Os ricos estão cada vez mais ricos, o fosso é cada vez maior. Estamos a falar de futebol. Quem tem dinheiro compra, mas também ganha muito a vender. Quem está na origem do processo tem ganhos marginais. O último estudo do Observatório do Futebol, um centro de pesquisa internacional, nota precisamente como são os clubes grandes quem ganha com transferências e defende a urgência de mudanças no sistema. Uma ideia: repartir o dinheiro de uma transferência em partes iguais pelos clubes que o jogador representou, em função do que jogou em cada clube.

Numa análise às últimas cinco épocas, o estudo conclui que dos 12,5 mil milhões de euros gastos em transferências pelos clubes das cinco principais ligas europeias (Inglaterra, Espanha, Alemanha, Itália e França), mais de dois terços reverteram precisamente para clubes desses campeonatos. Há exceções e o FC Porto é uma delas, nesta lista surge na terceira posição global. O facto é que não sãos os clubes formadores quem está a levar a maior fatia das transferências.



Raffaele Poli, responsável por esta análise, falou ao Maisfutebol sobre o problema, um futebol cada vez mais desequilibrado, e sobre possíveis soluções. «Há cada vez maior concentração do dinheiro. O sistema de transferências é uma forma de redistribuir o dinheiro, muito do qual circula entre os clubes que são mais ricos», começa por notar o investigador do Observatório do CIES (International Centre for Sports Studies), centro de pesquisa independente que resultou de uma associação entre a universidade de Neuchatel, na Suíça, e a FIFA.



«O sistema devia assegurar uma melhor distribuição, porque os desequilíbrios estão a acentuar-se», prossegue, notando como a lei do mais forte se está a impor no futebol europeu: «Basta ver a atual Liga dos Campeões, em que os oitavos de final já estavam decididos no primeiro jogo.»

«Não se resolve só mudando o sistema de transferências», admite, «passa muito também pelos direitos de televisão, por exemplo». «Mas o sistema de transferências está a contribuir para isto.»

Uma das alternativas que Raffaele Poli defende é uma melhor distribuição dos lucros de uma transferência «por toda a cadeia» de clubes que um jogador representou. E ao longo de toda a sua carreira, a cada nova transferência.



O regulamento de transferências da FIFA prevê duas vias de redistribuição para a formação. Uma compensação por treino, a pagar em cada transferência de um jogador até que complete 23 anos, e um mecanismo de compensação, que reserva 5 por cento do valor da transferência para o clube ou clubes que o jogador representou entre os 12 e os 23 anos. Mas Raffaele Poli defende que não são suficientes: «A compensação por treino tem um teto máximo de 90 mil euros por ano. E o mecanismo de compensação devolve ao clube formador apenas cinco por cento da transferência.»

Um exemplo: Radamel Falcao

O avançado colombiano, transferido duas vezes por valores acima dos 40 milhões de euros, é o primeiro caso que Raffaele Poli vai buscar para exemplificar a teoria. «Uma ideia possível seria dividir o bolo de acordo com a percentagem de jogos. O Falcao fez 90 jogos no River Plate e 51 no FC Porto, falando só de campeonato. O River Plate ganharia mais que o FC Porto, mas o FC Porto voltaria a ganhar pela transferência do At. Madrid para o Mónaco», nota.

«Se ele vale o que vale, foi também graças ao clube anterior», defende, desvalorizando o argumento da valorização do jogador. No caso de Falcao, ganhou títulos no FC Porto, incluindo a Liga Europa: «Se o jogador tem a possibilidade de jogar no At. Madrid e no Mónaco, não é só graças ao FC Porto, é também graças ao River Plate. Ele no FC Porto fez 25 golos em 28 jogos no campeonato só na primeira época. Não foi só graças ao FC Porto, ele já era bom. É completamente diferente de um jogador que o FC Porto forma.»

Outro exemplo, o de Mesut Ozil. O alemão fez três épocas no Real Madrid, saiu para o Arsenal por uma verba que terá sido na ordem dos 50 milhões de euros. «Na transferência de Ozil, todo o dinheiro foi para o Real Madrid. Se o Werder Bremen também ganhasse e o Schalke também, seria mais equilibrado. Mais do que acontece agora com o mecanismo de contribuição solidária.»

E daí para trás, também. «Não falo apenas dos jogos na equipa principal, mas também nos escalões mais jovens», nota. Até para evitar esquemas para contornar o sistema. «Se não houver compensação mais para trás, pode levar a um movimento que encoraje os clubes grandes a ir buscar os jogadores muito cedo, antes que se estreiem. Isto implicaria também rever as regras de transferências de menores.»

Um sistema como este pretende responder a três questões centrais, explica. «Primeiro, promover a formação e compensá-la. O pilar é o treino, a formação. Com este sistema é mais alcançável. Segundo, promover a estabilidade contratual. Especula-se cada vez mais com jogadores. Em terceiro lugar, garantir maior equilíbrio competitivo.»

