António Pratas nasceu em Esmoriz, concelho de Ovar, há 72 anos. As contingências da vida, e sobretudo um casamento para a vida toda, levaram-no aos 24 anos para Tondela.

Nunca mais quis outra coisa.

Quase 50 anos depois, ele é a memória viva das aventuras e desventuras da equipa local. Entrou no clube logo um ano após a chegada à vila e, de uma maneira ou de outra, nunca mais saiu. Ou pelo menos o Tondela nunca mais saiu de dentro dele.

«Há pormenores que ficam para a história. Na altura, em 1975, eu tinha um Mini pequenino, era o meu carro nessa época. O Tondela não tinha autocarro, nem nada parecido. Então numa deslocação em que íamos jogar a Oliveira do Bairro, ali bem perto da Mealhada, ficaram-me sete jogadores em terra. Levei os sete jogadores dentro do Mini, comigo oito, até Oliveira do Hospital. Ainda hoje recordamos essa história, porque oito pessoas dentro de um Mini é qualquer coisa.»

Já foi presidente, vice-presidente, diretor, e, há quase duas décadas tornou-se a voz que leva os jogos do Tondela a todos os adeptos. Através da Emissora das Beiras acompanha a equipa para todo o lado. Desde que o Tondela subiu à Liga, não falhou uma única partida.

«É viciante. Do Minho ao Algarve, dos Açores à Madeira, percorro o país todo atrás do Tondela», diz do ao alto da juventude septuagenária.

«Este ano, na deslocação aos Açores para defrontar o Santa Clara, eu saí de Tondela às cinco da manhã, fui direto a Lisboa de carro, cheguei às oito da manhã, apanhei o avião às dez, cheguei a Ponta Delgada ao meio dia, fui almoçar, fiz o jogo, voltei para o aeroporto de regresso a Lisboa e à meia noite estava em Tondela. Isto tudo sozinho.»

É capaz de conduzir um dia inteiro para levar o relato dos jogos da equipa até à Beira Alta. Um dia na estrada, por hora e meia de puro prazer.

«Por exemplo, em Portimão os jogos são sempre às 15:30. Então nós saímos às 7.30 horas, e digo nós porque, entretanto, arranjei um companheiro que é o Bruno Maneira, que faz os comentários. Então saímos de Tondela às 7.30 horas da manhã, paramos na área de serviço de Santarém para tomar café, ao meio dia estamos no Algarve e vamos almoçar. Normalmente vamos ao Frango da Guia. Seguimos para o estádio do Portimonense e fazemos o relato. No fim do jogo voltamos para cima, paramos em Aljustrel para jantar, jantamos e à meia-noite estamos em casa.»

No domingo, com 72 anos, lá estará na tribuna de imprensa a fazer o que mais gosta: a relatar os jogos do clube pelo qual se apaixonou. É praticamente uma vida inteira dedicada ao Tondela.

Em conversa com o Maisfutebol conta que chegou a Tondela em 1974 e arranjou emprego como funcionário das Finanças. Um ano depois, entrou no clube.

«Nessa época o Tondela ficou em segundo lugar na I Divisão distrital, o que lhe deu acesso à III Divisão.  Eu era secretário da direção, o sr. António Coimbra, tio do atual presidente Gilberto Coimbra, abdicou do cargo de presidente e indicou-me para o substituir. Então assumi a presidência na época 76-77, que foi a primeira do Tondela na III Divisão. Tinha 25 anos.»

Eram outros tempos na história do clube, então um emblema singelo e familiar de uma pequena vila beirã. António Pratas conta que a direção eram sete pessoas, uma das quais é o roupeiro Rolando Cruz, que ainda trabalha no Tondela, e que não havia dinheiro para nada.

«Nas deslocações que tínhamos, algumas para bem longe, recordo-me por exemplo de Alcains, nós andávamos ao sábado de manhã a fazer peditórios pela vila para arranjar dinheiro para ajudar a pagar as viagens. Foi o primeiro ano nas divisões nacionais e foi um ano de muito sacrifício.»

Eram os anos setenta, quando ainda mandava o escudo e o clube vivia a contar os tostões. António Pratas tinha um amigo que era proprietário de uma empresa que fazia a ligação entre Tondela e o Caramulo, e que às vezes lhe emprestava um autocarro para transportar a equipa.

«Mas nem sempre podia emprestar um autocarro: às vezes emprestava-nos o carro particular dele, um Mercedes de cinco lugares. Já era uma ajuda. Eram tempos de grandes dificuldades, mas que deixaram saudades, porque fazem a história do Tondela.»

Também deixaram muitos episódios para contar e celebrar na vida do clube.

«Fomos jogar a Alcains, perto de Castelo Branco. Dessa vez arranjámos dinheiro para ir dormir ao Fundão. Chegámos ao Fundão às oito da noite, em carros pedidos aos amigos e tal. O treinador foi a um café comprar tabaco e ao balcão uma pessoa apontou-lhe uma navalha. Depois lá percebeu que era treinador e deixou-o passar. Então nessa altura é que ficamos a saber que aquela zona do Fundão onde íamos dormir não era muito bem frequentada», refere.

