*com Vítor Hugo Alvarenga

Dia de Taça. Amendoins, tremoços e jogos à tarde. Bancadas de cimento, guarda-chuva e viagens a sítios desconhecidos. Heróis improváveis e tomba gigantes. Hoje há Taça e esperamos que também surjam aquelas surpresas que teimam em desafiar a lógica que tantas vezes impera no futebol.

Os três grandes têm «jogos fáceis», contra equipas de escalões secundários e que não apresentam o mesmo grau de dificuldade do que os adversários da I Liga ou das competições europeias. Os pequenos remetem-se ao seu lugar, sonham com muita gente na bancada, cobertura televisiva e um bom pecúlio para pagar as contas da época. Ninguém o confessa, mas todos sonham em «fazer Taça», eliminar os milhões que vestem a camisola do outro lado do campo.

Cinfães, Alba e Trofense personificam esse espírito por estes dias. Primeiro têm de lidar com um nível de atenção a que nunca foram habituados, depois têm de gerir as expetativas, o nervoso miudinho e os sonhos de quem nunca marcou um golo ao Benfica, ao Sporting ou ao FC Porto. Inspiram-se no passado e recordam histórias de quem traçou a perna aos grandes.

Vamos então entrar no mesmo espírito e recordar três histórias recentes, três jogos em que os três grandes foram eliminadas por três equipas diferentes. Três heróis improváveis que ousaram desafiar os deuses do futebol, inscrevendo o seu nome no livro de ouro da Taça de Portugal, a prova rainha do futebol português.

Uma bomba que calou a Luz

O treinador do Cinfães recordou esta semana ao Maisfutebol um episódio que viveu como jogador quando vestia a camisola do Benfica. 4 de novembro de 2002, 4ª eliminatória da Taça, o antigo estádio da Luz recebia quase vazio o modesto Gondomar. João Manuel Pinto foi titular, partilhando o centro da defesa com Hélder. Pela frente aparecia um avançado brasileiro chamado Cílio Sousa, que tinha estado três épocas no Beira Mar, mas aparecia aparentemente com peso a mais e numa equipa de divisões secundárias.

A história que o treinador do Cinfães conta é que esse Cílio Sousa foi o herói improvável que tombou o gigante Benfica. Ironicamente, a história serve agora de inspiração aos jogadores orientados por Pinto, que recebem os encarnados em casa e sonham derrubá-los, tal como o brasileiro o fez naquela tarde de inverno de 2002.

«O João Manuel Pinto é o treinador do Cinfães? Isso é engraçado. Ele é que me marcou naquele jogo da Luz», graceja Cílio Sousa ao Maisfutebol. Aos 37 anos, o avançado joga agora no ainda mais modesto Gafanha, mas nunca se cansa de recordar aquele livre à entrada da área, meio descaído para a esquerda. Aquela bomba que só parou no fundo das redes de Nuno Santos e calou o Estádio da Luz.

«Foi um golo que marcou a minha carreira. Recordo-me que antes do jogo ninguém nos dava qualquer hipótese, nem nós, mas ninguém entra no jogo de futebol a pensar que vai perder. Bem lá no fundo pensávamos sempre que podia acontecer e aconteceu. Foi um momento que ficou marcado na história do Gondomar e da cidade, porque o Benfica nunca tinha sido eliminado por um clube de divisões secundárias», recorda com orgulho. Pode ser um cliché, mas Cílio não tem pejo em utilizá-lo: «No futebol não há impossíveis e toda a lógica pode ser alterada. De um momento para o outro conseguimos algo impensável».

Um dos lados mais curiosos deste tipo de histórias é mesmo a memória transportada por estas figuras. Para onde forem serão sempre recordados. Cílio tem tantos momentos desses: «Até hoje continuo a ser conhecido pelo golo que marquei ao Benfica. Sou reconhecido em cafés, restaurantes, hotéis, quando menos estou à espera. Até na China, onde joguei sete anos, havia adversários que quando me viam diziam Benfica, Benfica, como que lembrando aquele golo».

Mais de dez anos depois, Cílio mora em Aveiro, continua a jogar futebol e diz que vai continuar a fazê-lo enquanto se sentir digno. Tem a oportunidade de jogar ao lado do irmão Luízão e de Ricardo Sousa, sim «esse» Ricardo Sousa que jogou no FC Porto, Boavista, Beira Mar e muitos outros.

