Em bom rigor, o Soldado Desconhecido desta semana não é Desconhecido. Bem pelo contrário: para os estudiosos da coisa, Osvaldo Zubeldía é um dos nomes fundamentais para perceber a evolução tática do futebol sul-americano. Um ganhador, um técnico cujas ideias permanecem atuais e que está na génese da conceção utilitária e pragmática da profissão que teve em Carlos Bilardo o seguidor mais radical e, atualmente, em Diego Simeone o intérprete mais famoso.

Admitindo, porém, que muitos dos leitores não estão familiarizados com o cisma ideológico provocado no futebol argentino da década de 60, talvez valha a pena lançar um pouco mais de luz sobre uma personagem muito mais complexa do que a reputação de cinismo, violência e antijogo que acompanha habitualmente as referências ao seu nome. E, principalmente, à equipa do Estudiantes que sob o seu comando, entre 1967 e 1971, conheceu o período mais vitorioso da sua história.

Tal como Helenio Herrera ou Don Revie – e veremos o que os livros reservam a nomes como Mourinho, daqui a uns anos - Zubeldia, a raposa, entra na galeria dos vilões naquela história demasiado simplista, que se conta em traços carregados e em pares de polos opostos. Como se não houvesse zonas cinzentas entre o bem e o mal, o jogo e o antijogo, a posse e o espaço, o talento ou o trabalho, o prazer ou o sofrimento - ou entre a vitória como único objetivo e como mera consequência de um processo. Nesse último aspeto, aliás, o posicionamento de Zubeldía era tudo menos ambíguo

A única verdade é ganhar. O importante é competir é uma frase feita para os otários e inventada pelos perdedores”

Paixão em vez de talento

Embora tenha chegado a jogar no Boca Juniors – ele, que toda a infância tinha sonhado representar o River – Zubeldía foi um futebolista apenas aplicado, que compensava com dedicação a escassez de talento inato. Quando pendurou as chuteiras em 1960, com 32 anos, já tinha decidido seguir a carreira de treinador, mais adequada às suas características de estudioso do jogo e de trabalhador obsessivo.

De origens bascas e italianas, sempre teve uma visão operária do futebol. Num futebol argentino habituado a cultivar a estética e a espetacularidade do gesto, as primeiras inovações que pôs em prática remetiam para o universo das fábricas. Quando chegou ao Estudiantes, em 1965, com o objetivo de impedir a descida de divisão, tomou duas medidas drásticas: impôs a dupla sessão de treinos – às vezes tripla – e dispensou os jogadores veteranos, promovendo os miúdos da cantera, mais impressionáveis e mais dispostos a fazer sacrifícios por ele. Data desses primeiros tempos uma palestra memorável, recordada por Carlos Bilardo (ao centro em baixo, na foto), que viria a tornar-se o símbolo dessa equipa: "Convocou-nos para um treino às sete da manhã, bem mais cedo do que o habitual. Levou-nos a todos para a estação de comboio, a ver o movimento dos operários que seguiam para os seus empregos. E então disse-nos: se ouvirem o que eu digo, se forem bons profissionais e se dedicarem apenas a isto durante uns cinco anos, vão chegar longe, ganhar dinheiro e tornar-se famosos. Caso contrário, serão outros como eles

Tinha razão: os hábitos de trabalho e a minúcia na preparação dos jogos, tornaram o Estudiantes um caso de sucesso. Em 1967, ano e meio depois da chegada de El Zorro a equipa dos pincharratas (a alcunha deve-se ao facto de o clube ter sido fundado por estudantes de medicina) tornou-se a primeira a escapar à ditadura dos cinco históricos (Boca, River, Independiente, Racing e San Lorenzo), sagrando-se campeã com uma equipa extremamente jovem, barata e ambiciosa.

Consagração em Old Trafford

Datam desse tempo as primeiras críticas aos métodos de Zubeldía. Que instruía alguns jogadores para levarem alfinetes escondidos no equipamento, para os usarem em adversários nos cantos e nos livres. Que, nas bolas paradas, tinha sempre um responsável por atirar terra ou areia para os olhos do guarda-redes contrário. Que abusava das lesões simuladas, dos atrasos ao guarda-redes, dos apanha-bolas provocadores, dos insultos cuidadosamente escolhidos, em função de dossiês sobre a vida privada dos jogadores. Tudo isso, a acreditar nas queixas dos adversários, fazia parte do arsenal tático dos Estudiantes.

E, no entanto, os métodos de Zubeldía também eram profundamente inovadores em muitos aspetos que antecipavam o futebol moderno. A pressão alta, a subida em bloco para o fora de jogo, o planeamento minucioso das bolas paradas, no ataque e na defesa, ajudavam a marcar as diferenças, para além do espírito de grupo que cultivava como ninguém. Rinus Michels, por exemplo, reconheceu que alguns dos princípios do futebol total do Ajax e da seleção holandesa passaram pela coordenação defensiva que viu ao Estudiantes, na altura em que a equipa argentina se tornou conhecida na Europa. E não era só no campo que Zubeldía contra-atacava

Os que nos criticam são os mesmos que durante a semana fazem um treinozito de conjunto entre reservas e titulares e julgam que com isso montam uma equipa

