À hora a que o Maisfutebol o contactou, André Vieira, guarda-redes e capitão do Praiense, já tinha carregado seis carrinhas desde a entrada ao serviço. Faz mudanças de porta em porta e não teve privilégios especiais a dois dias do jogo com o Sporting, para a 4.ª eliminatória da Taça de Portugal.

«Trabalhei toda a semana, mas estou pronto para jogar», atira de forma convicta. «Carrego frigoríficos, sofás… tudo o que for preciso. Se tenho tido cuidado? A ver se não me aleijo nas costas ou não entalo um dedo. Já tenho uma idadezinha avançada e nunca tinha feito um jogo desta dimensão», diz.

André Vieira é um dos poucos futebolistas do Praiense que não vivem exclusivamente do futebol e um dos vários que fizeram toda a carreira em clubes da Ilha Terceira: descontando desvios curtos pelos rivais Angrense e Lusitânia, já leva 16 anos de Praiense. Não era preciso, mas ele insiste: «É o clube do meu coração.»

A promessa feita ao avô aos 14 anos e o açoriano por adoção

Marco Monteiro chegou à liderança do Praiense em 2015. Também ele tem uma longa história de amor ao clube. Nunca tinha feito parte do clube no passado, mas confessa que o destino dele já estava traçado desde a adolescência. «O meu avô foi sócio-fundador do Praiense. Quando eu tinha 14 anos ele pediu-me que eu um dia me tornasse presidente e eu fiz-lhe essa promessa», conta.

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O Praiense lidera a Série F do Campeonato de Portugal com oito vitórias e apenas dois empates em dez jogos: detém, a par de Benfica e Merelinense, o melhor registo dos campeonatos nacionais em 2016/17. E tudo isto com um plantel composto maioritariamente por jogadores naturais do arquipélago. «Somos a equipa dos Açores do Campeonato de Portugal com mais representatividade de jogadores açorianos. Temos jogadores de quatro ilhas do arquipélago: Terceira, São Miguel, Pico e São Jorge. O Angrense tem 100 por cento de jogadores açorianos, mas todos são da Terceira», diz o presidente sem disfarçar o orgulho.

O sotaque de Francisco Agatão denuncia-o. O treinador do Praiense é alentejano mas garante que parte dele já pertence às ilhas. «Costumo dizer que sou alentejano de nascimento e açoriano por adoção», dispara para início de conversa o técnico que leva já um longo historial como timoneiro de equipas do arquipélago dos Açores. Chegou ao Santa Clara em 2004 daí seguiu na época seguinte para o Operário Lagoa, onde ficou até 2012/13. «Tenho um carinho muito grande por esta gente, uma ligação muito forte que gostaria de prolongar por mais anos», confessa.

Agatão é homem calejado nestas tarefas de jogar contra tubarões. Fê-lo várias vezes enquanto jogador, ao serviço do Boavista e do Estrela da Amadora, e repetiu a experiência nos primeiros anos da carreira enquanto treinador, onde foi adjunto em equipas como o Salgueiros, Sp. Braga, Campomaiorense e até o Sporting, onde esteve cerca de seis meses com Carlos Manuel.

Por isso mesmo, puxa da experiência que os anos lhe conferem para tentar manter estáveis os batimentos cardíacos dos jogadores, mesmo consciente dessa impossibilidade quando a hora do encontro com um dos gigantes do futebol português se aproxima. «Não é fácil gerir as emoções antes de um jogo destes, como deve compreender. A imprensa tem falado muito do Praiense, o que nos orgulha muito. Mas, também por aí, temos revelado alguma ansiedade normal. O que tenho feito é procurar retirar o máximo de tensão dos atletas, mesmo sabendo que até à hora do jogo as coisas vão ser sempre difíceis. Mas quando a bola começar a rolar vamos estar concentrados», assegura antes de destapar um pouco o véu acerca da forma como o Praiense vai tentar bater-se por uma espécie de milagre em Lisboa.

«Não podemos perder a nossa identidade só porque vamos defrontar o Sporting. Agora, é evidente que sabemos que, ao contrário do que acontece no nosso campeonato, onde somos geralmente apontados como favoritos e temos de demonstrar isso em campo, agora vai passar-se o inverso: o Sporting vai atacar muito mais, teremos de ser muito bem organizados do ponto de vista defensivo e procurar, quando conseguirmos, sair em transições no sentido de chegar à baliza do Sporting e criar alguns embaraços. Mas só com muita qualidade coletiva é que podemos fazer um jogo que nos deixe satisfeitos», aponta.

Defrontar um grande na Taça de Portugal era um dos objetivos do Praiense para esta eliminatória da ‘prova rainha’. Quando às 12 horas e 11 minutos (menos uma hora nos Açores) o sorteio colocou o Sporting emparelhado com o emblema açoriano, a reação dos jogadores foi imediata. «Estávamos a assistir pela televisão na sede e alguns foram logo para a rua festejar aos gritos», recorda o capitão André Vieira.

Alvalade como montra para o futuro

Dentro do plantel de 22 jogadores há a perfeita consciência de que partida com o Sporting representa uma janela de oportunidade para um futuro melhor. «Este é provavelmente o jogo da vida deles. Será uma grande montra, uma grande oportunidade para mostrarem o real valor que têm individualmente, mas principalmente enquanto coletivo. Não vão desperdiçar esta oportunidade», antecipa Francisco Agatão.

