Esta é uma daquelas narrativas que nos mostra que o jogo não é só futebol: é desporto, e tudo o que traz por arrasto. Empatia, respeito, amizade, companheirismo.

Mas vamos por partes.

O último domingo, refira-se, esteve longe de ser feliz para o Montalegre. A equipa transmontana recebeu o São João de Ver, para a Taça de Portugal, até começou por estar em vantagem, mas permitiu a reviravolta do adversário. No final do jogo, o 3-1 no marcador atirou o Montalegre para fora da competição, e deixou naturalmente um amargo de boca.

Apesar disso, o clube transmontano não olhou para o lado quando o São João de Ver precisou de ajuda. Durante cerca de cinco horas, ficou ao lado do rival da Liga 3.

«O autocarro deles avariou e não podíamos deixar os homens na rua, não é?»

Poder até podiam, responde-se.

«Sim, podíamos, mas para nós isso estava fora de questão. Nós prontificámo-nos a ajudar no que fosse preciso. Cedemos instalações, ajudamo-los com a alimentação e estivemos com eles até que chegou o mecânico», conta o presidente Paulo Reis.

O São João de Ver recorreu já esta segunda-feira às redes sociais para agradecer. Numa mensagem em que revelou o episódio e repetiu a palavra obrigado.

«Obrigado por demonstrarem o verdadeiro significado do PuroFutebol. Obrigado por nos abrigarem, cederem-nos as vossas instalações e ficarem do nosso lado até termos transporte para regressar a casa. Obrigado!»

Nesta altura vale a pena referir que o jogo tinha acabado por volta das 16.30 e a equipa do São João de Ver estava pronta para sair três quartos de hora depois. No entanto, só seguiu viagem já depois das dez da noite. Isto porque foi preciso esperar pelo mecânico da empresa que tinha alugado o autocarro e que vinha... de Santa Maria da Feira.

«Estava muito frio quando acabou o jogo. O autocarro avariou logo aqui à saída do estádio, eles estavam a tentar resolver o problema e percebemos que ia demorar. Convidámo-los para entrar. O nosso estádio é pequeno, mas temos uma sala da direção, montámos lá umas mesas, fomos saber das cadeiras que havia e preparámos a sala para 35 pessoas», conta.

«Ligámos a televisão e estiveram lá a ver futebol o tempo todo. Não estiveram nada mal. Acabaram de ver o Liverpool com o City, depois viram o Sp. Braga com o Felgueiras e ainda viram o Varzim-Sporting. Foi um domingo de futebol: tiveram bola das duas às dez da noite.»

Pelo meio ainda foi necessário, claro, tratar do jantar para toda a gente.

«Eles tinham encomendado pizzas para fazer o lanche após o jogo, mas como ficaram até mais tarde quiseram frango de churrasco. Fomos a duas churrascarias aqui em Montalegre, mas infelizmente estavam ambas fechadas. Os frangos acabaram por vir de Chaves. Cedemos as bebidas que tínhamos aqui no estádio: águas, cervejas, vinho, enfim.»

Enquanto isso, esteve sempre alguém do Montalegre com a comitiva adversária. O próprio presidente só saiu para ir jantar a casa, dois vice-presidentes também auxiliaram o adversário.

Feitas as contas, o domingo não saiu barato ao clube transmontano: nem em resultados desportivos, nem em desgaste, nem em tempo.

«Nós temos uma boa relação com a direção do São João de Ver, mas mesmo que fosse outro clube seria a mesma coisa. Também gostaríamos que nos pudessem acolher numa situação destas, que pode acontecer a qualquer um», adianta o presidente Paulo Reis.

«Durante os noventa minutos somos adversários, mas depois somos amigos e estamos aqui para nos ajudar. Temos de ser uns para os outros.»

O espírito da Taça também é este, e o futebol faz mais sentido quando vivido com amigos.

OUTRAS SITUAÇÕES DE SOCORRO ADVERSÁRIO:

1. Não podem vir? Esperem aí que o nosso autocarro vai buscá-los

Em janeiro de 2020 o São Pedro Fins ia a caminho de Paredes, para defrontar o Baltar, quando o motor do autocarro se avariou ainda na autoestrada. A reação do clube foi avisar de imediato os árbitros e o adversário de que não ia comparecer, o que correspondia a uma derrota. Foi nessa altura que o presidente da Mesa de Assembleia do Baltar, que é também motorista, pegou no autocarro, foi buscar o adversário à A41 e levou-os até ao campo. No fim, o São Pedro Fins ainda ganhou por 3-1. «Mandámos lá o nosso autocarro e resolvemos o problema aos homens. Iam pagar uma multa e perder o jogo... quer dizer, infelizmente perdemos nós, mas foi no campo», explicou o presidente do Baltar.

