Paul Doswell treina de borla o Sutton United. Aliás, até paga para trabalhar, porque além de não receber patrocina o clube da quinta divisão que chegou aos oitavos de final da Taça de Inglaterra e vai receber o Arsenal nesta segunda-feira. O Sutton é o segundo clube do primeiro escalão semi-profissional nesta fase, a sonhar repetir a proeza do Lincoln, também da National League e que se apurou no sábado para os quartos de final, ao vencer em casa do Burnley. Aliás, o sorteio ditou que o Lincoln vai defrontar precisamente o vencedor do confronto entre Sutton e Arsenal.

A diferença é que o Sutton vai defrontar um gigante da Premier League na sua própria casa. No Borough Sports Ground, ou Gander Green Lane: cinco mil lugares, o máximo a que o Arsenal teve direito foram 700 bilhetes. Um genuíno estádio de clube amador.

Mas com um relvado artificial de última geração, pago por Doswell. Foi o treinador quem emprestou o dinheiro para instalar o novo relvado do Borough Sports Ground, ou Gander Green Lane para os adeptos. Um tapete artificial que é o orgulho do clube. O resto é o que se vê.

Em menos de uma semana, o Arsenal passa da Arena de Munique para aqui. Este é o balneário dos visitantes, é aqui que os jogadores do Arsenal vão equipar-se. 

É o que há, diz Paul Doswell. «Pensámos em pôr chuveiros novos, mas só por dois segundos. Depois pensámos: «Não, não fizemos isso para mais nenhuma das equipas que aqui vieram». Apenas porque não temos dinheiro para isso. A caldeira está um caco. Na melhor das hipóteses vão ter água morna», afirmou o treinador a um batalhão de jornalistas que encheu a pequena sala que serviu para a conferência de antevisão do jogo.

O Sutton teve o seu «media day» e abriu as portas do estádio. Não foi apenas um dia, as últimas semanas foram uma verdadeira loucura para o clube do sul de Londres que subiu esta época à National League, o quinto escalão do futebol inglês, é 17º no campeonato mas foi avançando na Taça de Inglaterra, até afastar na ronda anterior o Leeds e marcar encontro com o Arsenal. Desde o fim da II Guerra Mundial só chegaram a esta ronda da Taça nove clubes do quinto escalão. E esta época foram dois. Além do Sutton o Lincoln, que é o líder da National League e que no sábado, ao vencer em casa do Burnley, por 1-0, se tornou no primeiro clube dos campeonatos não profissionais a chegar aos quartos de final da Taça de Inglaterra em mais de 100 anos.

Paul Doswell treina o Sutton há nove anos, mas a vida dele é gerir uma empresa imobiliária, através da qual patrocina o clube. «Não lhe pagamos. Na verdade, não só não lhe pagamos um tostão como ele nos patrocina. Portanto, está a pagar-nos para ser o nosso treinador», contou o presidente do clube, Bruce Elliot, ao «Telegraph».

Doswell foi pagando do seu bolso pequenas melhorias no estádio e há dois anos decidiu investir o meio milhão de libras necessário para o novo relvado. O acordo com o clube foi um empréstimo sem juros a dez anos.

«Não quero necessariamente o dinheiro de volta. O que consegui fazer foi ajudar o clube a desenvolver-se mais depressa, sem dívida bancária. E o relvado foi importantíssimo para isso. As nossas equipas jovens treinavam em 20 sítios diferentes. Agora conseguimos juntá-las. Centenas de miúdos usam-no», disse Doswell ao «Telegraph». «Mas é filantrópico. É filantrópico para meu proveito. Porque sem o futebol na minha vida, eu não estaria bem. Sei disso e é a razão por que faço isto.»

O Sutton é um clube de espírito amador. Um relvado artificial não é permitido na Football League, ou seja, a partir do escalão seguinte na escada do futebol inglês, a League Two. Portanto, se um dia subir o Sutton terá de colocar um relvado natural. Doswell nem pensa nisso: «Não tenho ambição de chegar à Football League. Se chegássemos a um play-off acho que ia ser um pânico aqui. É um clube liderado por voluntários. Eu trabalho, o presidente trabalha, nenhum de nós podia lidar com a quantidade de coisas com que é preciso lidar na Football League. Preferimos ser o melhor clube abaixo da League que conseguirmos ser.»

Portanto, objetivo atingido esta época. Aconteça o que acontecer esta segunda-feira com o Arsenal. Doswell é pragmático quanto às hipóteses do Sutton: «Se virem o Ozil ou o Alexis Sanchez na ficha de jogo as nossas hipóteses não vão para lá de zero. Se puserem outro onze, sobem para um ou dois por cento.»

