Chama-se Gianni Vio e foi durante muitos anos um homem discreto, que dividia os dias entre o trabalho burocrático e a paixão pelo futebol.

Trabalhava na agência bancária da Unicredit, em Mestre, nos subúrbios de Veneza. Depois de cumprido o expediente, tirava a gravata, despia o fato e ia treinar o Quinto de Treviso, na quarta divisão. Apenas por paixão: porque gostava muito de estratégia e de futebol.

Foi no Quinto de Treviso que orientou dois gémeos, ambos avançados: os dois formavam a frente de ataque e o treinador percebeu como o facto de serem iguais confundia os guarda-redes adversários nas jogadas de bola parada.

«Um dia, numa cobrança de falta, coloquei os dois gémeos à frente do guarda-redes adversário e percebi que ele olhou para eles e não para a bola. Eram tão idênticos que até eu tinha dificuldades em distingui-los.»

Gianni Vio descobriu nesse momento o poder da capacidade de iludir o adversário e deu início a esta história.

Hoje está no Tottenham.

Na ressaca do título europeu da seleção italiana, no Euro 2020, o prestígio do antigo bancário estava em alta. As bolas altas tinham sido uma competência importante na equipa de Roberto Mancini, e por isso António Conte exigiu a contratação do compatriota.

Desde então, o Tottenham marcou quase 40 por cento dos 28 golos já apontados esta época de bola parada. A pertinência da aposta de Conte está, como se percebe, justificada.

«Acabei de lhe dizer que ele merece um aumento salarial. O trabalho dele não é a coisa mais divertida do mundo, mas traz resultados. Ele faz a diferença, como se pode ver: hoje vencemos em uma bola parada», disse Kulusevski após uma vitória sobre o Wolverhampton.

«Três jogos, três golos, não há dúvidas: temos de continuar a ouvi-lo e a fazer o que ele diz. Não me lembro de termos marcado tantos golos de bola parada na temporada passada. Agora sempre que conseguimos um livre ou um canto acreditamos que podemos marcar.»

Walter Zenga deixou-se conquistar pelas ideias de Gianni Vio

Fica o aviso para o Sporting, portanto, numa altura em que o Tottenham segue em terceiro na Liga Inglesa, a três pontos do Man. City e a cinco do Arsenal, e lidera o Grupo D da Liga dos Campeões, a uma vitória do apuramento para os oitavos de final da competição.

Mas o que tem Gianni Vio de especial, afinal?

Nesta altura convém voltar atrás, ao dia em que o italiano colocou os dois gémeos à frente do guarda-redes adversário, para sublinhar que foi nesse momento que percebeu o potencial que tinha ali, nas jogadas aéreas, e foi então que se apaixonou por livres, cantos e penáltis.

Especializou-se nisso, diz até que criou mais de 4.800 jogadas diferentes, e com o psicólogo Alessandro Tettamanzi escreveu «Aqueles trinta por cento extra»: um livro que era vendido juntamente com um CD a explicar todos os esquemas de bola parada, com imagens de apoio.

O livro foi lançado em 2004 e nunca chegou ao grande público: teve uma distribuição pequena e quase exclusivamente para puristas das táticas do futebol. Mas por um feliz acaso chegou à secretária de Walger Zenga, que na altura treinava o Estrela Vermelha.

O nome grande do Inter Milão procurou e encontrou na última página do livro um contacto do autor. Enviou-lhe então um email e os dois começaram a conversar regularmente por telefone.

No ano seguinte, quanto foi orientar o Al Ain, o treinador convidou Gianni Vio para ir passar vinte dias aos Emirados Arábes Unidos e explicar as bolas paradas aos jogadores.

Até que em 2008 Walter Zenga foi chamado para treinar o Catania. Nessa altura insistiu com o diretor desportivo Pietro Lo Monaco para contratar um funcionário de um banco de Veneza que era especialista em bolas paradas. Pietro Lo Monaco achou que era mais uma excentricidade de Zenga, mas aceitou: Gianni Vio não abandonou o trabalho no banco, mas à quinta-feira à noite viajava de Veneza para a Sicília, para trabalhar as bolas paradas com os jogadores. No domingo à noite voltava para casa para retomar o trabalho no banco.

