Músico e autor, letrista e compositor, cantor e produtor. Tozé Brito, 70 anos, hoje administrador e dirigente da Sociedade Portuguesa de Autores, é também filho de um ex-dirigente do FC Porto, mas sócio do Benfica há mais de meio século.

Trocou de clube em criança, quando viu Eusébio levar os encarnados à conquista da segunda Taça dos Campeões Europeus, e depois tornou-se amigo de vários jogadores de futebol, quando também ele virou uma estrela da música, e pôs o país a dançar, nas décadas de 1960 e 1970, com os Pop Five e o Quarteto 1111 – mais tarde viveram os Green Widows e os Gemini.

Nos anos 80, foi mentor do fenómeno «Doce» e ajudou a criar outro prodígio com o amigo Tavares-Teles e o génio de Herman José: o hilariante comentador desportivo «José Estebes».

Nas mais de 500 músicas de que é autor há umas duas ou três dezenas sobre futebol.

O futebol, portanto, andou sempre por ali, a espreitar na vida deste benfiquista que vibrou na Luz e também nas Antas.

Em conversa com o Maisfutebol, Tozé Brito confessa-se um adepto crítico, por ter memória do tempo em que ir a um jogo do Benfica «era como ver uma sinfonia» e reconhece uma virtude maior ao clube da cidade onde nasceu e que se tornou rival do seu: «Quando o FC Porto entra em campo, a intensidade que os jogadores põem no jogo é o dobro da dos jogadores do Benfica. Eles jogam com a vontade e entrega de quem tem raça, de quem está ali a sofrer.»

MAISFUTEBOL: Qual a primeira memória que tem de um jogo de futebol?

TOZÉ BRITO: Nasci no Porto, em Cedofeita, mas fui viver para Paranhos muito pequenino. O meu primeiro clube foi o FC Porto. O meu pai era portista dos sete costados e até chegou a ser diretor financeiro do clube. Comecei a ir ao futebol com ele, ao velhinho Estádio das Antas. Assisti, por exemplo, à vitória no campeonato de 1956, com cinco anos. Sabia aquela equipa do FC Porto de cor, conhecia de perto os jogadores. O meu ídolo era o Hernâni.

No entanto, essa lembrança feliz não foi o suficiente para o segurar como adepto do FC Porto.

Naquela altura, o FC Porto ganhava pouco e sofria muito. Não era o grande FC Porto campeão da Europa. Tinha uma dimensão completamente diferente. Quando os jogos corriam mal, havia ali um clubismo acérrimo. A malta rasgava os cartões e protestava. Eu era criança e aquilo afligia-me muito e o meu pai também ficava perturbado.

Lembra-se do dia em que passou a ser benfiquista?

Perfeitamente. Quando o Benfica ganhou ao Barcelona a primeira final da Taça dos Campeões Europeus, aí, comecei a abanar. Mas, no ano seguinte [1962], quando vi o Benfica ser de novo campeão da Europa e ganhar ao Real Madrid 5-3, disse: «Eu sou do Eusébio!»

Essa decisão foi bem aceite?

Não muito. Com grande pena do meu pai. Para compensar, como os meus irmãos pendiam para o FC Porto e ele lá acabou por se resignar: «Pronto, este saiu ao lado.» Mais tarde, em 1969, vim viver para Lisboa, por causa da música, e tornei-me sócio do Benfica. Já o sou há 50 anos. Sou sócio também da Académica há tantos anos quantos sou do Benfica. Por causa de uma namorada minha que era de Coimbra. Ia ver os jogos com ela. Nessa altura, conheci muitos jogadores: o Toni, o Artur Jorge, mais tarde o Humberto Coelho. Ia vê-los jogar e mais tarde íamos jantar, beber um copo, etc. Mais tarde ainda conheci Carlos Manuel, Diamantino, Chalana e também jogadores do Sporting e do FC Porto.

Dos jogos que viu ao vivo na Luz houve algum que o marcou em particular?

Pela negativa, lembro-me de uma «tareia» que levámos do Liverpool, por 4-1, em que chovia torrencialmente: a água entrava pelo pescoço e saía pelos pés. Foi uma noite desgraçada. Mas, de resto, o Benfica passeava em campo e dominava o panorama nacional.

