O Benfica defronta o Tottenham nos oitavos de final da Liga Europa. No passado de ambos os clubes está a meia-final da Taça dos Campeões Europes de 1961/62. O Maisfutebol contou essa história, através das recordações dos protagonistas, no livro «Sport Europa e Benfica», publicado em 2006. Estes são os textos do livro sobre a decisão, em Londres, derrota por 1-2 depois da vitória por 3-1 na primeira mão. Depois do Tottenham, o Benfica seguiu para a final e foi campeão europeu.

Pouco depois da uma da manhã, Eusébio desistiu de dar voltas. Irritado, puxou os lençóis, pegou no colchão e atirou-o para o meio do quarto. Simões seguiu-lhe o exemplo. Há mais de duas horas que tentavam dormir, sempre a afundarem-se em camas demasiado moles. Decididamente, aquele hotel londrino não tinha sido feito a pensar em atletas de alta competição. Mais umas horas de insónia e não haveria costas capazes de resistir.

O nervosismo também tinha alguma coisa a ver com o desconforto. Faltavam menos de 24 horas para o jogo mais importante das suas ainda curtas carreiras. E aquele Tottenham impunha respeito. «Estávamos no mesmo quarto e não havia maneira de pregarmos olho naquelas camas esquisitas», conta o extremo-esquerdo, que duas semanas antes marcara o seu primeiro golo europeu, abrindo caminho à vitória por 3-1 sobre o campeão inglês.

Ninguém duvidava de que ia ser o teste mais exigente ao campeão europeu desde a final de Berna. O Tottenham estava carregado de internacionais. E o ambiente seria capaz de envergonhar a palavra inferno. Só mesmo o melhor Benfica para resistir à pressão: «No segundo ano, com as entradas do Eusébio e do Simões a equipa ganhou muito mais força. O Cavém passou para médio de ataque porque o Neto saiu e continuámos a jogar pela Europa de uma forma afirmativa. Jogávamos fora como se estivéssemos em casa, não havia diferença nenhuma», lembra José Augusto, uma das figuras do primeiro jogo.

Bella Guttmann tinha confiança absoluta nos seus jogadores. Mas também sentia que este era um daqueles momentos em que os seus dotes de psicólogo podiam ajudar. «Nesses dias ele só nos dizia “Não tenham medo, preocupem-se com o jogo, eu faço outra coisa”», recorda Simões. O jovem extremo ficou surpreendido quando o técnico ordenou à equipa que entrasse em campo, ainda à civil, hora e meia antes do pontapé de saída. A intensidade da vaia, acentuada pelo «crrr» contínuo das rocas que os adeptos dos «spurs» levavam para a bancada, fez abanar a confiança. Mas funcionou como vacina: os ingleses tinham gasto as munições mais pesadas antes do tempo. E quando o jogo começou já ninguém ficou impressionado com o barulho da multidão.

Depois da eliminação do Nuremberga era claro para todos que este Benfica de segundo ano era mais brilhante que o antecessor. Faltava-lhe, porém, uma demonstração definitiva de carácter e capacidade de sofrimento. Desde o golo madrugador de José Águas, emendando um cruzamento-remate de Simões, até ao apito final do dinamarquês Poulsen, aqueles 90 minutos no White Hart Lane convenceriam o mais severo dos examinadores.

Esse jogo representou também uma das páginas mais brilhantes na carreira de Costa Pereira. Réu assumido na derrota com o Nuremberga, na ronda anterior, o guarda-redes pedira a Guttmann uns dias fora do onze. Com a confiança recuperada, saiu de Londres tendo a Europa a seus pés. José Augusto lembra a personalidade particular do guarda-redes bicampeão: «O Costa Pereira era uma pessoa especial, tinha uma cultura acima da média e sabia colocar os seus problemas de uma forma convincente.» Já Simões tira o chapéu à tarde inspirada do seu número 1: «Esteve fantástico! Eles tinham uns “armários” na frente e bombeavam muitas bolas para a área, no típico estilo inglês, mas isso enquadrava-se perfeitamente na capacidade física e estatura dele. Por isso passou o jogo todo a desfazer cruzamentos a soco, ou a agarrá-los com uma facilidade que os desmoralizava.» Com o inferno a arrefecer, minuto após minuto, o Benfica segurou a derrota por 2-1 e a passagem à final. Os aplausos dos adeptos, prolongados no dia seguinte pelos jornais britânicos, eram a justa consagração para uma equipa capaz de juntar ao talento um temperamento de aço.

Eu estive lá: Mário João, na primeira pessoa

«Foi um jogo muito difícil porque o Tottenham era a melhor equipa inglesa. Tinha homens como o Mckay, o Norman, o Smith, e um interior espectacular que era o Jimmy Greaves, um dos grandes jogadores da altura. A eliminatória foi polémica, principalmente em Londres. Não tinha chovido, mas o campo estava completamente encharcado e o Guttmann ficou furioso. Fisicamente eles eram mais fortes e queriam tirar vantagem disso, mas saiu-lhes ao contrário porque nós fizemos um grande jogo. O ambiente no White Hart Lane foi terrível. De cada vez que íamos marcar um lançamento levávamos com moedas nas costas e o Costa Pereira foi mesmo agredido no final, acertaram-lhe com garrafas e pequenas latas de conserva. Mas os adeptos do Tottenham acabaram por aplaudir-nos, porque realmente fomos superiores. Tínhamos uma vantagem de dois golos (3-1) e marcámos primeiro, pelo Zé Águas. Depois defendemos muito bem, lembro-me que o McKay travou uma guerra imensa com o Coluna. Foi um dos jogos mais difíceis e decisivos da minha carreira. Perdemos o jogo, mas garantimos a segunda final. Para nós, eles eram muito mais fortes do que o Real Madrid e sentíamos que quem passasse aquela eliminatória tinha todas as hipóteses de ser campeão da Europa, como de facto aconteceu.»

Ficha do jogo

Tottenham-Benfica, 2-1
Meia-final – 2ª mão
Data: 5 de Abril de 1962
Estádio White Hart Lane, em Londres (Inglaterra)
Árbitro: Aage Poulsen (Dinamarca)
TOTTENHAM: Brown; Baker e Henry; Blanchflower «cap.», Norman e McKay; Medwin, White, Smith, Greaves e Jones
Treinador: Bill Nicholson
BENFICA: Costa Pereira; Mário João e Ângelo; Cavém, Germano e Cruz; José Augusto, Eusébio, Águas «cap.», Coluna e Simões
Treinador: Bela Guttmann
Ao intervalo: 1-1
Marcadores: 0-1, Águas (15); 1-1, Smith (34); 2-1 Blanchflower (48 g.p.)
Resultado final: 2-1