Depois de conquistar o título de 1967 o Estudiantes partiu à conquista da America do Sul. Em 1968, por entre uma chuva de críticas ao antijogo, conquistou a primeira de três Taças Libertadores consecutivas, batendo o Palmeiras numa decisão a três jogos. Seguiu-se a coroa suprema, com a vitória sobre o Manchester United na Taça Intercontinental: depois de 1-0 em Buenos Aires, na Bombonera, seguiu-se um empate (1-1) em Old Trafford que, com a ajuda de uma imprensa britânica indignada, tornou mundialmente famosas as táticas subterrâneas dos pincharratas. George Best, a estrela dos red devils, não resistiu às provocações e acabou expulso, juntamente com o lateral esquerdo, Luis Medina, que o seguiu como uma sombra durante todo o jogo

Zubeldía liderou a equipa numa volta de honra pontuada por vaias e assobios. A frase que escreveu no quadro negro, antes do jogo, e que ainda hoje está em exibição no museu do United, era uma síntese perfeita do espírito daquele Estudiantes: «Não se chega à glória por um caminho de rosas»

No verão seguinte, o Estudiantes foi convidado a cumprir uma digressão pela Europa, passeando a fama de campeão mundial. Um torneio em Valencia foi palco de uma saborosa anedota, protagonizada por Carlos Bilardo, o homem que, quando passou de jogador a treinador levou ainda mais longe as ideias do seu mentor. Depois de um empate com a equipa local, no final dos 90 minutos, e numa altura em que os penaltis ainda não eram prática corrente no futebol, o troféu seria decidido pelo lançamento de uma moeda ao ar. Mas até para isso o Estudiantes tinha tática, como contou o capitão Malbernat: «Bilardo veio ter comigo e segredou-me: assim que o árbitro atirar a moeda, e antes que lhe chegue à mão, levanta os braços e começa a festejar. Nós corremos todos para ti, a gritar, e quero ver se alguém se atreve a dizer que não ganhámos»

O auge da violência

Folclores à parte, a conjugação de astúcia tática e antijogo faziam do Estudiantes uma equipa temível, com uma garra a toda a prova, como o demonstraram as duas finais sucessivas da Libertadores, ganhas aos históricos do Uruguai, Nacional e Peñarol. Mas já não chegaram para repetir a glória Intercontinental, em finais perdidas para o Milan e o Feyenoord – a primeira das quais, perante os italianos, pontuada por um festival de violência em campo, que resultou na detenção de vários elementos do Estudiantes, com destaque para as pesadas suspensões do guarda-redes Poletti e do defesa Ramon Suarez, os mais exuberantes nas trocas de socos com os italianos, a polícia e os adeptos.

Por essa altura, já nada podia atenuar a imagem de vilão de Zubeldía, que anos mais tarde avançou uma explicação racional para o mau envelhecimento da sua equipa.

O que se passou connosco depois de 1968 foi que o desgaste nos deixou sem forças. Com tantas digressões e jogos particulares, num clube com pouco dinheiro, que nunca reforçou a equipa, todo o plantel começou a ter problemas físicos. E então os jogadores começaram a poupar-se, quebrando o ritmo de jogo, atirando a bola fora, atrasando ao guarda-redes. Mas aquilo a que chamaram antijogo não era estratégia, era apenas necessidade

O primeiro ano sem troféus assinalou o ponto de viragem na equipa e no trajeto de Zubeldía, que apesar de um título de campeão pelo San Lorenzo, em 1974, nunca mais conseguiu reunir as condições para montar uma equipa tão ambiciosa como os seus pincharratas. Data desse período o debate ideológico entre o ganhar e o jogar bonito, alimentado com César Menotti e prolongado mais tarde, entre outros, por Carlos Bilardo, Jorge Valdano ou Marcelo Bielsa. Na segunda metade da década de 70, Zubeldía, homem de personalidade discreta, reinventou-se como treinador de sucesso na Colômbia, ao serviço do Nacional de Medellín, com o qual conquistou dois títulos de campeão. O segredo? Trabalho, trabalho e mais trabalho. Ou, na sua versão bem-humorada: «Revolucionei o futebol colombiano ao acabar com a sesta».

Foi na Colômbia que morreu em 1982, ainda jovem, com apenas 54 anos. Um enfarte fulminante derrubou-o, quando se dedicava à outra paixão da sua vida, a aposta em cavalos de corrida. Quatro anos mais tarde, o seu discípulo mais fiel, Carlos Bilardo, dedicou-lhe palavras emocionadas após conquistar o Mundial de 1986, com a Argentina de um Maradona melhor do que nunca. E em 1990 Bilardo e o seu staff levaram o Zubeldismo ao extremo, dando ao brasileiro Branco uma garrafa de água misturada com um sonífero, em pleno jogo dos oitavos de final.

Provavelmente, o mestre teria gostado das duas evocações: afinal, essas eram equipas de operários, preparadas para trabalhar, para sofrer, e para deixar um único génio à solta. Só a vitória interessava, o resto era para os otários, ou perdedores. Foi o génio a fazer a diferença? Zubeldía, que em 1970 lamentou a vitória do Brasil no Mundial, em detrimento da Alemanha ou da Inglaterra, por representar o triunfo do talento anárquico sobre a organização, talvez se permitisse duvidar...