Tinha, segundo todos os relatos, um olhar triste e um feitio reservado. Talvez excessivamente triste e reservado para o próprio bem - mas esse é o género de especulação que só se faz depois de tudo ter acabado como acabou: com um gigantesco ponto de interrogação e uma bala no coração, aos 39 anos.

Nascido em Roma, no ano de 1955, Agostino Di Bartolomei começou a dar os primeiros pontapés na bola nos campos improvisados do seminário de Tor Marancia, arredores da capital. Foi aí que, num torneio em 1968, com apenas 13 anos, a sua elegância na condução de bola e potência de remate foram detetadas por olheiros do Milan. O contacto prévio ficou-se por isso mesmo: nem o jovem «Ago» nem a família consideravam a possibilidade de uma viagem tão longa. Mas a vontade de singrar no futebol profissional saiu reforçada com aquela forma de validação.

Os escalões de formação da Roma são o passo seguinte, lógico e cumprido com indiscutivel brilho: além do remate potente e de jogar sempre de cabeça levantada, aquele médio centro tem temperamento de líder. E, também por isso, com 18 anos recém-cumpridos é chamado à primeira equipa, estreando-se na série A em abril de 1973.

Nos anos 70, a Roma está longe de ser uma potência do «calcio»: o único título de campeão a rumar à capital nessa década é da Lazio, enquanto os «giallorossi» se habituam a terminar a série A em lugares no meio da tabela. Ainda assim, o apoio popular é fortíssimo e a mística indestrutível: os adeptos da Roma reconhecem um dos seus no jovem «Ago», que em 1978, sem surpresa, apesar dos seus 23 anos, se torna um dos capitães da equipa.



Por essa altura, já Di Bartolomei encontrou um mentor, o técnico mais importante na sua carreira e, talvez, na própria história do clube romano: o sueco Nils Liedholm. Futebolista sobredotado nos anos 50, reconvertido em técnico visionário, Liedholm prepara, a partir do final dos anos 70, uma paciente revolução no «calcio». A defesa à zona é a sua doutrina, a Roma o seu laboratório, Di Bartolomei o ajudante de campo.

É Liedholm quem tem a ideia de reconverter o médio-centro num líbero com carta branca para apoiar o ataque, segundo o modelo de Franz Beckenbauer. O sucesso é imediato: na primeira temporada, em 1978, Di Bartolomei fecha a temporada com uns sensacionais dez golos, que o tornam ainda mais amado pelos «ultras» da Curva Sud. Aos poucos, a Roma vai ganhando uma reputação de equipa sólida, ampliada pela conquista, em 1980 e 1981, de duas Taças de Itália, ganhas ao Torino em desempates por penáltis. Di Bartolomei marca um, na segunda final, e passeia pelo relvado do estádio Comunale com a Taça na mão, abraçado pelo guarda-redes Tancredi, um dos seus grandes companheiros de percurso.


É Tancredi quem, no documentário «Undici Metri», dedicado à carreira de Di Bartolomei, o descreve como um tipo sério e reservado, que todos escutavam quando se decidia a falar: «Por vezes tínhamos ordenados em atraso, e era ele quem falava com os dirigentes. E se chegava à cabina e dizia Hoje não se joga! ninguém punha em causa a sua decisão». É também por essa altura que Di Bartolomei se torna notado pela pequena bolsa que trazia sempre na mão. Em surdina, companheiros e jornalistas comentavam que aí guardava uma pistola Smith & Wesson, calibre 38, com que teria passado a andar depois de ter sido vítima de um assalto.

Em 1980, a Roma tinha ganho uma dimensão extra com a chegada do craque Paulo Roberto Falcão. Com a maestria do médio brasileiro, a equipa do meio da tabela torna-se uma fortíssima candidata ao «scudetto» e, ao mesmo tempo, começa a criar uma reputação na Europa. Depois de dois lugares no pódio, em 1981 e 1982, o ano de 1983 torna-se mágico e termina com a vitória na Série A, o primeiro título dos «giallorossi» em 41 anos. Pelo meio, a eliminação nos quartos-de-final da Taça UEFA, diante do Benfica, com um jogo memorável no Olímpico de Roma. Ao bis de Filipovic, apenas Di Bartolomei consegue responder, mostrando a sua frieza num penálti frente a Bento:



Datam desses tempos gloriosos os primeiros desentendimentos com Falcão. Com temperamento de estrela e habituado ao «glamour», o brasileiro encaixa mal no perfil «proletário» de Di Bartolomei, que dava prioridade à equipa em tudo o que fazia. Algumas entrevistas de Falcão caem mal ao capitão de equipa, que no entanto não permite que as divergências se notem em campo.

