No futebol como na vida há palavras que partem de um determinado ponto mas ganham, a certa altura, um significado próprio, completamente diferente do inicial. Aí chegadas, não têm forma de voltar atrás: o que foi não volta a ser, diz-se por aí, com ou sem música de fundo. Um exemplo prático: a palavra catenaccio. Dizê-la numa roda de amigos, entre curiosos do futebol, é quase como invocar o demo: imagens mentais de antijogo, violência, batota, e uma legião de 0-0 envenenam as conversas de forma quase instantânea. E, no entanto, o processo mental que levou ao seu aparecimento, no início da década de 40, está muito longe de merecer essa condenação eterna. Bem pelo contrário, partiu de um fulgurante exercício de lucidez do seu criador, um homem conhecido como John Wayne.

Aqui chegados, e antes que a confusão se instale, convém reparar que ficou escrito um homem conhecido como: em momento algum se afirma que esse homem era o original - tanto quanto se sabe, o John Wayne dos filmes só jogou futebol (e bem) na variante americana.


O John Wayne original, campeão universitário


Giuseppe Viani, ao centro, nos tempos da Lazio

Mas é verdade que as semelhanças físicas entre Giuseppe Viani e o herói dos westerns foram detetadas tão cedo que a alcunha de «Xerife» se lhe colou à pela, a partir do momento em que Wayne se tornou uma estrela mundial com o filme Stagecoach, de 1939.

Nascido em 1907, Giuseppe Viani, Gipo para os amigos, começou por ser um médio razoável, campeão italiano com a Ambrosiana-Inter, onde permaneceu sete temporadas. Como é frequente com homens inteligentes, a sua capacidade para ler o jogo era muito superior ao talento – o que ajuda a explicar que nunca tenha chegado a internacional, num tempo em que a Itália, com empurrãozinho de Mussolini, se sagrou bicampeã do mundo.


Viani, campeão na Ambrosiana-Inter

O trajeto como futebolista passou ainda pela Lazio e a Juventus, antes de se finar, por causas naturais, em clubes modestos, como o Siracusa e a Salernitana. É aqui que consegue a primeira grande proeza como treinador, em 1946/47, quando, numa Itália ainda a braços com os efeitos da II Guerra, consegue levar a modestíssima equipa de Salerno a uma inédita promoção à Série A. O segredo? A melhor defesa de todos os escalões do futebol italiano, com 23 golos sofridos em 32 jogos. A receita? Foi-lhe dada no início da época, durante uma tarde no porto de pesca, a olhar para as redes dos pescadores.

A cena é contada por Jonathan Wilson, no magnífico livro «Inverting the Pyramid», mas é, ela própria, uma adaptação da história que Viani foi contando ao longo do tempo. É duvidoso que tudo se tenha passado exatamente assim, até porque vários estudiosos atribuem papel decisivo no que se seguiu ao capitão da Salernitana, Antonio Valese, com quem Viani discutiu longamente temas táticos. Seja como for, de acordo com a própria versão, o «Xerife» gostava de passear no porto enquanto pensava nos problemas da equipa. E o mais premente, nesse início de época, era a falta de um bom avançado-centro, que permitisse à Salernitana discutir os jogos ofensivamente com os adversários.

A revelação chegou-lhe, contou, ao ver uma traineira a erguer a rede, onde vinha todo o peixe capturado no dia. Por debaixo da rede estava uma outra rede, mais apertada, para apanhar o peixe que deslizava entre os buracos da primeira. A Salernitana, percebeu Viani, não precisava de um mau avançado-centro para andar à pesca lá na frente: precisava, sim, de uma rede com malhas mais apertadas para segurar o peixe atrás.

Do vianema ao catenaccio

Trocando o avançado-centro por um homem extra atrás da defesa, a Salernitana de Viani inseria-se numa linha de evolução tática que tinha o ferrolho suíço, de Karl Rappan, como referência pioneira, antes da Guerra - embora a tivesse também alguns pontos em comum com a revolução empreendida por Herbert Chapman, em Inglaterra. O facto de a Salernitana ter dois extremos rápidos e rematadores dava-lhe o ingrediente que faltava para poder esperar, recuada, pelos ataques adversários, tirando partido do homem a mais na defesa, l’uomo libero. Depois, à medida que a impaciência e o cansaço abriam espaços na outra equipa, vinha a machadada, quase sempre decisiva, quase sempre em contra-ataque.

A receita foi um sucesso com nome próprio: a imprensa não tardou a chamar vianema a essa forma de jogar. E se não bastou para manter a Salernitana entre a elite – na época seguinte desceu à série B, por um ponto – chegou e sobrou para fazer de Viani uma referência do futebol italiano. Nessa temporada, 1947/48, Nereo Rocco, outro jovem treinador, três anos mais novo do que Viani, aplicou um modelo semelhante à modesta Triestina, levando-a a terminar num incrível segundo lugar, apenas atrás do grande Torino.

O uso do libero generalizava-se  no calcio, o  vianema, adaptado, passava a designar-se por catenaccio. Ainda sem conotação negativa, era o recurso, legítimo, das equipas com menos argumentos financeiros e menos valores individuais: sacrificava peso na frente à organização atrás e aproveitava a rigidez tática das melhores equipas, preguiçosas e confiantes na superioridade dos seus jogadores.

A carreira do «Xerife» não se ficou por aí: em ascensão constante, chegou ao Milan em 1956, conquistando dois títulos de campeão, em 1957 e 1959. Pelo meio, teve uma final da Taça dos Campeões perdida por pouco para o grande Real Madrid, que teria consolidado o seu estatuto de grande mago da tática na história do futebol:



Não estava destinado a ser assim: em 1961, Viani foi promovido na hierarquia e passou para diretor desportivo, não sem antes reforçar a sua escola de pensamento, deixando discípulos ilustres, entre eles futuros treinadores como Cesare Maldini e Giovanni Trapattoni.


Viani no Milan: lição tática a um jovem Trapattoni

A consagração suprema do catenaccio, essa, estava reservada para Nereo Rocco, o homem que novamente lhe seguiu as pisadas. Fiel apóstolo do modelo, Rocco conduziu o Milan à vitória sobre o Benfica, na Taça dos Campeões Europeus de 1963, e uma nova era começou no futebol europeu.

John Wayne Viani morreu durante o sono, em 1969, meses antes de o Milan, ainda treinado por Nereo Rocco, conquistar a sua segunda Taça dos Campeões. Por essa altura, já tinham aparecido os títulos do Inter, irmão enjeitado do catenaccio, primeiro treinado por Alfredo Foni, depois por Helenio Herrera. Foi este último, com o seu ego insaciável, que pela insistência no jogo defensivo (e faltoso) e pelas provocações mediáticas, passou a atrair a ira de quase toda a imprensa não italiana. De súbito, o catenaccio deixava de ser visto como um recurso de inteligência, a expressão do direito do mais fraco a fugir ao seu destino, para se transformar num palavrão universal, sinónimo de futebol estragado. Nem Viani nem os pescadores poderiam tê-lo previsto, naquela tarde no porto de Salerno, em pleno verão de 1946.

Soldados desconhecidos é uma rubrica dedicada a figuras pouco conhecidas da história do futebol, com percursos de vida invulgares.