Logo no primeiro jogo do campeonato, com o Nápoles, o Catania fez dois dos três golos de bola parada. Depois, frente ao Torino, o mundo desatou a rir: três jogadores saíram da barreira e fizeram uma segunda barreira em frente ao guarda-redes, depois voltaram para a barreira e um deles baixou os calções. O adversário distraiu-se e o Catania fez golo de livre.

«Trabalhamos aspetos como quem remata e quem tem de receber a bola na área, quem se movimenta e quem dá alternativas para surpreender os adversários. Tem que se analisar os jogadores que existem no grupo e encontrar soluções para as suas qualidades», explicou.

A glória na seleção italiana ao lado de Roberto Mancini

O trabalho de Gianni Vio foi um sucesso e o Catania fez 17 dos 44 golos de bola parada. Por isso Walter Zenga insistiu em levá-lo no ano seguinte para o Palermo.

Deixou então o trabalho no banco e seguiu com Montella para a Fiorentina e com Inzaghi para o Milan. Passou por Brentford e Leeds, antes de voltar a Itália, para trabalhar no SPAL novamente com Zenga. O resultado da aposta dos clubes é sempre bom e Gianni Vio foi evoluindo na sua capacidade de criar situações de golo através das bolas paradas.

Por isso em 2012 lançou um segundo livro. «Bola parada - um avançado de 15 golos», foi o título da obra nascida na sequência de uma tese que apresentou na Federação Italiana.

Foi então que nove anos depois, e enquanto trabalhava no SPAL, o ex-bancário acabou recrutado por Roberto Mancini para integrar a seleção italiana na preparação para o Euro 2020.

O selecionador acreditava que numa competição tão curta e nivelada, os livres, cantos e penáltis podiam ser determinantes. As bolas paradas tornaram-se então uma das maiores valências da equipa italiana, que acabaria por surpreendentemente ser campeã europeia.

O golo da final, aliás, nasceu de um canto, por exemplo.

A lógica dos jogos sequenciais aplicada ao futebol

«Explicar os sentimentos que vivi no Euro 2020 é impossível, são muito íntimos. Vestir a camisola da seleção, viver aquele ambiente, partilhar tudo isso com Mancini, Vialli, Oriali, Lombardo, Salsano, Evani e todos os jogadores foi algo realmente especial», confessou.

«A minha função passou por propor jogadas e exercícios de treino específicos para as bolas paradas. No futebol de hoje, em que há um nivelamento cada vez maior na preparação atlética e tática das equipas, 32,5 por cento dos golos nascem dessa forma. Por isso eu acho que esse aspeto pode fazer a diferença.»

O golo marcado ao País de Gales foi aliás um bom exemplo da qualidade do trabalho com as bolas paradas. Bonucci e Bastoni colocaram-se em fora-de-jogo para bloquear a visão do guarda-redes, Verratti e Bernardeschi ficaram para bater a bola, quando o jogador do PSG começou a correr os dois centrais voltaram para jogo, gerou-se a confusão e Pessina ficou solto: passou na frente do primeiro homem, recebeu a bola e finalizou de pé direito para golo.

«As bolas paradas dão a possibilidade de decidir quantos jogadores meter na área e que zona atacar. É como um jogo de xadrez, o primeiro lance segue a lógica dos jogos sequenciais. Por isso obrigado o adversário a fazer escolhas forçadas.»

Mas há mais, claro.

Gianni Vio tem uma capacidade de tornar as equipas imprevisíveis nestes lances específicos, o que funciona também no aspeto psicológico: quando os jogadores fazem a dupla barreira, por exemplo, que é a imagem de marca do italiano, gera-se um certo pânico do outro lado.

Os adversários conhecem a especialidade das equipas de Gianni Vio e não conseguem evitar alguma pressão pela imprevisibilidade de um tipo de jogadas que é muito trabalhado e testado no maior sigilo, durante os treinos à porta fechada da semana.

O italiano diz que os golos de bola parada têm um peso entre 30 e 40 por cento nas suas equipas, o que o Tottenham confirma: 39 por cento dos golos marcados esta época foram dessa forma. Exatamente 11 de 28 golos, o que inclui três de penálti. Lapidar, não é?

António Conte sabia o que estava a fazer quando o levou para Londres.