Decididamente, este vai ser um cinquentenário duro para os adeptos do Celtic. Na semana em que a família de Billy McNeill anunciou que o histórico capitão sofre de demência e está incapaz de comunicar, Tommy Gemmell foi o terceiro dos leões de Lisboa a deixar-nos, depois do guarda-redes Ronnie Simpson (em 2004) e do lendário extremo direito Jimmy Johnstone, (em 2006).

Gemmell, que morreu aos 73 anos, após doença prolongada, foi o autor do primeiro golo do Celtic na épica final do Jamor, em 1967. A reviravolta sobre o Inter, na primeira final da Taça dos Campeões em solo português, ditou um título inédito para uma equipa britânica, e mudou decisivamente o rumo do futebol europeu para Norte: depois de onze títulos repartidos por espanhóis, portugueses e italianos entre 1956 e 1966, nos 18 anos seguintes só uma equipa latina – o Milan – se intrometeu na sequência de vencedores britânicos, alemães e holandeses.

Os Lisbon Lions em 2006. Gemmell está ao centro, em cima (foto Reuters)

A lenda dos leões de Lisboa remete-nos para um futebol de outros tempos – uma era em que o campeão da Europa podia ser formado por onze rapazes locais, todos nascidos a menos de 45 quilómetros do estádio. Um tempo de futebol proletário, bem simbolizada por este lateral-esquerdo destro, de estatura invulgar para os padrões da época (1.88 m), e que entre outras coisas se notabilizou pela potência de remate: foi o que lhe permitiu marcar uns impressionantes 63 golos em 418 jogos com a camisola verde e branca dos católicos de Glasgow.

Quando os laterais ganharam asas

Nos inúmeros tributos prestados ao seu desaparecimento, nesta quinta-feira, o ex-colega Bertie Auld lembrou à BBC as óbvias semelhanças físicas com o ator cómico Danny Kaye e a personalidade a condizer: «Ele pensava mesmo que era o Danny Kaye. Parecia-se com ele, e acreditava que era mesmo. E de certa forma tinha razão, porque era o animador do grupo.» No mesmo depoimento, Auld deixa um veredicto partilhado por muitos adeptos do futebol britânico: «Era o melhor lateral esquerdo do seu tempo – sem margem para desmentidos.»

Gemmell, em 2006, com a Taça que ajudou a ganhar (foto Reuters)

O entusiasmo de Auld está, obviamente, marcado pela proximidade profissional e afetiva. Mas é justo lembrar que, na linha do brasileiro Nilton Santos, do argentino Marzolini ou do italiano Facchetti, seu adversário no Jamor - e precedendo as proezas do holandês Ruud Krol e do alemão Paul Breitner nos anos 70 - Gemmell foi dos primeiros laterais-esquerdos ditos «modernos», isto é, com participação ofensiva determinante para as suas equipas.

O seu papel foi decisivo, não apenas nessa final (que pode ser vista na íntegra aqui) mas em todo o percurso que transformou o Celtic numa equipa-charneira na história do futebol europeu. Gemmell marcou quatro vezes nessa campanha de 1966/67 e na final, além do golaço do empate, à entrada da meia lua, ainda iniciou a jogada que permitiu ao ponta-de-lança Chalmers consumar a reviravolta, a cinco minutos do fim.

Anos mais tarde, Gemmell lembrou que o movimento que lhe valeu o golo mais importante da carreira contrariava abertamente as ordens de Jock Stein. Aparecendo na meia-lua, a concluir um passe atrasado do lateral-direito Jim Craig, Gemmell estava a quebrar aquela que, à época, era uma das regras básicas para o equilíbrio de uma equipa: a de que nunca os dois laterais podiam fazer uma aproximação simultânea à área. «As ordens eram para um dos laterais ficar sempre, mas o Inter punha tanta gente atrás da linha da bola que achei que não havia motivo para ficar atrás», reconheceu. O resultado final deu-lhe razão.

Pé canhão e mau génio

Nascido em Motherwell, vila a 25 quilómetros de Glasgow, Gemmell jogou em equipas amadoras até aos 17 anos. A intensidade física do seu jogo tornou-o notado aos olheiros do clube, que recomendaram a sua contratação em outubro de 1961, a poucos dias de completar 18 anos. Os adeptos gostam de identificar estes pequenos sinais do destino: no mesmo dia em que Gemmell assinou, chegava também ao Celtic o seu parceiro de aventuras Jimmy Johnstone, que em 2002 viria a ser nomeado o melhor jogador da história do clube.

Foi a chegada do treinador Jock Stein ao Celtic, em 1965, que reforçou o papel de Gemmell na equipa, após quatro anos inconsistentes. A potência do seu pé direito fez do lateral o marcador de livres e penaltis na equipa e permitiu-lhe, como revelou na sua biografia, «Lion Heart», superar algumas resistências no interior do grupo pelo facto de não ser católico. Aos poucos, tornou-se um pilar no Celtic e, ainda em 1966, tornou-se o primeiro jogador dos Hoops a marcar um golo na Taça dos Campeões Europeus, em casa, diante do FC Zurique.

