O sorteio da III eliminatória da Taça de Portugal colocou o único representante dos distritais no caminho do Vitória de Guimarães, mas as limitações do recinto do Clube de Futebol de Santa Iria, o Campo Tomaz Reynolds, levaram à marcação do jogo para o Estádio do Sacavenense... clube que já eliminou o Vitória na prova-rainha.

Rei dos «tombos» na Taça de Portugal - leia-se equipa que mais vezes foi eliminada por equipas de divisões inferiores quando tinha estatuto primodivisionário -, o Vitória vai cruzar-se com um emblema que lhe provocou um dissabor em 1981.

Importa salientar que sete anos depois a equipa minhota «vingou-se», precisamente pelos mesmos números (2-1), mas antes, a 4 de janeiro de 1981, o Sacavenense, então na II Divisão, afastou o Vitória em pleno berço da nação. Uma surpresa que ganha ainda maior dimensão se tivermos em conta que a equipa dos arredores de Lisboa estava sem o treinador.

«Antes da partida para Braga, onde ficámos instalados, houve uma discrepância de opiniões entre o presidente Elias Pereira e o treinador-jogador, que era o Vítor Godinho, que tinha sido internacional pelo Belenenses. O presidente queria levar no autocarro um jogador que não estava convocado, que era o Adanjo. Nem seria para jogar, apenas para acompanhar a equipa, mas o Godinho não queria, e em função dessa disputa de poder já não viajou com a equipa».

O episódio é recordado à MF Total por António Carraça, então jogador do Sacavenense. «Já em Braga ficou decidido que a equipa seria comandada pelo capitão, o Quim», acrescenta o antigo presidente do Sindicato de Jogadores e dirigente do Benfica, referindo-se ao Cruyff de Marvila, figura da última passagem do Oriental pelo principal escalão.

O Sacavenense apresentou-se então em Guimarães com o capitão a liderar a equipa, sendo que o Vitória era orientado por José Maria Pedroto, auxiliado por Artur Jorge.

A equipa minhota até esteve a ganhar, com um golo do brasileiro Mundinho, mas o Sacavenense levou o jogo para prolongamento com um golo de Quim Santos, a passe de Carraça, motivando movimentações no banco contrário. «O Vitória tinha uma lógica inglesa de liderança, com o Pedroto como manager e o Artur Jorge no banco, mas a dada altura já andava o Pedroto no relvado a dar instruções», recorda Carraça.

A equipa visitante avançou para o prolongamento com o objetivo de levar a eliminatória para Sacavém, mas o desfecho foi ainda melhor. «Entrei na área pela esquerda e o Festas, que estava limitado fisicamente, derrubou-me. O Quim Santos marcou de penálti e vencemos o jogo.»

Leitão e Coca-cola antes do contrato

«No regresso a direção decidiu que parávamos na Mealhada para jantar. Leitão e Coca-Cola. Pelo menos para mim. E depois em Sacavém tínhamos algumas dezenas de pessoas à espera, que se juntaram à felicidade que sentíamos», lembra Carraça, que depois seria contratado pelo Vitória de Guimarães.

«Naquela altura a visibilidade dos jogadores não era a mesma, e tínhamos de fazer jogos consecutivos de alto rendimento para subir na carreira. Lembro-me que no jogo a seguir [ndr. com Quim já confirmado como treinador efetivo] vencemos o Estoril em casa por 4-3, com dois golos meus, e estava lá um dirigente do Vitória, outro do Sporting e mais alguém de um outro clube. Seguiu-se um jogo em Odivelas, mas aos sete minutos partiram-me o pé, embora tenha ficado a jogar até ao fim. Dois dias depois ligou-me um dirigente do Vitória e assinei por dois anos», recorda.

A lesão não travou a transferência, mas impediu que Carraça defrontasse o Benfica nos oitavos de final da Taça. Depois do triunfo em Guimarães, o Sacavenense ainda eliminou o Guarda e o Estrela de Portalegre, mas a 29 de março caiu diante das «águias», em casa. Ainda segurou o nulo até ao minuto 77, mas depois apareceram golos de Nené e outros tantos de Vital.

Carraça ficou de fora, e no final da época lá seguiu para o Vitória de Pedroto, técnico que já o tinha debaixo de olho desde 1977. «Na minha primeira passagem pelo Sacavenense, aos 19 anos, defrontámos o FC Porto, que era treinado precisamente pelo Pedroto. Perdemos por 1-0 [ndr. golo de Francisco Vital, o jogador que depois marcou dois golos na visita do Benfica a Sacavém, em 1981].»

Sacavenense-FC Porto de 1977, para a Taça de Portugal [foto do arquivo pessoal de António Carraça]

«Fiz um grande jogo, frente a um FC Porto que tinha internacionais como o Gabriel, Duda, Fernando Gomes. O Pedroto referenciou-me ao Famalicão, que tinha subido à Primeira Divisão, e fui para lá. No segundo ano é que tive problemas, incluindo salários em atraso, e voltei a Sacavém. Por coincidência acabei por voltar a defrontar uma equipa do Pedroto, que depois me leva para Guimarães», resume o antigo jogador, que fala de um técnico que «trabalhava a um nível muito elevado e que tinha a capacidade de motivar os jogadores para apresentarem sempre um rendimento alto».

Trinta e cinco anos depois do surpreendente triunfo em Guimarães, com a camisola do Sacavenense, António Carraça não descarta a possibilidade de o Santa Iria inspirar-se no emblema vizinho para alcançar um feito ainda maior.

«Hoje em dia as surpresas são mais possíveis. As equipas dos escalões secundários trabalham muito melhor. Têm pessoas mais capacitadas, que permitem outro tipo de rendimento. Isso atrapalha os grandes clubes, e é só um jogo, tudo pode acontecer. Os jogadores motivam-se a 500 por cento, acreditam que têm ali uma janela de oportunidade, e por vezes as surpresas acontecem. E ainda bem, pois é essa incerteza que dá paixão ao futebol», diz o antigo dirigente sindical e diretor para o futebol do Benfica.