Das mais de 500 músicas que compôs houve umas duas ou três dezenas sobre futebol. Dessas, quais as que mais o marcaram?

Escrevi por exemplo o hino da Seleção para o Euro 84. Alguns jogadores, os que eram menos desafinados, cantaram em estúdio connosco. Escrevi também algumas canções para o meu clube, como o «Benfica até ao fim» ou o «Venceremos». Fiz curiosamente uma música em 1985 para o FC Porto com a letra do meu grande amigo António Tavares-Teles, que era portista «doente».

Nessa música canta-se «FC Porto o maior de Portugal». Esse refrão não lhe causou alguma impressão como benfiquista?

A letra é do António Tavares-Teles. Tenho esse álibi. Eu não escreveria isso. [risos]

O «José Estebes», personagem de Herman José, surgiu dessa parceria com o António Tavares-Teles. Como aconteceu isso?

Nós escrevíamos os textos, depois o Herman dava-lhes uma grande volta. Não percebendo de futebol, o Herman, como genial humorista que é, percebeu logo o potencial que o futebol tem. Então, criámos o boneco, ele deu-lhe vida e foi um sucesso enorme.

Concorda com o Herman de que a ida do José Maria Pedroto ao «Tal Canal», para ser entrevistado pelo «Estebes», ajudou a caucionar a personagem junto de alguns adeptos do FC Porto?

O Herman disse «quero fazer um comentador desportivo» e nós começámos a fazer os textos sem saber se a personagem iria ter sotaque do Porto, de Lisboa, do Algarve ou dos Açores. Quando vimos o boneco pela primeira vez percebemos que ele se tinha ido inspirar num célebre empresário artístico nortenho. Quando percebemos que aquilo podia ferir algumas sensibilidades, o António, que era muito próximo do José Maria Pedroto, convidou-o para ir ao programa e ele fez-nos esse favor.

Como era Pedroto?

Convivi bastante com ele, embora o Tavares-Teles fosse muito mais próximo. Era um homem superinteligente, vivia para o futebol, sabia muito. Tinha sido um grande médio e tornou-se num grande treinador. Foi Pedroto que começou aquilo que o FC Porto é hoje. Estava nas Antas quando essa fase começou, num dos jogos que mais me impressionou na vida.

Que jogo foi esse?

O clássico, em 1978, em que o FC Porto empatou com o Benfica (1-1) e acabou por ser campeão 19 anos depois. Estava nas Antas com amigos meus, portistas, e com o meu irmão Pedro, que é ferrenho. Eu era o único benfiquista e ali no meio nem me podia sequer manifestar... [risos] O jogo começa com um autogolo do Simões (defesa do FC Porto) e o Benfica vai segurando aquilo e vai defendendo bem… Era quase impossível entrar ali. A um quarto de hora do fim o Humberto Coelho recupera uma bola a meio-campo, vai até à entrada da área e, quando o Fonseca sai, ele remata à barra. Quase foi o 2-0 para o Benfica e o estádio emudeceu. Ficou um silêncio total. Já ninguém acreditava. Então, a cinco minutos do fim, o Ademir remata entre um cacho de jogadores e faz o golo do empate. O estádio explodiu de alegria. Eu, que sou benfiquista, fiquei aliviado com aquele golo do FC Porto. A malta a saltar ao meu lado e eu também a saltar. Estava a ver tanta gente em sofrimento que só pensava «que o FC Porto faça um golo rápido». Depois desse jogo, curiosamente, fomos a casa do Pedroto, que era perto do estádio. A partir daí, o FC Porto começou a ser outro clube, com outra dinâmica e com mística. Às vezes, pode parecer uma palavra estúpida, mas não é. A mística existe. Ainda jovem, joguei andebol federado no Académico do Porto e sei o que é a mística de um balneário.

Assistiu a jogos emocionantes na Luz e nas Antas, entre outros estádios. Vive-se de forma diferente o futebol no Porto e em Lisboa, por exemplo?

