Há dois dias, este homem de cabelo branco e já com a curvatura própria da idade celebrou 82 anos. Há 57, celebrou um golo. Um golo que lhe valeu um rol de entrevistas nesta semana e um lugar na História do futebol português. Como se vai perceber adiante, por muito pequeno que possa parecer, um golo no Jamor é muito mais do que um golo. Fernando Pires marcou ao Benfica numa final única, que tem reedição este sábado na Covilhã. Na lucidez de 82 anos, o antigo júnior da Luz explica a mudança para a Serra, como se bebia vinho nas manhãs dos jogos e tem uma certeza: «Se lá tivesse ficado, era campeão europeu de certeza!»



FERNANDO PIRES é o segundo da direita, na fila de baixo (foto: arquivo pessoal)

A história é mais conhecida pelo lado de Cavém. Domiciano jogava no Sp. Covilhã com o irmão, mudou-se para o Benfica e é um dos poucos bicampeões europeus com nacionalidade portuguesa. Para isso, Fernando Pires teve de abdicar de um grande desejo. E não, ao contrário do que seria habitual, em 1954 ou agora, não era jogar no Benfica…

«Eu estava nos Leões de Santarém e quando acabou a época o Benfica chamou-me de volta», conta o ex-futebolista ao Maisfutebol, na Covilhã, onde vive.

«Foi no ano em que veio o Otto Glória, alguns jogadores, como eu, nem tiveram defeso e o Otto Glória nem me queria dispensar», continuou. 

O FC PORTO VÍTIMA NO CAMINHO PARA O JAMOR    

Fernando Pires narrou: «Mas eu não quis ficar! Santarém foi o sítio em que mais gostei de jogar, por isso, fui à secretaria do Benfica e disse que gostava de ir para lá.»

O Benfica deu-lhe um rotundo não! «Mas deu-me três hipóteses: ir para Évora por troca com o Zé Pedro, Braga por troca com o Gabriel, Covilhã por troca com o Cavém.»

Chegou à Cova da Beira em 1954. «O Benfica deu-me 500 escudos, o bilhete custava 100. Mandaram-me naquilo que era conhecido como o Comboio do Peixe. Viajei de noite e cheguei às sete da manhã. Levava uma troca de roupa e a escova de dentes. E disseram-me que tinha de sair no apeadeiro de Tortosendo. À minha espera estava a direção.»

Fernando Pires viajou num «Boca de Sapo» e pouco depois encontrou um húngaro que, sublinha, tinha tanto de bom treinador como de mau feitio: «Dizia-nos cada coisa, nenhum jogador hoje ouve aquilo de certeza!»

Outra coisa que ouviu Fernando Pires foi uma conversa entre um diretor do clube e o treinador, Janos Szabo, uns anos mais tarde. «Sabe o que ele disse? “Podem trazer quatro como o Cavém que este já não sai!” É por causa disto que o ex-reserva da Luz afirma: «Se eu tivesse ficado no Benfica, tenho a certeza de que seria campeão europeu. Mas não me arrependo!»

O golo e o falhanço

O Benfica vencia no Jamor por 2-0. Tinham marcado Salvador Martins (12min) e José Águas (15min).

«Eu posso dizer que joguei lá cinco vezes! Em finais de taça de juniores, duas vezes contra o FC Porto, uma contra o Sporting, outra contra o Belenenses. E ainda joguei lá numa festa da Cruz Vermelha. Qualquer futebolista gostava de jogar no Jamor. Há futebolistas que têm anos e anos de carreira e nunca pisaram o relvado do Estádio Nacional. Ainda hoje é especial.»

A razão pela qual um golo no Jamor é diferente é essa: no meio da grande festa, o resultado, se dilatado, pode levar a celebrações contidas. Mas um golo no Jamor perdura. As inúmeras entrevistas de Fernando Pires a jornais, rádios e tvs assim o provam.

Na altura, Pires e companheiros tinham um ritual, com a exceção de dois elementos, Fernando Cabrita e Lãzinha, e com a exceção da final da Taça de Portugal.

«O Fernando Cabrita era um homem excecional. Ao contrário da maioria de nós, não bebia, nem fumava. Naquela altura, quando íamos fora, partíamos sempre às 14 horas de sábado. Depois dormíamos em estágio. No domingo de manhã, antes dos jogos, havia o hábito de bebermos um copinho de branco. O Cabrita e o Lãzinha, que não eram dessas coisas, deixavam-nos ir e ficavam com atenção a quem vinha.»

O hábito matinal foi quebrado, porém, na manhã de 2 de junho de 1957. «Não houve copo de vinho nenhum. Ficámos em Colares e depois seguimos para o estádio.»



FERNANDO PIRES CELEBROU 82 ANOS A 15 DE OUTUBRO

Ao fim de 19 minutos em campo, Fernando Pires entrou na lista de marcadores de finais da Taça de Portugal. «O Manteigueiro apanhou a bola, perto do bico da grande área e passou-ma. Do lado direito, chutei de fora da área e ela entrou. Às vezes vamos para cruzar e a bola entra», encolheu os ombros.

Mais fresca na memória está, porém, uma jogada imediata. «Depois de ter feito o 2-1, passei o Ângelo e fiquei só com o José Bastos pela frente. Podia ter feito golo e não fiz…»

Um lamento que Pires carregou, e carrega, nos últimos 57 anos, também por causa do 3-1 de Mário de Coluna, a fechar as contas e a dar a Taça ao Benfica.