O que o Sutton queria, continua, era um 0-0: «Se conseguissemos um empate e fossemos ao Emirates seria um dos melhores resultados na nossa história. Metade dos jogadores da nossa equipa são adeptos do Arsenal, por isso ir ao Emirates e viver um grande dia seria o resultado preferido deles.»

Nem toda a euforia em volta da campanha do Sutton na Taça deslumbra Doswell. «O que ganharmos não vai ser para comprar jogadores. Precisamos de quatro balneários para os jogadores mais jovens. Não sei se vão conseguir ver bem na segunda-feira, porque as torres de iluminação estão num estado lastimável», diz o treinador, aproveitando para piscar o olho a uma ajuda do Arsenal, que terá mostrado abertura para abdicar da sua parte da receita do jogo, incluindo 250 mil libras dos direitos televisivos: «Houve conversas sobre eles poderem dar-nos o dinheiro da TV. Mudaria todo este clube para o futuro.»

Wayne Shaw, 46 anos, 120 quilos, o guarda-redes e funcionário que dorme no sofá

O Sutton é um clube de espírito amador. Só um clube assim podia ter como guarda-redes suplente Wayne Shaw. 46 anos, 120kg.

A imagem dele no banco no jogo com o Leeds correu mundo. E Wayne Shaw tornou-se uma celebridade nas últimas semanas. «Até houve um jornal que me pediu para posar nu. Só de luvas. Foi a coisa mais estranha que me aconteceu», contou ao «Daily Mail».

Shaw tem uma longa ligação ao Sutton, embora a sua profissão tenha sido durante muito tempo vender gelados. A ligação ao clube foi aliás interrompida em 2013, quando o Sutton o despediu depois de agredir um adepto que passou todo o aquecimento a provocá-lo por causa do peso. «Tive um dia mau.»

Pouco mais de um ano depois o clube foi buscá-lo outra vez. Faz parte do plantel – lá está, é um dos guarda-redes suplentes – mas é uma espécie de faz-tudo no Sutton. Também ajuda nos treinos das camadas jovens e é ele o responsável pelo relvado, que o clube aluga. Como mora a mais de 100 quilómetros de distância, durante três dias por semana dorme no estádio.

«Recebo as pessoas, faço-as sentir bem vindas», conta ao «Daily Mail». «Depois, a cada 10 horas de uso do relvado, tenho de varrê-lo, é assim que se faz a manutenção de um relvado artificial. Moro no sul e venho ao estádio para trabalhar de segunda a quarta-feira e depois para treinar na quinta-feira, antes de voltar para casa. Tenho de apagar as luzes do estádio todas as noites por volta das 22h00 por isso durmo aqui no sofá à segunda, terça e quarta-feira. Não tenho a certeza que os rapazes do Arsenal façam o mesmo. Vou perguntar-lhes.»

O Sutton encarna o verdadeiro espírito da Taça de Inglaterra, num tempo difícil para a mais velha competição do mundo. Apertada no calendário, tem sido menosprezada pelos clubes grandes, que optam muitas vezes por fazer rodar jogadores menos utilizados. Uma tendência que não é claramente apenas inglesa.

O debate sobre o futuro e o respeito pela competição, ou a falta dele, renasce todos os anos. Esta época reforçado pela eliminação de clubes como o Liverpool, que jogou com um onze alternativo e caiu frente ao Wolverhampton. E com a ideia de que muitos dos grandes até veem com bons olhos uma saída precoce da Taça. Precisamente o Liverpool aproveitou esta paragem prolongada a meio da temporada para fazer um estágio em Espanha, que Jurgen Klopp admitiu funcionar como uma segunda pré-época. Várias das equipas de Premier League já eliminadas fizeram o mesmo: o Everton foi para o Dubai, o Sunderland para Nova Iorque, o Hull City de Marco Silva está no Algarve.

O espírito da Taça, mas com um patrocínio polémico

Por contraste, o Sutton é a Taça de Inglaterra em estado puro. Mas esta semana fez algo que divide os adeptos neutrais. E também os adeptos do próprio clube. O Sutton aceitou um patrocínio do «The Sun» especial para o jogo frente ao Arsenal, com o argumento de que o dinheiro «vai ajudar muito a desenvolver o clube». O «Sun» é o jornal na origem da informação falsa sobre Hillsborough, há 28 anos, que colocou o ónus da tragédia sobre os adeptos do Liverpool e foi a narrativa oficial durante muitos anos, contestada pelas famílias das vítimas numa longa e dolorosa batalha judicial e agora oficialmente desmentida.

Um tema muito sensível para os adeptos ingleses e que levou o próprio Liverpool a avançar com uma posição forte. Depois de muito debate sobre o assunto, o Liverpool decidiu deixar de dar a jornalistas do «Sun» acreditação para os jogos em Anfield.