Um argentino que responda à pergunta «quem é o melhor futebolista de todos os tempos?» com outro nome que não o de um jogador argentino é espécime tão raro que deveria ser exposto em qualquer Museu do Futebol digno desse nome. Mas percebe-se: afinal, nenhum outro povo, nem sequer o brasileiro, pode dar-se ao luxo de escolher entre alternativas tão poderosas como Messi, Maradona e Di Stéfano. Ou Charro Moreno. E esta é a parte em que nove em cada dez leitores perguntam «quem?!», o que nos conduz ao Soldado Desconhecido desta edição.

Desconhecido, neste caso, é uma liberdade criativa só possível no pressuposto de que não haverá muitos argentinos a ler esta rubrica. Porque, para grande parte deles, em especial os adeptos do River com mais de 60 anos, José Manuel Charro Moreno é uma figura tão ou mais incontornável na história do futebol como qualquer outro dos três nomes referidos. E se, pelo facto de ter jogado entre as décadas de 30 e 50, são escassas as imagens em movimento que sustentam a lenda de Moreno, as histórias que resistem ao tempo e o carisma das suas fotografias atestam que alguma coisa de muito especial passou por ali.


Moreno na seleção argentina (fonte: Wikimedia)

Comecemos pela alcunha, para afastar qualquer ligação a substâncias ilícitas: Charro, neste sentido, é alguém de origens camponesas, rústico, tosco, mal acabado. Precisamente o oposto dos requintes que aquele miúdo de 18 anos mostrou, em finais de 1934, quando integrou uma digressão do River Plate pelo Brasil. Mostrando uma autoconfiança a roçar a insolência, o miúdo ajudou os argentinos a construir uma sensacional goleada de 5-1 sobre o Vasco da Gama.

Começava assim uma carreira fulgurante que escondia uma história de desforra pessoal: nascido no bairro de Boca, Moreno tinha sido, pouco antes, rejeitado pelos técnicos do Boca Juniors, seu clube de coração. Como todas as pessoas de personalidade forte, El Charro usou a rejeição como combustível para a ambição: nas décadas seguintes, com seis títulos de campeão e 160 golos em 260 jogos, não parou de mostrar aos responsáveis bosteros que tinham cometido um dos maiores erros de avaliação na história do Boca. 



Um ano depois de ter assinado o primeiro contrato profissional, Moreno já era indiscutível no River. Mas, mais do que isso, já era um fenómeno de culto entre os adeptos do River – e não só. A pinta de galã, o bigode cuidadosamente aparado e o cabelo alisado com brilhantina não estavam lá por acaso: aos 20 anos, Moreno já estrela nos relvados, mas também nos salões de tango onde, quase todas as noites, torrava as horas até ser madrugada, na companhia das mulheres mais bonitas da noite portenha. Às críticas pelo mau profissionalismo, respondia com a mesma elegância com que driblava defesas ou fazia girar as damas nos seus braços: «o tango é o melhor dos treinos. Trabalhas o ritmo, a mudança de direção, o um para um, a cintura e os músculos das pernas», afirmou em mais do que uma entrevista.

Outra das lendas a seu respeito conta que o seu melhor amigo, confidente e companheiro de copos e boémia era o próprio pai, Don José, a quem sempre saudava com solenidade de toureiro quando entrava em campo. Após a morte de Don José, o presidente do River Plate, Antonio Liberti, acedeu a um pedido do seu craque, tornando vitalício o lugar cativo do pai, de forma a que mais ninguém estivesse autorizado a sentar-se no local para onde Moreno continuava a olhar, sempre que marcava um golo no Monumental.

La Maquina

A história de Moreno é também, em grande parte, a história da linha avançada que ajudou a formar no River, entre 1941 e 1945. Uma das mais míticas do futebol mundial, ficou conhecida como La Maquina e, à semelhança do fenómeno português dos violinos, declama-se com cinco nomes em rápida sucessão, da direita para a esquerda: Muñoz, Moreno, Pedernera, Labruna e Loustau.

Nascida da visão tática de Carlos Peucelle, um jovem técnico, ex-companheiro de equipa de El Charro, La Maquina não só ficou ligada ao período mais faustoso da história do River como, pela mobilidade dos seus elementos, foi precursora de dois fenómenos táticos que viriam a marcar a história do futebol mundial das décadas seguintes: o Honved e a Hungria, de 1954, e o Ajax e a Holanda, de 1974. E se a Hungria tinha Puskas, e a Holanda tinha Cruijff, La Maquina tinha Moreno, nesse papel híbrido de criativo e finalizador, driblador e assistente, ideólogo e executor. Um papel cujas subtilezas, nos anos finais de La Maquina Charro Moreno transmitiu a um jovem chamado Alfredo Di Stéfano, que em 1945 tinha acabado de chegar ao River.


Moreno e um jovem Di Stéfano (fonte: Wikimedia)

Sabe-se o que aconteceu depois: Di Stéfano foi para o Real Madrid em 1953 e, com a ajuda da Taça dos Campeões Europeus, revolucionou o futebol mundial. Moreno, esse, experimentou as delícias do profissionalismo (e da vida noturna) no México, no Chile, no Uruguai e na Colômbia. Pelo meio, encerrou o capítulo Boca na sua carreira, assinando pelo seu clube de coração em 1950. «Chego ao clube de onde nunca quis sair», disse no dia da apresentação. «As circunstâncias da vida obrigaram-me a ser feliz do outro lado da barricada», explicou-se, perante os adeptos.


Moreno no Boca Juniors, em 1950   (fonte: Wikimedia)

A sua última aparição num relvado respeita a grandeza do mito em seu redor: aconteceu em 1961, quando, com quase 45 anos, era treinador do Independiente de Medellín. Num particular com o «seu» Boca Juniors viu a equipa colombiana ser dominada na primeira parte. Segundo várias fontes, de brios espicaçados, El Charro calçou as botas, marcou dois golos e ajudou à reviravolta, por 5-2. A cinco minutos do fim, sem anúncio prévio, aproveitou uma paragem de jogo, cumprimentou companheiros e adversários, acenou para as bancadas, e virou a página sobre uma carreira extraordinária, que se tinha prolongado por 27 anos.

Para além da lenda, da aura de bon vivant e conquistador, os números que ficaram chegam para ter uma ideia do fenómeno. Contam-nos da proeza - ainda mais extraordinária para o seu tempo - de um jogador campeão nacional em quatro países (Argentina, México, Colômbia e Chile). De um duplo vencedor da Copa América, em 1941 e 1947, autor de cinco golos num único jogo, (um 12-0 ao Equador). De um craque que,  mesmo nunca tendo sido ponta de lança, apontou quase 250 golos em 523 jogos oficiais. De um tesouro que, ao contrário de Di Stéfano, viu a fama global ser travada pela II Guerra Mundial e pela ausência de competições regulares nos seus anos de ouro.

Se Moreno teria ou não garantido a eternidade num tempo em que, como agora, as proezas em campo têm impacto planetário, é algo que nunca saberemos. Quem o viu jogar jura que sim, e isso terá de bastar-nos. Até porque, mesmo sem tê-lo visto, basta conhecer um pouco da história do futebol para perceber que sem El Charro não teria havido Di Stéfano tal como o conhecemos. E sem Di Stéfano não teria havido Cruijff. Nem Maradona. Nem Messi. E, em suma, a vida a partir da segunda metade do século XX teria sido uma coisa bem mais tristonha, para muitos de nós.

Soldados  desconhecidos é uma rubrica dedicada a figuras pouco conhecidas da história do futebol, com percursos de vida invulgares.