A final que mudou tudo

Os penáltis foram um tema recorrente no trajeto de «Ago», um dos maiores especialistas italianos do seu tempo. E voltariam a estar presentes, de forma dramática, no definitivo ponto de viragem na sua carreira. A 30 de maio de 1984, o estádio Olímpico de Roma recebe a final da Taça dos Campeões e, pela primeira vez no seu historial, os «giallorossi», capitaneados por Di Bartolomei, estão na decisão continental. Do outro lado está o grande Liverpool, mas nem por isso a Roma deixa de ser favorita, apoiada por mais de 60 mil adeptos em delírio. Mas nem os 90 minutos, nem o prologamento, conseguem separar as duas equipas: pela primeira vez na história, a Taça dos Campeões será decidida por penáltis.

Liedholm, a cumprir o último jogo à frente da Roma, decide que Di Bartolomei cobrará um dos últimos penaltis da Roma. Mas o capitão, com problemas musculares, decide trocar a ordem estabelecida e avança em primeiro. Converte o seu remate, mas o seu exemplo não será seguido por dois campeões do Mundo, Conti e Graziani, que chutam para fora, perturbados pelas manobras de diversão do guarda-redes Grobelaar. O Liverpool faz a festa em solo adversário e os jogadores da Roma voltam às cabinas, cabisbaixos e anestesiados pela deceção e pelo silêncio sepulcral dos adeptos italianos.



Poucos dias depois surgem rumores de uma discussão violenta na cabina entre Di Bartolomei e Falcão, com o capitão a recriminar o brasileiro por se ter recusado a bater um penálti, alegando cãimbras. Ninguém da equipa o confirma em «on», mesmo passados 30 anos. «Estávamos demasiado cansados e desmoralizados para discutir», garante Tancredi.

Mas o facto é que, com ou sem discussão com a estrela, a derrota no jogo que poderia tê-lo feito imortal marca o início da fase descendente na vida do capitão. Não voltará a jogar com a camisola da Roma: Liedholm está de saída, e o seu sucessor, Sven-Göran Eriksson, faz saber ao presidente Viola que não quer um líbero tradicional, ainda por cima lento, na nova temporada.



Contra vontade, 16 anos depois do primeiro convite «rossonero», Di Bartolomei faz mesmo a viagem para Milão onde fica até 1987. Apesar de ter a seu lado o mentor sueco, não volta a ser feliz como no Olímpico. Para o rol de mágoas, é lá que vive uma das maiores em toda a carreira, quando a «sua» Curva Sud o assobia no jogo do reencontro. Di Bartolomei, que tinha marcado - e festejado - à Roma no jogo de San Siro, acaba o jogo de cabeça quente, envolvido numa acesa discussão com o ex-companheiro Graziani. Nunca esquecerá os assobios dos seus. Depois, o eclipse gradual do jogador tem passagens pelo Cesena e, a fechar, pela Salernitana, que ajuda a promover à série B, antes de pendurar as chuteiras, em 1990, com 35 anos.

Um rei no exílio

É altura de voltar ao princípio, ao olhar triste e ao feitio reservado, que se acentuam com o adeus aos relvados. Di Bartolomei fixa residência nos arredores de Salerno, onde se sente valorizado e admirado – mais do que em Roma, onde o seu clube de sempre não mostra qualquer vontade de reabrir-lhe as portas.

Ex-colegas como Chierico, Nela ou Tancredi, contam que nos reencontros posteriores, com ou sem futebol como pretexto, «Ago» nunca abriu o jogo. Apenas exibia uma vaga tristeza, indefinida, como a de um rei deposto no exílio. As tentativas de reconversão não lhe correm bem. As perspectivas de um emprego digno no mundo do futebol vão falhando sucessivamente. Monta uma Academia de futebol, mas os projetos para um centro desportivo de grandes dimensões esbarram em intermináveis burocracias e em vetos nem sempre compreensíveis. O volume dos empréstimos aumenta, a pressão financeira também, vagos rumores de ameaças, nunca comprovados, ajudam a compor um cenário de depressão.

Ainda assim, a 29 de maio de 1994, Di Bartolomei não se esquece de telefonar ao pai, que cumpre 71 anos. Despede-se com uma promessa: «quarta-feira vou a Roma e encontramo-nos». Nada faz prever o desenlace, seco e brutal como um tiro de Smith & Wesson, calibre 38. Na manhã seguinte, «Ago» levanta-se cedo, como habitualmente, e acorda o filho mais novo, Luca, que seguiu para a escola. Por volta das nove da manhã, Gianmarco, o filho mais velho, de 20 anos, estava a estudar no quarto quando ouviu o disparo. O socorro chegou rapidamente, mas nada havia a fazer.

A mulher de Agostino, Marisa de Santis, lembra-se de uma última noite descontraída, sem sinais das angústias expostas no bilhete de despedida: «Sinto-me metido num buraco, não vejo saída», escreve, depois de enumerar os problemas financeiros. A 30 de maio de 1994, no preciso dia do décimo aniversário da final com o Liverpool, Agostino Di Bartolomei saiu de cena, inconformado com a imortalidade falhada por tão pouco e sem forças para decidir o resto da vida nos penáltis.

Soldados desconhecidos é uma rubrica dedicada a figuras pouco conhecidas da história do futebol, com percursos de vida invulgares.