«Nessa época o Tondela jogava na III Divisão, Série C, e um dos adversários era o Recreio de Águeda, que mais tarde chegou a estar na I Divisão. O Recreio de Águeda veio na última jornada a Tondela jogar para ser campeão. O estádio, que é hoje o João Cardoso, na altura chamava-se Campo do Pereiro, foi invadido por Águeda. Foi a maior enchente de que me lembro. Sem exagero umas quatro ou cinco mil pessoas vieram para Tondela, a querer ver o jogo. De manhã à noite Tondela esteve tomada por gente de Águeda, tinha pessoas a bater-me à porta a pedir um bilhete.  No fim empatámos 1-1, o Tondela não desceu e o Recreio de Águeda foi campeão.»

Deixou a presidência por estar psicologicamente esgotado, mas regressou em 1982 como vice-presidente em duas direções diferentes. Em 1998, na sequência de uma grave crise que atirou o clube para a II Divisão distrital, foi convidado para presidente da Mesa de Assembleia Geral.

«Saí passado um ano. Depois entrou Gilberto Coimbra, que dirigiu o clube como uma empresa e fez um grande trabalho, coroado em 2015 com a subida à Liga.»

Dos distritais à Liga em cerca de dez anos, numa caminhada incrível e que transformou para sempre o Tondela. Hoje é um clube completamente diferente, que durante sete épocas se tornou um habitual entre os maiores do futebol português.

António Pratas viveu tudo isso, também: mas atrás de um microfone.

«Eu comecei na Emissora das Beiras, que é uma rádio com sede no Caramulo. Comecei quando o Tondela estava na III Divisão e fiz isso durante muitos anos. Mas depois, quando o Tondela subiu à II Liga, a rádio entrou numa crise, deixou de fazer desporto e eu fui contactado pela Rádio Lafões, de São Pedro do Sul, para fazer o desporto», revela.

«Estive lá cinco anos e em 2015, quando o Tondela subiu à Liga, a Emissora das Beiras perguntou-me se queria voltar. Tudo isto por amor à camisola, atenção, não recebia nada por estes trabalhos.»

A parte curiosa de tudo isto é que não só António Pratas não ganha dinheiro com o trabalho que faz, como ainda tem de ele próprio arranjar dinheiro para as deslocações e refeições.

«Repare nisto: fiz o primeiro ano do Tondela na Liga com as despesas a serem suportadas pela rádio e no final disseram-me que era impossível continuarem a suportar aquelas despesas. E nessa altura, por amor ao clube e à rádio, eu propus um acordo: suportava todas as despesas da equipa desportiva e eles cediam-me espaço para continuar a relatar os jogos do Tondela», conta.

«Disseram-me: ‘Pode ter toda a antena que você quiser, mas nós na rádio não damos um tostão para isso’. E eu, sim senhor. Coletei-me nas finanças como empresário em nome individual, abordei as empresas de Tondela e angariei o dinheiro necessário para suportar as despesas.»

Um posto de gasolina cedeu o combustível para as viagens, um stand de automóveis emprestou um carro e durante mais seis anos António Pratas andou pelo país a relatar os golos do Tondela.

Admite que aos 72 anos há noites em que o corpo exige descanso, mas garante que nunca se queixou. Por uma razão muito simples: não pode.

«Tenho uma mulher em casa que me diz: ‘Não te queixes, não te queixes que ninguém te apontou uma arma à cabeça’. E é verdade. Às vezes bate um cansaço, são muitas horas de viagem, mas não me posso queixar que a minha mulher não deixa. Obviamente era melhor se pudesse ir dois dias antes para a Madeira, ficar num hotel, almoçar e jantar, mas não temos orçamento para isso.»

Neste domingo, pelas 17.15 horas, quando o Tondela subir ao relvado do Jamor para viver a tarde mais gloriosa da sua já longa história, António Pratas lá estará, na tribuna de imprensa, a contar tudo. Ele e Bruno Maneira, que se tornou um companheiro destas corridas por amor ao clube.

Vai lembrar-se dos últimos quase cinquenta anos, de todas as aventuras que passou, de todos os golos do Tondela que gritou e provavelmente vai sentir-se feliz.

No fim do jogo vai desligar o microfone. Pela última vez.

«No domingo vou fazer o meu último jogo. Sinceramente, já chega. Acho que é preciso dar o lugar à juventude. Eu fui a todo o lado. Onde estava o Tondela, nós estávamos.»

O stand que fornecia o automóvel para as viagens já avisou que a viatura vai ter de ser devolvida na segunda-feira e que não haverá mais no futuro, António Pratas sente que é a altura de parar.

«Atenção, eu posso estar a dizer-lhe isto e no futuro aparecer outra empresa a emprestar um carro, passar-me uma coisinha pela cabeça e fazer mais um ano. Mas acho que não. Acho que agora é de vez. Já disse ao meu colega: para a semana vamos fazer um jantar só os dois com champanhe. Isto acabou, não estamos falidos e divertimo-nos. Fizemos muitos amigos, que é o mais importante.»

Por isso no domingo, lá está, vai provavelmente desligar o microfone pela última vez. No fim de um jogo histórico para o Tondela, num palco história do futebol português.

«Acompanhar uma equipa beirã é diferente, o espírito beirão é diferente. Com vitórias, com derrotas, com bons momentos, com maus momentos, nunca tive nenhum problema», refere.

«No domingo quando disser que acabou a emissão provavelmente vai cair-me alguma lágrima. Foram muitos anos, muitos anos.»