Surge este texto na sequência de uma reflexão que me atormenta desde o passado sábado: o que terá maior utilidade, a wrongpoint «um ponto de vista errado» no futebol ou um cão numa missa?

À partida, há uma descrença generalizada quanto ao proveito do animal de quatro patas na boa realização da celebração religiosa. Tudo normal, não se sintam estranhos. Já sucedeu comigo. Contudo, convido-vos a repensar. A ponderar. Será que essas conclusões não resultam do que «achamos ter visto» durante enviesadas experiências empíricas? Será que lá no fundo, lá bem no fundo de uma qualquer tabela de Excel não nasce um algoritmo protestante? Hoje em dia urgem ferramentas estatísticas, «dados que nos ajudam a corrigir» meias-verdades ou até, indo mais longe, mentiras.

A exibição de Francisco Geraldes frente ao FC Porto mereceu um comovente 5.3 para a GoalPoint. Além da enternecedora avaliação, os especialistas da plataforma escreveram que a actuação do médio estorilista «esteve longe de ser perfeita, ou mesmo boa, algo que os números não deixam escapar e os olhos sim». Lá está o alerta que fiz acima: os olhos, esses terríveis inimigos da análise. Aliás, ninguém sabe porque é que, nos tempos que correm, a malta continua a preferir manter os olhos abertos durante um jogo de futebol. Com tanto negócio talhado para castrar o pensamento, mais vale substituir as idas ao estádio por um poleiro na primeira-fila de um site que nunca se engana na hora de contar o que se passou dentro de campo.  

Quais foram as explicações que conduziram ao parco valor atribuído a Francisco Geraldes?

  1. «Não raras vezes teve a possibilidade de fazer passes de ruptura para isolar colegas, mas decidiu quase sempre prender a transição e guardar o esférico, perdendo-se bons lances de ataque».

    Ora, vamos lá desmontar esta palermice. Primeiro, ficamos logo a perceber que há olhos e olhos. Os nossos, que não servem para coisa nenhuma na fila do pão, e os daqueles que querem transformar o que viram em números. Se calhar, está aí o segredo. Se quiserem transformar em números, vá lá que não vá. Agora, sem essa pretensão, fazem o favor de dar meia-volta, porque não há quem os convença de que a melhor opção naqueles lances não era ter feito passes de ruptura para isolar os colegas. Não há quem. Desculpem. Está escrito nos manuais matemáticos: durante as transições ofensivas, todos os movimentos de ruptura activados pelos jogadores da equipa que está em transição devem ser respeitados pelo portador da bola com passes de ruptura, sendo que o portador da bola que não cumprir estará a violar a alínea Xρ.τo e sofrerá consequências aquando do juízo final GoalPoint.

    Ignora-se a vantagem de preservar a posse de bola, que até, num determinado momento do jogo, pode estar ligada a um longo período que a equipa em transição passou encolhida no seu último terço defensivo – respirar com bola pode ajudar a recuperar índices de confiança e pode criar frustração no adversário; ignora-se a complexidade na execução dos passes de ruptura – por exemplo, ao portador da bola em causa faltar segurança para realizar esse gesto técnico; ignora-se algo tão simples como a velocidade do colega que irá reagir a esse passe de ruptura ou o posicionamento do guarda-redes contrário, que poderia estar em boas condições para se antecipar a esse passe. Podia continuar, mas não vou, o Chico tinha era de pôr os passes de ruptura e acabou a teoria, porque o olhómetro da GoalPoint até viu que se perderam “bons lances de ataque”;

  2. «Foi o jogador com mais passes falhados da partida (12, a par de Pepê)».

    Imaginem. Imaginem só o médio ofensivo da equipa ser o jogador com mais passes falhados. Isto é um ultraje. Um atentado à física-quântica. Páginas tantas ainda descobrimos que, se me apetecer mandar a cabeça com toda a força contra a parede após ler a pobreza desta argumentação GoalPoint, sou capaz de a abrir. E porque é que a incidência de passes falhados vale mais do que a intenção do passe falhado? O que estes tarólogos estão para aqui a tentar dizer é que colocam no mesmo saco um passe falhado sem oposição ou adversários a chegar e um passe falhado entre dois opositores que procuram condicionar a acção de quem efectua o passe. É que comparam um central que, na saída de bola, de frente para o jogo, sem pressão contrária, mete um passe nos pés do extremo adversário com um médio que, com a parte de fora do pé, busca isolar o seu avançado no último terço. Comprime-se e enfia-se bem arrumadinho na gaveta dos passes falhados, mesmo que a honestidade intelectual leve uma valente sova;

  3. «(…) com mais passes de risco desperdiçados».

    Admitam, vocês contrataram a Maya;

  4. «(…) o segundo com mais perdas de posse (20), oito delas em zona perigosa (primeiro terço), máximo do encontro».

    Confesso que o ponto 4 é o meu favorito. Novamente, não se contempla o contexto. Perdeu a bola em que circunstâncias? Na intenção de ligar jogo desde trás? Falhou redondamente o gesto técnico do passe, permitindo ao rival mais próximo roubar-lhe o esférico? Fechou os olhos a meio do seu meio-campo e tentou matar um pombo? O opositor directo, após ter sido ultrapassado em condução, aplicou um carrinho ao qual não conseguiu fugir? Houve reacção à perda ou o passe foi directamente para fora? O que é que sucedeu? Diria que quem mais arrisca, quem mais se mostra ao jogo, maiores probabilidades tem de somar perdas. Se não, pasme-se: nos últimos três jogos do Paris Saint-Germain, o trio atacante alternou no pódio dessa terrível competição: Neymar foi quem mais perdeu bolas frente ao Lyon (21), Mbappé superou o brasileiro contra o Maccabi Haifa (22) e Messi nem dormiu após perder a bola por 23 vezes com o Stade Bestrois 29. Há mais. Nas últimas três titularidades de Martin Ødegaard, o capitão do Arsenal perdeu a bola 18 vezes (vs. Manchester United), 15 vezes (vs. Aston Villa) e 19 vezes (vs. Fulham). Para os mais limitados, não, não estou a comparar o Francisco Geraldes com estes, estou a fazer-vos engolir números aleatórios que não servem para nada. Sinto-me a escrever algo que podia ser escrito pelo Pedro Chagas Freitas, mas que nem por isso a GoalPoint se deu ao trabalho de desmistificar;

  5. «E ainda falhou uma ocasião flagrante».

    Isto só visto. Em cima da borrada toda, ainda se dá ao luxo de falhar uma ocasião flagrante. A marcação cerrada do Zaidu, a boa leitura do lance do Diogo Costa na sequência da assistência sublime do Rodrigo Martins ou a falta de frescura no momento da finalização que pode ter advindo da arrancada do Francisco Geraldes, que lhe permitiu atacar aquela zona, são meros pormenores. Podia ter feito melhor, não podia? Pronto. Isto ou aparecer isolado de baliza aberta tem o mesmíssimo peso – realmente, só deverá ter para quem vê futebol a nanar.

Um cão numa missa fará as delícias dos que apreciam afagar-lhe o pelo. A GoalPoint no futebol fará as delícias dos que apreciam afagar a ignorância. Prefiro o primeiro.

«Quem é que defende?» é um espaço de opinião de Sofia Oliveira no Maisfutebol. A autora escreve pelo acordo ortográfico antigo

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