a entender o futebol além dos números.

João Mário nunca deixou de sobressair dentro de bons colectivos. Sucedeu no Sporting de Jorge Jesus, em 2015/16, temporada na qual se adaptou ao papel de médio ala. Nesse Sporting, de cariz ofensivo e que buscava o protagonismo do jogo, provou que a vertigem não é a resposta certa para tudo, que é possível esconder a bola do adversário tendo-a nos pés e que até com Schelotto se podia combinar, mesmo que com Bryan Ruiz a facilidade fosse outra.

Na passagem pelo Lokomotiv, por empréstimo de um Inter treinado por cinco técnicos diferentes no espaço de três épocas, reencontrou-se com a sua qualidade. Para mim, o período na Rússia, em 2019/20, já depois de, acredito, ter ficado traumatizado ao trabalhar sob as ordens de David Moyes, no West Ham, foi decisivo. O futebol daquele Lokomotiv, assente, sobretudo, numa boa organização defensiva, ansiava, no ataque, pelo critério de João Mário, que teve a capacidade de ser figura num contexto desfavorável, uma vez que passava pouco tempo enquanto dono da bola. Mas estava lá o acerto nas saídas em transição, a temporização no timing adequado, a qualidade de passe, a inteligência posicional. O Lokomotiv era curto para o seu futebol e também serviu para que tal fosse uma evidência, numa altura em que se ouvia o Sermão de Santo António aos Peixes, ou seja, a conversa da falta de intensidade para as ligas italiana e inglesa. Poderiam lá haver outras justificações?

Em 2020/21, o Sporting, de novo. Desta feita, o de Rúben Amorim. Um conjunto ainda pouco preocupado em brilhar em ataque posicional e muito empenhado no jogo directo, na verticalidade. Ficava evidente que os desenhos ofensivos da equipa melhoravam quando João Mário participava, fosse pela agilidade em espaços reduzidos, por procurar deixar os colegas em boas condições quando soltava na frente, por colocar pausa num modelo vertiginoso, por permitir que se respirasse em posse, depois de períodos em que a equipa baixava o bloco, passando longos minutos sem iniciativa, por fazer um bom uso do corredor central, dentro de um sistema viciado na profundidade oferecida pelos alas. João Mário completou uma das melhores épocas da sua carreira, só que, com apenas dois golos ao fim de 34 partidas, faltava-lhe golo, diziam. E a crítica tomou outras proporções ao trocar o Sporting pelo Benfica, reencontrando Jorge Jesus no clube da Luz, em 2021/22.

Volvidas seis temporadas, as equipas de Jorge Jesus denotavam problemas que o Brasileirão só ajudou a escamotear. O Benfica de 2020/21 não chegou sequer perto do Sporting de 2015/16 e o Benfica de 2021/22 tornou-se, aos poucos, num dos piores trabalhos do treinador português. Entre os muitos exemplos de autêntico desnorte, fica a desvalorização quase total de um plantel que contava com Everton, Yaremchuk, Waldschmidt, Weigl ou Vertonghen – jogadores que não deixaram outra marca na Luz mais por culpa da falta de qualidade colectiva do que da falta de qualidade individual.

Naturalmente, um jogador com o perfil de João Mário acabou arrastado pelo mau momento. Ainda não referi, mas João Mário não é um jogador auto-suficiente. Aliás, muito pelo contrário, pois necessita bastante dos outros para estar a um bom plano. Existem jogadores que, dadas as suas características – explosão, óptimos no drible, etc. –, alteram cenários de jogo. Isso não encontrarão em João Mário, definitivamente talhado para marcar diferenças quando toda a gente sabe o que anda a fazer dentro de campo, algo que também não acontecia no Benfica de Nélson Veríssimo, onde João Mário chegou a ser ultrapassado por Meité nas escolhas do actual técnico do Estoril.

Enfim, Roger Schmidt. Roger Schmidt, para atestar, outra vez, a excelência de João Mário quando uma equipa funciona como um todo, oferecendo-lhe mais liberdade do que nunca. Com Rúben Amorim, os que olharam aos golos, não olharam às zonas do terreno que João Mário pisava, à maior rigidez desse sistema, à impossibilidade de se acercar sistematicamente de zonas de finalização, ao contrário do que sucede neste Benfica. Não olharam. Faltava intensidade. Faltava golo a um médio que, de forma rigorosa, não se distingue pela apetência no gesto da finalização, mas que, em princípio, tal como a maioria, habilitar-se-á mais vezes aos golos quantas mais forem as vezes em que lhe permitam aproximar-se da baliza contrária sendo bem servido, sendo trabalho para tais dinâmicas, que, quiçá, até lhe permitam ganhar maior confiança nesse momento do jogo. Não olharam. Faltava intensidade.

Agora, experimentem agarrar nos 16 golos marcados por João Mário esta época. Subtraiam os penáltis, caso queiram. Sabem quem é que era o João Mário sem eles? O mesmo. “Um médio sem golo e sem intensidade”.

«Quem é que defende?» é um espaço de opinião de Sofia Oliveira no Maisfutebol. A autora escreve pelo acordo ortográfico antigo.