Às 15.40 do dia 11 de maio de 1985, a vida de Martin Fletcher alterou-se de forma dramática e irreparável. Então com 12 anos, o jovem adepto do Bradford City viu de perto o irmão, Andrew, o pai, John, o avô Eddie, e um tio, Peter, desaparecerem nas labaredas que envolveram a bancada principal do estádio Valley Parade.

O dia deveria ter sido de festa, com o clube a festejar, perante 11.076 adeptos, a subida recém-conseguida à II divisão. Em vez disso, foi o dia mais triste na história do Bradford City, e um dos piores acidentes na história do futebol inglês, com 56 vítimas mortais e 265 feridos. No seu rescaldo seria drasticamente alterada a legislação de segurança relativa aos estádios ingleses, em particular as bancadas em madeira.



Quase a completarem-se 30 anos sobre a tragédia, Martin Fletcher está a agitar o futebol inglês com um livro. Depois da pré-publicação de dois excertos pelo «The Guardian», « 56, The Story of The Bradford Fire» (ed. Bloomsbury), chegou às livrarias nesta quinta-feira, em versão física e em e book. E põe em causa quase tudo, a começar pela palavra mais frequente para descrevê-lo. Acidente? Fletcher acredita noutra hipótese. E, após 15 anos de investigações, aponta dedos acusadores. Ao inquérito policial. Ao relatório do juiz Oliver Popplewell, que atribuiu o sucedido a uma ponta de cigarro e ao lixo acumulado anos a fio sob a bancada de madeira. E, acima de todos, ao então presidente do Bradford City, Stafford Heginbotham.

A teoria

Heginbotham, que morreu dez anos depois da tragédia, era um homem de negócios local, que se envolveu com os destinos do clube em 1965. No livro, Fletcher descreve minuciosamente os sucessivos incêndios que afetaram empresas às quais estava ligado: oito ao todo, entre 1967 e 1981. Baseando-se na consulta aos arquivos de jornais locais, Fletcher sustenta a ideia de que o empresário escapou mais do que uma vez à bancarrota, graças às indemnizações provenientes das companhias de seguros: fazendo o câmbio a valores atuais, teria recebido, ao todo, o equivalente a 14 milhões de euros neste período.

Sempre sem formular diretamente a acusação, que todo o livro ajuda a construir, o sobrevivente de Valley Parade identifica um ponto de partida na investigação: as palavras da sua mãe, que o encorajou a mergulhar no processo e nos arquivos quando completou 21 anos. «Sabes que este não foi o primeiro incêndio com Stafford, não sabes? Nunca acreditei num acidente. Não penso que ele tivesse intenção de causar vítimas. Mas muita gente morreu, porque ele voltou à coisa que mais vezes o livrou de sarilhos», acusou Susan.

Em entrevista ao «The Guardian», Martin garante que toda a sua investigação confirma um padrão, e sublinha a «montanha de coincidências» que pontua o percurso do antigo dirigente. Segundo o autor, a promoção do Bradford à II divisão ia obrigar a um investimento superior a 2 milhões de libras na velha bancada de madeira, numa altura em que o clube penava para conseguir pagar a jogadores e funcionários. A situação dos negócios do presidente piorava as coisas. Fletcher conclui esta enumeração com uma pergunta retórica «Poderá algum homem ter tanto azar como Heginbotham foi tendo?»

Fletcher é o primeiro sobrevivente a pôr em causa a natureza acidental da tragédia, mas não é o primeiro a apontar o dedo ao antigo presidente. Esta reportagem da Yorkshire Television, feita um ano depois do incêndio, mostra alguns graffiti espalhados pelas ruas de Bradford, nos quais Heginbotham era diretamente responsabilizado pelo sucedido (são visíveis a partir dos 3.43 min):



Nesta altura, o dirigente ainda não tinha sido associado com os oito incêndios detetados por Fletcher na sua investigação. Alguns familiares das vítimas consideravam-no corresponsável pela tragédia, mas por uma questão de negligência: entre os escombros, sob a bancada, tinham sido encontrados jornais de 1968, mostrando há quantos anos não havia uma limpeza. E na correspondência oficial do clube havia pelo menos três avisos das autoridades municipais para os perigos representados pela lixeira improvisada. Isto fez com que, durante o inquérito, que concluiu apenas três semanas depois do incêncio, o juiz Oliver Popplewell chegasse a ponderar uma acusação de negligência ao dirigente do Bradford, antes de classificar o sucedido como um «acidente agravado pela incúria.»