David foi Golias no Dragão

Vítor Baía na baliza, um golo aos trambolhões e um sketch nos «Gato Fedorento». Em poucos dias naquele início do ano de 2007 o herói que se segue viu a sua vida andar à roda. David era o avançado do Atlético, que visitava o Estádio do Dragão pela primeira vez. Do outro lado um FC Porto super-favorito, com Raul Meireles, Paulo Assunção, Quaresma, Vieirinha, Lisandro Lopez e Alan.

Jesualdo Ferreira (curioso, o mesmo treinador que estava na equipa grande na história anterior) decidiu poupar algumas figuras para a 4ª eliminatória da Taça. Descansaram Pepe, Pedro Emanuel, Bosingwa, Bruno Alves, Lucho e Postiga, mas Toni Pereira, o treinador do Atlético, jogava todas as fichas numa surpresa. O golo solitário de David surgiu aos 59 minutos, aos trambolhões, mas com Vítor Baía batido e uma vitória para os da Tapadinha.

«Marquei muitos golos depois, já lá no Chipre, mas é verdade que o golo ao Porto deu-me a possibilidade de ir para lá. Ainda hoje me falam disso. Foi o golo mais importante da minha carreira», recorda o brasileiro ao
Maisfutebol, remexendo de imediato no baú das recordações: «Lembro-me que o nosso mister pensava em não perder por muitos, mas temos de acreditar e fui para lá para marcar. Na altura, nem me apercebi que tinha marcado deitado. Imagine só: marquei no estádio do Porto, deitado, ao guarda-redes com mais títulos do Mundo. Nem pensei naquele momento. Se pensasse, não marcava.»

Sim, um golo deitado, ao Vítor Baía, no estádio do Dragão. O momento inusitado foi aproveitado poucos dias depois por Ricardo Araújo Pereira e companhia, num sketch que celebrizou… «o gordo da contabilidade».



David deixa um conselho para este fim-de-semana: «Quero dizer a quem vai jogar com os grandes que têm de acreditar. Um momento desses muda uma carreira. Eu já deixei de jogar mas nunca mais deixaram de me falar desse golo. E veja só, eu era portista! Quando cheguei a Portugal para jogar no Cucujães, fui morar para o Porto e fiquei a gostar do clube. Depois acabei por lhes marcar».

Penduradas as chuteiras em 2012, chegou a hora de apostar noutros projetos. Aos 36 anos, vive em Olinda, no Brasil, dedicando-se a projetos de construção civil. «Tenho cá a minha mulher e o meu cunhado. Eu sou portista, outro é sportinguista e outro benfiquista. Quando há jogos em Portugal, é sempre confusão aqui em casa», sorri.

Nem com Barbosa o Sporting se segurou

A última história também é contada com sotaque do Brasil e fala do dia em que o Sporting foi eliminado pelo V. Setúbal, então na II Liga. 17 de dezembro de 2003, o Sporting de Fernando Santos jogava no novo Alvalade acabadinho de estrear e do outro lado estavam os tímidos sadinos, que tentavam levantar-se das cinzas sob orientação de Carlos Carvalhal.

O golo solitário foi apontado logo aos 7 minutos pelo improvável Orestes, defesa-central que já tinha representado o Belenenses. De nada serviu a qualidade de Quiroga, Polga, Pedro Barbosa, Paulo Bento, João Pinto, Sá Pinto e Liedson ante um autêntico tomba gigantes.

«Lembro-me bem desse golo ao Sporting porque foi uma das primeiras derrotas do Sporting no novo Estádio de Alvalade (ndr: foi a segunda, tinham perdido um mês antes com o Gençlerbirligi e sido eliminados da Taça UEFA). O Sporting estava num bom momento no campeonato e esse resultado deu-nos moral para o resto da época, o Vitória acabou por subir de divisão. Estávamos na segunda mas com um plantel de primeira, portanto se foi uma surpresa, foi mais para os adeptos do Sporting», conta, ao Maisfutebol.

Também este foi um momento revelador e marcante. «Foi o golo mais importante da minha carreira em Portugal, um momento especial que vou guardar para sempre», confirma Orestes, que aos 32 anos joga no Veria da Grécia.