Da esquerda para a direita: Vasco Goulart, Amian Clement, Ricardo Queirós e Diogo Martins. «Gostava de pedir a camisola ao Adrien. É o 23 como eu. Gostava de ficar com a minha, mas se ele pedir...», diz R. Queirós

Ricardo Queirós, extremo de 29 anos, diz que por estes dias praticamente só se fala do jogo com a equipa de Jorge Jesus um pouco por toda Praia da Vitória. «Os adeptos dos rivais pedem-me que marque um golinho para eliminar o Sporting [risos].»

Para ele, não é propriamente uma novidade defrontar os leões. Há dois anos integrava a seleção dos Açores que perdeu o Troféu Pedro Pauleta para a equipa então orientada por Marco Silva. Na altura teve Cédric Soares pela frente e garante que, apesar de só ter jogado na primeira parte, até não se deu mal.

Nascido na Praia da Vitória, Ricardo Queirós fez praticamente toda a formação no Praiense antes de rumar ao V. Setúbal no último ano de juniores após ter dado nas vistas na fase final do campeonato de juniores, em 2005. Tentou ser profissional várias vezes, mas a vida levou-o de volta para o meio do Atlântico, onde concilia o futebol com uma profissão fora das quatro linhas. Desde agosto que trabalha na secção de condutores da Base das Lajes. «Faço transporte das tripulações dos aviões militares da força aérea americana», diz em conversa com o Maisfutebol durante uma pausa no trabalho. «Tento sempre conciliar os horários para poder ir aos treinos, mas às vezes não consigo e tenho de faltar, não há hipótese.» Nesta terça-feira, Ricardo Queirós conseguiu fazer um jeitinho. «Fui treinar de manhã, entrei ao serviço ao meio-dia e saio às 8.»

O jogador concorda com o treinador Francisco Agatão, que diz que o jogo com o Sporting representa uma oportunidade que ninguém quer desperdiçar. É aqui que entram os sonhos de Ricardo Queirós: o maior deles todos era um dia subir ao relvado do Estádio José Alvalade com a camisola dos leões (o clube do coração) vestida; um dos outros é chegar um dia a profissional. Aos 29 anos, Ricardo Queirós reconhece que o comboio está prestes a passar, mas garante que o sonho de o apanhar ainda não morreu. «Se isso pudesse acontecer, seria difícil recusar.»

Antes do jogo com o Farense, na eliminatória anterior da Taça. O Praiense ganhou por 3-1

Onze contra 11 e a bola é redonda...

Realistas, mas ambiciosos. No Praiense todos reconhecem que é sobre o Sporting que recai todo o favoritismo para o jogo desta quinta-feira, mas pisca-se o olho a uma continuidade em prova. «O que temos é de desfrutar, mas não vamos ao Estádio de Alvalade só para ver o estádio e ver o Sporting jogar. Temos o intuito de passar à próxima eliminatória: as nossas probabilidades são mínimas, mas quando o árbitro apita são 11 contra 11 e a bola é redonda», aponta Marco Monteiro.

«Vamos para uma festa, mas não vamos querer ser os bobos da festa. Temos de ter sentido de responsabilidade para perceber que um jogo nunca está ganho nem perdido antes de começar. Temos a consciências de que o Sporting é muito melhor do que nós, mas também sabemos que temos tudo a ganhar e nada a perder», acrescenta o treinador Francisco Agatão.

O saldo do Praiense, volvidas três eliminatórias da ‘prova rainha’, é de dez golos marcados e três sofridos. O bilhete para esta fase foi garantido após um triunfo por 3-1 sobre o Farense, um histórico do futebol português. Vasco Goulart, ponta-de-lança e segundo melhor marcador da equipa nesta época, com cinco golos, esteve nesse jogo e no anterior, frente ao Coimbrões, onde bisou na vitória por 5-2. Tal como André Vieira e Ricardo Queirós, também ele nasceu para o futebol no Praiense. Uma história de fidelidade desde os tempos de iniciado e sem qualquer interrupção até agora.

O anterior melhor registo pessoal de golos no futebol sénior tinham sido quatro golos numa temporada. Agora, em novembro, já leva cinco. Vasco pode ser uma das armas apontadas à baliza do Sporting. Se for a jogo, é provável que vá ter pela frente uma dupla de centrais formada por Paulo Oliveira e Douglas. «Se a vida fica mais facilitada? Não é bem isso porque continuam a estar lá dois grandes jogadores, mas o facto de terem menos tempo de jogo do que os habituais titulares pode jogar a nosso favor», diz quem já idealizou a noite perfeita em Alvalade: ganhar, marcar um golo e pedir a camisola a Markovic. Melhor do que isso só mesmo defrontar o «seu» Benfica na próxima eliminatória.

Admirador confesso de Jonas, de quem diz ter um estilo de jogo parecido, Vasco Goulart não tem dúvidas em apontar o jogo desta quinta-feira como o mais importante da carreira de muitos dos jogadores do Praiense até agora. «Tenho 23 anos, sei que sou novo, mas este vai ser um dia para guardar para sempre e recordar mais tarde aos nossos filhos e netos», remata.

David contra Golias, esta quinta-feira a partir das 20h15. A hora em que os jogadores do Praiense veem um sonho concretizado e partem em busca de outro. «Temos um arquipélago que estará connosco e uma ilha que, particularmente, estará a torcer para que, no mínimo, possamos honrar o emblema», aponta Francisco Agatão.