As reações

Auxiliado pelas prés-publicações do «Guardian», o impacto do livro nas primeiras 24 horas foi tremendo, provocando reações de vários setores políticos e de elementos ligados à tragédia. Ainda está fresco na memória de todos o volteface na tragédia de Hillsborough, cuja versão oficial foi desmentida pelas famílias das vítimas, ao fim de 25 anos, provando que as autoridades culparam deliberadamente as vítimas para encobrir falhas gritantes. E isto leva a que as alegações de Fletcher tenham sido acolhidas com alguma prudência.

O primeiro-ministro, David Cameron, não fugiu ao tema, mas foi ambíguo quanto à possibilidade de reabrir um inquéiro ao sucedido: «Comecemos por lembrar as vítimas, e por lembrar que já houve um inquérito formal. O que digo agora é que se houver novas informações a polícia pode investigá-las. E é por aí, e não por outro lado, que as coisas devem começar», afirmou à ITV.

Um responsável da polícia do West Yorshire, o superintendente Mark Ridley, seguiu a mesma indicação, admitindo que, no caso de «novas provas, que não estivessem disponíveis aos investigadores originais, serão tomadas em consideração e alvo de ação apropriada». Já o deputado trabalhista Andy Burnham, um dos ativistas mais destacados no caso de Hillsborough, foi mais veemente ao considerar o conteúdo do livro «da maior gravidade». Elemento do governo sombra britânico, com o pelouro da Saúde, Burnham acrescentou: «Sempre considerei que o inquérito do juiz Popplewell foi conduzido à pressa e ignorou ângulos importantes. À luz destas revelações, considero que uma nova investigação deve ser iniciada.»


O memorial às vítimas no estádio do Bradford

Mas claro que nem toda a gente subscreve as conclusões de Fletcher. Já reformado, o juiz Popplewell, um dos visados pelo livro, mantém a ideia de que tudo não passou de um acidente, mas reconhece que não tinha conhecimento dos incêndios associados ao percurso empresarial do presidente do Bradford: «Não creio que vá alterar as minhas conclusões, mas é uma coincidência relevante. É importante, para as pessoas, que seja investigada, para se provar que não há ligações sinistras entre esses incêndios. Mas pelo que me diz respeito, não tenho razões para pensar que foi outra coisa se não um acidente», frisou em declarações à estação de TV Sky News.

Raymond Falconer, um polícia atualmente reformado, que participou na investigação em 1985, é mais contundente para com Fletcher e o seu livro: «Eu recolhi o depoimento de um espectador que admitiu ter deixado cair um cigarro aceso para debaixo da bancada onde o fogo deflagrou. Ele alertou as autoridades, mas já foi tarde. Não tenho dúvidas de que foi um acidente, e tenho pena que o senhor Fletcher não consiga aceitá-lo», diz.

Já a família de Stafford Heginbotham reagiu em comunicado, considerando as alegações de Fletcher «doentias» e «revoltantes». Em declarações ao Daily Mirror, o filho do ex-presidente acusou: «O meu pai nunca recuperou do incêndio, foi isso que o matou. E já não está aqui para se defender, é uma vergonha que tenhamos chegado a isto.»

Quanto a Fletcher, que se apresenta sempre em público com um blusão do Bradford, exibindo o número 56, afirma-se disposto a manter o assunto sob os holofotes, acreditando num desfecho semelhante ao de Hillsborough: «Não continuarei a viver uma mentira, nem as meias-verdades de outras pessoas (...) Há muitos mitos que precisam de ser desfeitos», afirma na entrevista ao «The Guardian».