Tirana é um lugar, agora mais fácil de encontrar.
 
Mas nem sempre foi assim. Como cantavam os GNR, em 1985 Tirana era sofrimento, era ferida e unguento. Foi nessas condições que o Sporting visitou o país, para defrontar o Dínamo local numa eliminatória que destacou um adolescente de 16 anos: Abazaj.
 
O Sporting empatou 0-0 fora de casa, venceu 1-0 em Alvalade e seguiu em frente. Mas para lá do resultado, ficou sobretudo o peso do regime comunista da altura.
 
«Aquilo era extremamente pobre», conta Manuel José. «Se me dissessem que havia um país assim na Europa, eu não acreditava. Só para se ter uma ideia, apenas a rua principal de Tirana era asfaltada, tudo o resto era em terra batida.»
 
Manuel José era o treinador de uma equipa que contava com craques como Damas, Jordão, Manuel Fernandes, Jaime Pacheco, António Sousa, Venâncio e Oceano.


 
Apesar do valor da equipa, a eliminatória foi complicada. Muito complicada.
 
«Empatámos 0-0 em Tirana num jogo muito difícil, no qual o Damas fez uma série de defesas. Na segunda mão caímos em cima deles, mas num contra-ataque o Abazaj ultrapassa o Damas, remata e só não marca porque o Gabriel tirou a bola em cima da linha de carrinho», recorda Manuel José.
 
«Logo a seguir, na sequência de um canto, o Venâncio marca o golo da vitória. Mas se o Abazaj marca aquele golo, acredito totalmente que nós teríamos sido eliminados.»
 
É difícil compreender que o Sporting fosse eliminado por uma equipa de um país tão modesto, fechado e escondido atrás da cortina de ferro. Mas é verdade.
 
A explicação, dizem, é simples.
 
«A Albânia era um regime comunista, não circulava informação, não entravam ou saíam vídeos. Por isso nós não sabíamos nada do Sporting, mas sobretudo o Sporting não sabia nada de nós e não se pôde preparar. Foi um confronto puro», recorda Abazaj.
 
«O Dínamo tinha bons jogadores, tinha um técnico que acumulava oito ou dez cursos de treinador na Europa, era uma equipa muito física. Depois havia aquele fervor patriótico, o estádio estava cheio, tudo em cores cinzentas, muito tristes, muitos militares...»
 
No fundo o maior adversário do Sporting não foi propriamente o Dínamo de Tirana, foi o comunismo. Embrulhado num sentimento nacionalista típico dos regimes fechados.
 
«Ninguém entrava ou saía na Albânia sem uma autorização especial, muito difícil de conseguir. Recordo-me que o avião andou meia hora às voltas no céu até obter autorização para aterrar. Era uma realidade desconfiada e muito militarizada», diz Manuel José.


 
«Quando lá chegámos, foi um choque. Não havia gordos nas ruas. As nossas bagagens foram transportadas numa carrinha de caixa aberta. Era normal o clube visitado fornecer um campo para treinar e bolas, nós não tivemos nada, diziam que não tinham.»
 
No jogo da segunda-mão, em Alvalade, aconteceu até um episódio caricato.
 
«Conta-se que o Damas ofereceu as luvas ao guarda-redes do Dínamo, é mentira. Eles é que lhe pediram um par. Diziam que o guarda-redes não tinha... Ter, de certeza que tinha, não ia jogar sem luvas. Mas quiseram aproveitar para ficar com aquelas.»
 
Voltando ao jogo em Tirana, interessa dizer que deu nas vistas Abazaj. O albanês era nessa altura um adolescente de 16 anos, a um mês de cumprir 17, que fazia a primeira temporada enquanto jogador profissional. Mas não a tempo inteiro.
 
«Nessa altura estava na tropa. Tinha sido colocado na tropa da polícia, porque jogava no Dínamo, que era o clube da administração interna do país, que controlava as polícias. Penso que fazia o meu primeiro de três anos obrigatórios de tropa», conta.
 
«Estava na tropa e saía para treinar ou para jogar.»
 
Um vídeo que ainda existe da altura permite perceber um jovem alto, forte no jogo aéreo, intenso e muito rápido. Um perigo para a baliza de Damas.


 
Ora quem se lembra de Abazaj a jogar em Portugal, onde de resto ainda vive, surpreender-se-á com o facto de ver naquela altura um avançado: ali a pisar os terrenos de ponta-de-lança. Abazaj, recorde-se, sempre foi central, ou pontualmente lateral, na liga portuguesa.
 
«É verdade, comecei como avançado. Fui o melhor marcador da Albânia enquanto durou o regime comunista. Só com a chegada da democracia é que fui ultrapassado.»
 
A democracia, por falar nisso, chegou em 1990, com o desmantelamento da cortina de ferro. Nessa altura o país mudou, as fronteiras abriram-se e Abazaj saiu para o Hadjuk Split, da Croácia, onde o Benfica o foi contratar em 1993.
 
O Hadjuk Split é uma parte decisiva da história de Abazaj, aliás: convém sublinhar o clube croata, até porque foi lá que foi convertido em defesa central.
 
«O Slaven Bilic estava lesionado, o treinador teve de adaptar alguém e adaptou-me a mim. Nunca mais voltei a ser avançado.»
 
Foi nessa qualidade que jogou em Portugal, ao serviço de Benfica, Boavista e Académica. A primeira vez que os encarnados o viram jogar, porém, ainda era avançado: frente ao Sporting era um miúdo de 16 anos, irrequieto e dinâmico, um perigo à solta no fundo.


 
«Em Tirana podia ter feito três ou quatro golos e em Alvalade podia ter feito também um golo. Fomos infelizes, podíamos perfeitamente ter ganho a eliminatória.»
 
Vale à formação leonina que não foi a única vítima daquele Dínamo. Abazaj recorda o caso de um gigante europeu que quase caía da Taça dos Campeões Europeus.
 
«No ano a seguir jogámos com o Barcelona, estávamos a ganhar 2-1 aos noventa minutos em casa, mas um golo do Lineker empatou o jogo. No Camp Nou empatámos 0-0 e fomos eliminados pelos golos fora... por causa daquele golo do Linener nos descontos.»
 
Manuel José lembra-se dessa eliminatória, foi aliás consultado por um amigo da equipa técnica do Barcelona que não conseguia saber nada do Dínamo Tirana, mas lembra-se também da viagem a uma Albânia muito estranha.

Lembra-se por exemplo que um amigo lhe pediu uma garrafa de vinho.
 
«Era um colecionador de vinho e pediu-me uma garrafa, porque era exótico. Lá fui comprar-lhe o vinho, paguei em dólares e eles deram-me de troco uma boquilha de cigarro», revela. «Naquela altura a Albânia era assim: funcionava por troca de géneros.»
 
«Incrível, não é?»
 
É sim senhor. Abazaj, já agora, sorri quando se lembra da antiga Albânia.
 
«No final do jogo em Tirana tirei uma fotografia com o Manuel Fernandes, mas teve de ser às escondidas. O regime não deixava ter recordações de estrangeiros», refere. «Por que tirei com Manuel Fernandes? Não sei, calhou. Não o conhecia e não sabia que era bom jogador. Nessa partida joguei muito melhor do que ele, aliás.»
 
É verdade: tanto assim que o Benfica nunca se terá esquecido dele.