Jock Stein e Helenio Herrera na final do Jamor

Apesar do sentido de humor, que o transformava no agitador de balneário, Gemmell não era do tipo de comer e calar. Ainda nesse ano de 1967, quando o Celtic foi a Buenos Aires, para disputar a segunda mão da Taça Intercontinental: depois da vitória por 1-0 em Glasgow, um penálti convertido por Gemmell adiantou os escoceses, mas a reviravolta argentina chegou (2-1), com muitos pontapés à mistura.

O jogo de desempate, a 4 de novembro de 1967, entrou para a história do futebol como a batalha de Montevideu: sob a direção incompetente do paraguaio Rodolfo Perez Osorio, deu direito a seis expulsões (quatro para o Celtic e duas para o Racing), mas só cinco foram cumpridas, já que Bertie Auld, mesmo recebendo ordem de expulsão, recusou-se sempre a abandonar o campo.

Na confusão generalizada que se seguiu, Gemmell aproveitou para pontapear um adversário nas partes baixas, sem que o árbitro desse conta. «Penso que era o Ayala. Ao certo, só sei que tinha passado o jogo todo a cuspir-nos na cara. Ora não é suposto pontapear adversários, mas cuspir em jogadores é simplesmente inaceitável», explicou mais tarde, neste documentário (a cena pode ser vista a partir do minuto 2.50) No final, o Racing venceu por 1-0 e Jock Stein jurou que nunca mais traria uma equipa sua para jogar na América do Sul.

Outro exemplo famoso do feitio irascível de Gemmell aconteceu em outubro de 1969, numa derrota da seleção escocesa diante da Alemanha, em Hamburgo (3-2). Pontapeado por Haller, a cinco minutos do fim, o lateral esquerdo reagiu a quente e seguiu diretamente para o banco, sem esperar pela ordem de expulsão:

Duas semanas mais tarde, a história de Gemmell voltou a cruzar-se com o futebol português: foi um livre direto seu, uma bomba, sem hipóteses para José Henrique, a abrir caminho à vitória do Celtic sobre o Benfica (3-0) em Glasgow.

Na segunda mão, o Benfica ainda anulou a desvantagem, mas acabou por perder no desempate por moeda ao ar – na última temporada em que esse sistema foi aplicado em provas da UEFA. O Celtic prosseguiu essa campanha até a final de Milão, onde, diante do Feyenoord, se assistiu à inversão do filme de 1967: Gemmell abriu o marcador, em mais um daqueles livres-bomba de que tinha registado a patente, mas a sua equipa não conseguiu resistir à reviravolta holandesa.

O golo permitiu a Gemmell, ainda assim, uma vaga na história da Taça dos Campeões, tornando-se um dos 18 jogadores (e um de apenas quatro defesas) a marcar em duas finais. Uma lista que, assinale-se, inclui quatro jogadores portugueses:

Di Stéfano- Real Madrid (1956, 57, 58, 59 e 60)

Rial- Real Madrid (1956 e 1958)

Gento- Real Madrid (1957 e 58)

Puskas- Real Madrid (1960 e 62)

José Águas- Benfica (1961 e 62)

Coluna- Benfica (1961 e 62)

Eusébio- Benfica (1962 e 63)

Mazzola- Inter (1964 e 67)

Vasovic- Partizan e Ajax (1966 e 69)

Gemmell- Celtic (1967 e 70)

Gerd Müller- Bayern (1974 e 1975)

Roth- Bayern (1975 e 76)

Neal- Liverpool (1977 e 1984)

Raúl- Real Madrid (2000 e 2002)

Eto’o- Barcelona (2006 e 2009)

Messi- Barcelona (2009 e 2011)

Cristiano Ronaldo- Man. United e Real Madrid (2008 e 2014)

Sergio Ramos- Real Madrid (2014 e 2016)

A derrota com o Feyenoord e a viragem para os anos 70 marcaram o início do declínio do Celtic, e da carreira de Gemmell. Em dezembro de 1971, após entrar em conflito com o mentor, Jock Stein, trocou Parkhead pelo Nottingham Forest e, depois de uma passagem pelos Estados Unidos, pendurou as chuteiras no Dundee FC, clube que também orientou numa curta carreira de treinador, encerrada na década de 80.

A partir daí, Gemmell dedicou-se ao ramo dos seguros, mas continuou a manter a ligação afetiva com os adeptos do Celtic, partilhando histórias dos seus tempos de glória e participando em vários eventos, como as romagens dos Lisbon Lions ao Jamor, sempre que o Celtic vinha jogar a Lisboa. A sua ausência será sentida na comemoração do 50º aniversário de um dos jogos que mudaram a face do futebol europeu.