A partir de um texto inicialmente publicado no Maisfutebol em março de 2004

Luciano Re Cecconi. O nome não dirá grande coisa aos adeptos, exceptuando os ultras da Lazio com memória mais respeitadora do passado. Mas devia. Re Cecconi é um nome que devia ficar gravado em letras grandes nos livros de História. Por todas as razões erradas.

É certo que este italiano, nascido a 1 de Dezembro de 1948, nos arredores de Milão, tinha, segundo as crónicas da época, um apreciável talento como jogador. «Sete pulmões e um cérebro lúcido», sintetizava a crítica em meados dos anos 70, quando a sua cabeleira loura dava cartas no meio-campo da Lazio. Em 1973/74, os laziali conseguiam mesmo a proeza inédita no seu historial, conquistando o título de campeão. Os heróis do scudetto foram dois: Chinaglia, o goleador que depois emigrou para os states; e Re Cecconi, claro, o favorito do Olímpico pelo temperamento lutador e pela irreverência que muitas vezes punha em campo nas alturas mais inesperadas.



Para a lenda fica a memória de um dérbi, com a Roma, durante o qual, à custa de bocas cirúrgicas, conseguiu tirar do sério o guarda-redes gialorrosso, antes de um penalti (golo da Lazio) e pouco depois fez o mesmo ao capitão adversário antes de este falhar o penalti que teria dado o empate ao rival.

Em 1974 Re Cecconi chegou à seleção, mas não conseguiu impor-se: ao fim de quatro jogos deixou de ser chamado. Melhor para a Lazio, que continuou a contar com os seus bons serviços a tempo inteiro. A pinta de estrela, a invulgar cabeleira loura tornaram-no um fenómeno de culto, ampliado pelas pequenas anedotas que iam colorindo as suas presenças no relvado.

Mas nada disto chegaria para tornar Re Cecconi uma presença necessária nos livros de história do futebol. Aliás, o seu lugar não é propriamente na história do futebol. É, sim, na história do star-system, sub-capítulo «malefícios da fama», secção brincadeiras de mau gosto. A sua morte, a 18 de Janeiro de 1977, com 28 anos recém-cumpridos, merecia um livro. Aliás, para sermos rigorosos, mereceu mesmo. Não um, mas três: um romance chamado «Ho visto un Re», escrito pelo jornalista e adepto da Lazio Carlo D'Amicis, uma reportagem-investigação intitulada «Non Scherzo», do jornalista Maurizio Martucci, e uma evocação, «Lui era mio papá», escrita pelo filho Stefano.


Re Cecconi recordado pelos adeptos da Lazio

Para chegarmos a esse fim de tarde de janeiro, é preciso passar por dois incidentes relevantes, ocorridos no final de 1976. O primeiro, aconteceu a 24 de outubro quando, aos 19 minutos do jogo com o Bolonha, a contar para a terceira jornada da Série A, Re Cecconi sofreu uma entrada dura do defesa internacional Roversi, que lhe provocou uma lesão complicada no joelho. Ninguém poderia imaginar que esse seria o último jogo de Cecco.



O segundo incidente, ocorrido a 2 de dezembro de 1976, foi a morte, devido a um tumor no fígado, de Tommaso Maestrelli, treinador que tinha sido uma presença decisiva na carreira do médio louro, contratando-o para a Lazio, em 1972, e conduzindo a equipa ao título, dois anos mais tarde.

Aborrecido pela ausência forçada dos campos, triste pela morte do mentor e amigo, Re Cecconi tinha acabado de receber boas notícias nessa tarde de inverno: o médico da Lazio, Renato Ziaco, tinha-lhe dado alta da lesão no joelho, autorizando o seu regresso aos treinos sem limitações. Terá sido um misto de tédio e euforia a estar na origem dos passos seguintes: na companhia de dois amigos, o companheiro de equipa Pietro Ghedin e o perfumista Giorgio Fraticcioli, deu uma volta pelo bairro Flaminio e seguiu Fraticcioli quando este se lembrou de que tinha uma entrega para fazer numa ourivesaria situada na Rua Nitti.

Os dois jogadores procuravam divertir-se: desafio puxa desafio, brincadeira puxa brincadeira. Umas semanas antes, Re Cecconi tinha entrado em casa de um amigo de infância, simulando um assalto, para gargalhadas gerais. A ideia voltou a parecer brilhante, mas era apenas cretina. Com a gola levantada e as mãos a criarem um volume suspeito nos bolsos do casaco, o médio foi o terceiro a entrar no estabelecimento, gritando «Ninguém se mexa, isto é um assalto!».

O dono da ourivesaria chamava-se Bruno Tabocchini e, pormenor decisivo para o desfecho da história, tinha sido assaltado quatro vezes em três anos. Por outras palavras, estava farto, enervado e pouco lúcido. Eram quase 19.30, hora de fechar, e Bruno já não esperava visitantes. Por isso, nem perdeu um segundo a tentar identificar a cara risonha que o fitava da entrada. Puxou da Walther 7.65 que tinha atrás do balcão e disparou, para o peito do homem louro. 

Ghedin, companheiro de equipa, entrou em contradições sobre os pormenores daqueles momentos. Terá Re Cecconi murmurado «Era uma brincadeira! Uma brincadeira!» antes de desmaiar? Na primeira versão dos depoimentos sim, na segunda, nada mais foi dito. Certo é que Re Cecconi morreu pouco depois, a caminho do hospital San Giacomo, ainda a tempo dos noticiários da noite.

Ainda se disse que tinha sido um assalto frustrado. Depois, o inquérito oficial concluiu por uma versão definitiva: apenas uma brincadeira estúpida, na hora errada, no local errado. Bruno Tabocchini foi acusado de «excesso culposo de legítima defesa», e absolvido apenas 18 dias mais tarde, considerando o tribunal que agiu em «legítima defesa putativa». O julgamento, muito mediático, reacendeu questões de segurança, numa altura em que Roma vivia um clima de intranquilidade política e social. A associação dos ourives italianos apoiou ativamente Tabocchini, considerando que uma eventual condenação seria uma ameaça para a segurança dos estabelecimentos do género, e a campanha encontrou eco na imprensa.

Só anos mais tarde alguns companheiros de Re Cecconi vieram questionar a versão estabelecida no inquérito, aventando a hipótese de o jogador nunca ter chegado a proferir as palavras fatais que teriam estado na origem dos disparos de Tabocchini. Com os nervos em franja, e sem qualquer provocação, este teria empunhado a pistola como reação à entrada imprevista na sua loja de três jovens com ar atlético e decidido. A sensibilidade do gatilho de uma Walther 7.65 empunhada por uma mão a tremer teria feito o resto. Mas as autoridades nunca aceitaram esta teoria, mantendo nos registos a história do rei que morreu devido a uma piada de mau gosto.



Estiveram milhares de adeptos no funeral do jogador, no cemitério de Nerviano, à procura de uma moral para esta história. Passaram 37 anos, ainda ninguém a encontrou.

Soldados desconhecidos é uma rubrica dedicada a figuras pouco conhecidas da história do futebol, com percursos de vida invulgares.