O dia 4 de setembro de 2016 vai ficar para sempre na história do Clube Cultural Recreativo de Raimonda e da... Taça de Portugal.

Este «humilde» clube do concelho de Paços de Ferreira, que paga aos seus jogadores em bifanas e sumos ao fim dos jogos, disputou uma eliminatória da prova rainha do futebol português.

Os mais atentos dirão que outros clubes modestos já participaram na Taça de Portugal, certo. Só que o cenário aqui é outro: este emblema milita na II Divisão Distrital da Associação de Futebol do Porto e terá sido, provavelmente, a primeira vez na história da competição que um conjunto deste escalão disputou uma eliminatória.

«Foi uma experiência engraçada para o clube, não é todos os dias que equipas dos distritais vão à Taça de Portugal. Ficou na história e, segundo o que me disseram na AF Porto, foi a primeira vez que uma equipa da II Divisão Distrital foi à Taça», afirmou o presidente do Raimonda, o senhor Domingos Moura.

A presença teve tanto de histórico como de surpreendente, já que ninguém no clube estava à espera disto.

Recuámos a maio de 2016.

O Raimonda conseguiu de forma inédita e incrível chegar à final da Taça Brali da AF Porto, mas na final perdeu frente ao Barrosas. O vencedor garantia o acesso à prova rainha do futebol nacional, mas com a derrota o clube de Paços de Ferreira foi para casa apenas com o sabor amargo do desaire e sem o desejado passaporte. O início do mês de agosto trouxe um convite à secretaria do Raimonda.

«Acho que houve uma desistência e a AF Porto tinha essa vaga e deu preferência ao finalista da Taça Brali. Fomos apanhados de surpresa, estavamos a planear para começar a época mais para a frente e foi um bocado em cima do joelho», começou por dizer o senhor Domingos Moura.

Tudo se orientou, com mais ou menos treinos, já que uma participação na Taça seria algo inédito.

O treinador Ilídio Neto conta que foi difícil fazer a pré-época, até porque agosto é mês de férias para quem está no futebol como «hobbie»..

«Começámos a trabalhar a faltar um mês para o jogo e nem sempre da melhor maneira, porque aqui joga-se por amor à camisola, os jogadores trabalham, estudam, e aproveitam o mês de agosto para irem de férias. Como a gente não paga, não pode exigir. Trabalhámos limitados, com o plantel todo tivemos três treinos», referiu.

Bilhete histórico para o Raimonda, para guardar a «sete chaves»

Para além disso o Raimonda teve o azar do sorteio ter ditado uma deslocação ao S. Martinho e não uma receção, apesar disso mudar pouco.

«Podíamos ter ainda mais sorte se fosse Raimonda-S. Martinho, mas mesmo aí era complicado porque não poderíamos jogar em casa, no nosso pelado. Era mais difícil para eles. [jogariam em casa emprestada, no campo do Barrosas]. Aqui no nosso concelho não nos criam muitas condições de trabalho, se queremos um sintético para treinar não temos. Ou pedimos um favor ao Paços de Ferreira ou ao Freamunde ou temos que ir a um clube de fora», lamentou o técnico.

E acrescentou mais um fator que colocou em desvantagem a sua equipa, para além de jogar fora contra uma equipa do Campeonato de Portugal (quatro divisões superiores) e num sintético onde não treinou: «Fomos fazer a partida sem ter feito um único treino com a bola de jogo. Adaptamo-nos à bola de jogo no aquecimento. Para verem as diferenças...»

O presidente sublinha essas dificuldades e destaca as realidades financeiras dos dois conjuntos. Apesar disso, o importante é dizer que este foi um dia que ficará para sempre.

«Entrar em campo para a Taça de Portugal... A alguns jogadores nunca passou pela cabeça disputar um jogo destes. Ficou gravado na memória deles, foi uma experiência muito positiva. Ninguém entra em campo para perder, mas tínhamos noção da realidade, somos uma equipa amadora completamente, enquanto o S. Martinho tem jogadores que só jogam futebol. São quase semi-profissionais», disse.

Essa equipa do S. Martinho, por exemplo, tem nas suas fileiras o avançado Bobô, de 34 anos, que em 2014/15 representou o Boavista na I Liga, disputando 16 partidas.

Quem também se motivou à volta deste jogo foi a população de Raimonda, uma freguesia da Capital do Móvel com cerca de 3 000 mil habitantes.

Apesar do jogo ter sido num concelho de Santo Tirso, o clube contou com muito apoio nas bancadas, inclusive com a formação de uma claque de apoio. O presidente diz que a assistência era «meio-meio» com a do S. Martinho, o treinador gostava de ver continuidade durante a época.

«Foi giro o ambiente. Sou nascido em Raimonda, estou aqui há muitos anos e sem dúvida que foi bonito. Já no ano passado na Taça Brali parecia que estávamos num campo de I Liga com uma moldura humana de quase cinco mil pessoas. Para este jogo o preço do bilhete de cinco euros para sócio e sete para não sócio prejudicou, podia ter gerado ainda uma maior moldura humana. Mas os adeptos foram magníficos, sempre a apoiar e isso deixou-me agradado. Eu queria isto no campeonato (risos).»

O resultado pouco importou e por isso também o deixámos para o fim, já que o mais relevante foi a festa da Taça.

O marcador ditou um 6-0 para o S. Martinho, nada que pudesse ter entristecido o plantel e o treinador do Raimonda. O plano era atrasar o primeiro golo sofrido e não fosse uma confusão até o poderiam ter conseguido.

«Tinha avisado sobre o valor do S. Martinho, tinhámos que atrasar o primeiro golo até ao intervalo e a malta até se portou bem. Sofremos o primeiro golo aos 25 minutos num lance caricato. Uma situação de fora de jogo em que há um apito da bancada. Toda gente parou. Aliás, deles ninguém festejou, só depois do árbitro dizer que foi golo», contou.

Uma pena este golo que dificultou ainda mais o objetivo de «fazer Taça».

«Com o golo a equipa psicológica e fisicamente quebrou, o que era normal. O S. Martinho já estava em competição, já tinha feito dois jogos, andava a treinar há dois meses e com outros valores que nós não temos. Tivemos obviamente dificuldades em pará-los depois.»

Pouco importa, o árbitro apitou, o S. Martinho seguiu em frente para a segunda eliminatória, mas o Raimonda saiu do relvado com a sensação de dever cumprido, com muitos aplausos e festejos e com uma página de ouro escrita na história do clube.

Quando é que vamos voltar a ter na Taça de Portugal uma equipa que joga em pelado, que paga em bifanas e sumos e que milita na II Divisão Distrital? Será difícil, mas é nestes episódios que está a magia da prova rainha.

«Inesquecível», terminou dizendo o senhor Domingos Moura.