2. Nós tratamos do vosso almoço, não se preocupem

Em fevereiro de 2021, o mundo lutava ainda contra a covid-19 e o futebol já tinha regressado. A Olhanense ia jogar ao Bonfim, frente ao V. Setúbal, mas a situação pandémica tornava difícil encontrar alimentação para os atletas almoçarem antes do jogo: os restaurantes estavam fechados ou com limitação de espaço. Foi então que o Amora, que até era adversário no Campeonato de Portugal, veio em auxílio da formação algarvia e falou com a empresa de catering que os apoiava para providenciarem a alimentação. Os jogadores tinham então o almoço à espera na área de serviço de Alcácer do Sal, a caminho de Setúbal. «Com a situação atual que vivemos, o espírito desportivo tem de ser maior que nunca. Só assim o futebol irá sobreviver e erguer-se mais forte», explicou o Amora.

3. Ó raios, será que foi da galinha preta?

Em janeiro de 2016 o V. Setúbal foi jogar ao Bessa, numa deslocação que começou a correr mal muito antes da equipa entrar em campo. À chegada ao Porto, o motorista do autocarro calculou mal uma manobra e partiu o cárter do motor. O V. Setúbal acabou por ser goleado por 4-0, por um Boavista em crise de resultados, e após o jogo não tinha autocarro. Foi o adversário quem lhe resolveu o problema: emprestou-lhe o próprio veículo para regressar a Setúbal, enquanto o autocarro da equipa sadina ficava no Porto para ser reparado. Curiosamente, antes do início do jogo um adepto axadrezado lançou uma galinha preta para o relvado e o bicho claramente exagerou: bastava acabar com a malapata de resultados, não era preciso deixar o adversário sem transporte.

4. Deixem-me passar que eu sou bombeiro

Esta história aconteceu em junho de 2021, num jogo dos Distritais de Viseu. O Travanca recebia o Parada de Ester, quando Luís Rodrigues, o guarda-redes da equipa da casa, saiu a correr do campo e abandonou a baliza. «Foi aos 87 minutos. Os adeptos começaram a gritar por mim, porque sabiam que trabalho no pré-hospitalar. Eu nem pensei, abandonei o jogo, dirigi-me a eles e percebi que estava um senhor de 32 anos, que tinha feito uma convulsão com antecedentes de epilepsia.» Além de guarda-redes, Luís Rodrigues era tripulante de ambulância de socorro, no posto de emergência médica dos Bombeiros Voluntários de Viseu. «Avaliei a situação, coloquei a pessoa em posição lateral de segurança, pedi para chamarem o 112 e expliquei o que deviam fazer se voltasse a acontecer.» O adepto adversário foi então levado para o hospital e o guarda-redes do Travanca, de 28 anos, recebeu um cartão branco.

5. O vosso autocarro avariou e o meu carro está a arder

Em fevereiro de 2016, o Oriental fez uma longa viagem até Trás-os-Montes para defrontar o Desp. Chaves. No regresso a casa, o autocarro avariou e já não saiu da Área de Serviço do Vidago, ali a 30 quilómetros da cidade transmontana. Às onze da noite ainda não havia solução e os jogadores do clube lisboeta já se preparavam para dormir dentro da viatura. Foi então que a história chegou aos ouvidos de responsáveis e jogadores do Desp. Chaves, que rapidamente mobilizaram uma série de viaturas particulares para ir buscar as 21 pessoas. Pelo caminho ainda falaram com um restaurante da cidade, que reabriu de propósito para servir o jantar aos jogadores do Oriental, e entraram em contacto com um hotel para providenciar as dormidas. Tudo suportado pelo Chaves. A bonita atitude custou caro sobretudo ao guarda-redes Paulo Ribeiro. Quando dava boleia aos adversários, perdeu o carro: a viatura incendiou-se e ardeu completamente.

6. Olhó pão com chouriço fresquinho

Em janeiro de 2019, com o frio a bater recordes anuais, o Famalicão decidiu dar uma prova de como se deve receber um adversário: ofereceu pães com chouriço... aos adeptos do Estoril. O jogo realizou-se numa segunda-feira à noite, o Municipal 22 de Junho acolheu mais de quatro mil adeptos, alguns dos quais tinham viajado, seguramente com grande sacrifício, desde o Estoril. Para tornar a noite mais agradável, a direção do Famalicão ofereceu uma caixa de pães com chouriço aos adversários. O que estes agradeceram, como se percebeu pelas publicações nas redes sociais. Curiosamente, uma semana antes, o Famalicão já tinha feito o mesmo em Coimbra, mas com os seus próprios adeptos: encomendou 65 pizzas, que ao intervalo foram entregues na bancada. Foi um bonito desfile de caixas de pizza pelo relvado do Cidade de Coimbra.