Diria que no Porto, apesar de tudo, o futebol é muito mais importante do que em Lisboa. O FC Porto não é só um clube: simboliza uma cidade e uma região. Quando o FC Porto entra em campo, a intensidade que os jogadores põem no jogo é o dobro da que põem os jogadores do Benfica. Os jogadores do Benfica têm qualidade e batem-se com os do FC Porto. Um ano ganha um, noutro ganha outro… Mas dentro do campo o FC Porto joga com uma vontade e com uma entrega que é clássica de um clube que tem raça, de quem está ali a sofrer. Nos jogadores do Benfica, por muito que suem a camisola, não noto o mesmo. Há uma mística que mesmo os jogadores estrangeiros quando chegam ao Porto rapidamente interiorizam.  Aqui, em Lisboa, cada um vai para seu lado e depois juntam-se no Seixal para treinar.

Portanto, considera que há ali uma causa que transcende meramente o jogo?

Claramente. O Liverpool tem isso, tal como tinha o Manchester United, que durante muito tempo era quem fazia o contravapor em relação a Londres. Já o Chelsea ou o Manchester City, por exemplo, não têm. Senti isso nos dois anos que vivi em Inglaterra. Aliás, o meu clube era o Chelsea. Vivia muito próximo de Stamford Bridge e fazia o caminho a pé para o estádio. Para lá do futebol, o FC Porto representa essa causa de bandeira contra o centralismo, que faz com que todo o poder esteja concentrado na capital. Aliás, eu sentia isso quando vivia no Porto.

A geografia pode ser determinante na forma como se vê o futebol e a vida?

Aquela máxima de no Norte é que se trabalha, não é verdade. Trabalha-se tanto em Lisboa como no Porto. O que há é mais espírito empreendedor no Norte. Aliás, porque é que há uma série de indústrias – têxtil, calçado, etc… – concentradas no Norte? Porque as pessoas não ficam à espera que lhes resolvam a vida. Os lisboetas têm uma visão da vida mais relaxada. No Porto há uma tensão natural, uma pulsão que torna tudo mais vibrante. E a cidade do Porto tornou-se mais cosmopolita nos últimos anos.

Voltando à sua vocação: encontra semelhanças entre o futebol e a música?

Futebol é desporto, música é arte, mas ambos são entretenimento. Tenho muitos amigos no futebol e há uma afinidade de alguns dos músicos da minha geração com antigos jogadores do Benfica, por exemplo. Encontramo-nos nos mesmos sítios, ficamos à conversa…

No entanto, em Portugal, porque é que não há assim tantas muitas músicas sobre futebol?

Em termos comerciais as experiências que se fizeram não tiveram grande sucesso. As pessoas até podem achar piada, mas depois não compram um álbum para ouvir canções sobre futebol. É melhor ouvir falar de amor! [risos]

Voltando ao «José Estebes»: uma das exceções de músicas intemporais sobre futebol será o «Vamos lá Cambada».

O «Vamos lá Cambada» é um tiro certeiríssimo do Carlos Paião, que era genial a escrever. É das poucas canções ligadas ao futebol que a malta ainda canta, mas quantas pessoas foram a uma discoteca comprar esse disco?

Falando do seu Benfica: no ano passado não estava contente com a equipa e chegou a dizê-lo publicamente.

Eu sou um adepto crítico.

Este ano está mais satisfeito?

Por um lado, sim. Porque depois do ano passado dificilmente o Benfica poderia fazer pior. Dá-me mais prazer ver a equipa jogar este ano, praticam um futebol mais bonito. Agora, vamos ver se isto é para durar. O tempo em que eu ia ver o Benfica e sabia que ia ver uma sinfonia já lá vai. Houve equipas do Benfica que nunca jogaram mal, tinham dias de vez em quando em que perdiam, como todas as equipas do mundo. Nessa altura, em 10 jogos, nove eram garantidamente bons. Hoje em dia, há seis ou sete bons e três ou quatro maus.

Essa memória aguça o seu lado crítico?

Não posso deixar de o ser, porque o futebol movimenta milhões. Há pessoas que fazem sacrifícios enormes para verem os seus clubes jogar, para pagarem quotas, para comprarem camisolas para os filhos… Para aquilo que se paga aos futebolistas, na minha visão eles têm de ser tão espetaculares como eu como músico tenho de ser em cima de um palco. Não posso ir para o palco pensar “para este público, bacalhau basta. Canto umas cantigas e meto o cachet ao bolso”. É isso que não perdoo: a falta de brio profissional, sobretudo de quem ganha milhões. Em palco ou no relvado, temos de dar tudo.

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