Novo exemplo de Poli, para defender como a sua ideia protegeria mais os clubes que formam: «Se um dia o Barcelona vendesse o Messi, ficaria com todo o dinheiro.» 

A estabilidade, os fundos e o dinheiro que sai do futebol  

«Esta redistribuição incentiva e protege mais os clubes se quiserem manter um jogador por mais um ano. Garantem mais dinheiro numa futura transferência. Pode garantir maior estabilidade contratual. O atual sistema encoraja os clubes, até os obriga, a vender os jogadores, ou gastar dinheiro a renovar contrato para não os verem sair. Se não venderem o jogador antes do fim do contrato, perdem todas as possibilidades de fazer dinheiro.»

Um dos problemas levantados pelo Observatório do Futebol no seu estudo é precisamente a instabilidade contratual, patente no aumento do número de transferências no futebol mundial, como demonstrou o estudo demográfico anual do organismo, publicado em janeiro. Os investigadores associam esse aumento da mobilidade a outro fenómeno crescente: a chamada «Third-Party Ownership», parte ou o total dos passes dos jogadores nas mãos de investidores, que lucram com as transferências. 

É dinheiro que não vai para os clubes, nota a análise: «Isto mina mais ainda o papel de redistribuição do sistema de transferências através da pirâmide do futebol.» A questão dos fundos, ou das «terceiras entidades», foi ainda nesta quinta-feira, aliás, abordada por Michel Platini. O presidente da UEFA considerou-os um «perigo» e apelou à intervenção da FIFA.

«Problema são os cinco por cento» mais ricos

Raffaele Poli acredita que a sua sugestão de redistribuição responde a estas questões. «Só vejo aspetos positivos. Melhora a distribuição e os grandes clubes continuam a ter dinheiro», insiste: «O sistema beneficiaria 95 por cento dos clubes. E os cinco por cento que já têm muito perderiam algum dinheiro. Mas eles têm dinheiro.»

A questão é se os grandes clubes estão dispostos a abdicar de alguma parte do bolo, num sistema que os beneficia. Raffaele Poli não tem ilusões. Se depender deles não estão dispostos. E em grande parte depende. «O grande problema são os 5 por cento. Têm muito poder», diz, acreditando que nem a evidência da perda de competitividade dos campeonatos é suficiente para levar os clubes mais poderosos a admitir mudanças: «Em cada nível há mais desequilíbrio. Basta vermos também ao nível dos campeonatos nacionais, com o Bayern Munique na Alemanha ou a Juventus em Itália. É problemático, mesmo para os clubes grandes. Mas se eles tiverem perspetivas de mais segurança para ganhar a Liga e para se tornarem marcas mais globais, por eles está tudo bem.»

«Se deixarmos os clubes grandes governar a indústria, haverá sempre mais elitismo, divisão e desigualdade. Eles defendem os seus interesses, na minha opinião em prejuízo do futebol como um todo», sustenta, defendendo por isso que são os organismos tutelares do desporto quem tem de abordar o problema: «Para bem do jogo, a FIFA e a UEFA deviam ser mais criativas, fazer uma boa análise do que está a acontecer.»

Fim dos campeonatos nacionais, ou um caminho ainda mais afunilado no horizonte

No atual estado de coisas, Raffaele Poli anteve no futuro próximo um caminho ainda mais afunilado. O concretizar de um cenário de que se fala ciclicamente: uma Liga internacional exclusiva dos grandes clubes, que deixariam cair as competições nacionais para se concentrar em algo mais interessante do ponto de vista financeiro: «Por este caminho eles daqui a uns tempos podem decidir que não precisam de uma Liga nacional, podem fazer um campeonato internacional. Uma prova em que têm presença garantida, num sistema financeiramente seguro. Com este raciocínio: ‘Fazemos a nossa Liga, redistribuímos o dinheiro por nós, toda a gente será mais rica, não nos interessa o resto da pirâmide.»

«Este é o desfecho que vejo sem uma reação para procurar soluções alternativas, uma outra forma de ver o futebol. Quanto mais ganham, mais arrogantes e mais poder os clubes grandes querem. É um pouco o que está a acontecer», diz.

«Precisamos cada vez mais de ideias criativas. Se não eles vão dominar cada vez mais», defende Raffaele Poli. É isso que ele está a fazer. «O meu papel como académico é trazer ideias que possam ser mais-valias para o jogo», diz, explicando que o seu organismo não participa diretamente em task forces ou debates da FIFA sobre estes assuntos, mas também convicto de que o tema está sobre a mesa dos organismos internacionais: «Sei que há muitas conversas. Nós lançámos estas ideias, espero que possam vir a ser consideradas por alguns dos decisores da FIFA e da UEFA.»