«Um café com...» senta o Maisfutebol à mesa com figuras eminentes da nossa sociedade, nomes sem ligação aparente ao desporto, a não ser a paixão. A música, a literatura ou o cinema enredados nas quatro linhas de conversas livres e descontraídas. Críticas e sugestões para pcunha@mediacapital.pt ou bmmr.externo@medcap.pt 

Escritor, editor, jornalista, comentador, ex-Secretário de Estado da Cultura. Com muitos interesses, que vão da literatura às viagens, passando pela gastronomia. E pelo futebol. Francisco José Viegas, 57 anos, adepto do FC Porto contra a unanimidade, recebeu o Maisfutebol para uma conversa que começou com um café e teve, claro, o futebol como cenário.

Fala das memórias de infância no Pocinho e em Chaves, do futebol espanhol que dava na televisão, ali perto da fronteira, quando só se «via» futebol português pelos jornais, conta como se tornou adepto do FC Porto por se irritar quando o punham perante a escolha entre Benfica ou Sporting. De como era solitário ser portista em Lisboa, para onde foi estudar. Daquilo de que gosta no futebol e daquilo que o irrita, de como o que lhe interessa não é tanto ganhar, mas «pertencer». E de como isso inclui gostar às vezes de… maus jogadores. Uma conversa com histórias, sentido crítico e humor. Aquilo a que no fundo acha piada no futebol.

Qual é a sua primeira memória de futebol?

A minha primeira memória é um Foz Côa-Freixo de Numão, jogado no campo de Foz Côa. Era junto da aldeia onde nasci, o Pocinho. Foi o primeiro jogo que me lembro de ter visto. Depois foram os jogos, ao vivo, no Estádio do Chaves, a terra onde fui morar com os meus pais durante muito tempo e era o meu primeiro clube, o Chaves. Aquela festa… Nós morávamos a 500 metros do estádio e ao domingo, de 15 em 15 dias, ia com o meu pai ao campo. Isso e ver os jogos todos os domingos na televisão espanhola. Era a televisão que nós víamos mais, curiosamente, estávamos na fronteira. Havia sempre um jogo do campeonato espanhol ao domingo, na TVE. Por isso acompanhei também durante muito tempo o campeonato espanhol, era uma coisa de infância para mim, ver aquelas equipas que jogavam um futebol muito melhor que o nosso…

Portanto, via mais futebol espanhol nesse tempo do que português…

Futebol português não havia muito na televisão. Via através do jornal, do Primeiro de Janeiro e do Jornal de Notícias, que eram os jornais que líamos lá em casa. Na televisão era só nas ocasiões especiais, como para toda a gente que vivia longe de Lisboa e do Porto. Então eram os jogos da televisão espanhola. A gente já sabia que todos os domingos ao final da tarde, religiosamente, tínhamos um jogo de futebol espanhol. Fazia parte do ritual de domingo, ver o jogo no Estádio do Chaves, de 15 em 15 dias, fazer um intervalo de fim de tarde e depois passava o jogo.

No tempo dessa primeira memória de um jogo no Pocinho que idade tinha?

Uns quatro, cinco anos. Mas lembro-me, e por um motivo fútil. Nem era pelo jogo. Se me perguntar como era o equipamento do Foz Côa não me lembro. Ainda hoje, é uma coisa absurda, lembro-me da patrulha da GNR. Era um campo em que a divisória era só uma barra de ferro e lembro-me do senhor da GNR que durante muitos anos era o meu pavor…

Sempre teve essa curiosidade de olhar em volta?

O futebol nunca foi para mim só o futebol. É um bocado tudo à volta. Era a ida ao jogo, assistir à chegada das equipas, à chegada das pessoas, conversar com as pessoas que veem o jogo. O futebol nunca é só os 90 minutos, há todo um ritual. Ainda hoje, quando vou ao Dragão, não vou em cima da hora. Vou sempre um bocado antes, porque gosto de ver o ambiente, gosto de beber e comer qualquer coisa antes. Gosto de me sentar na cadeira meia hora antes pelo menos. As pessoas acham um bocadinho absurdo, mas para mim aquilo é um espetáculo, é uma romaria. Se é para chegar um minuto antes do jogo e sair logo a seguir, a gente fica ao pé da televisão. Eu gosto de participar um bocadinho naquilo. E acho que o futebol tem esse lado de festa que é o que me encanta mais. E a capacidade de esse lado de festa contaminar o resto do jogo. Nunca foi sempre só o jogo.

É isso que o atrai no futebol?

O que me atrai no futebol é o espírito. É o espírito de guerra. É aquilo ser a continuação da guerra por outros meios… Não acho que o futebol seja um desporto, aquela coisa do desporto… Não acho nada. Futebol é uma atividade guerreira, de tribo, e é uma arte. Esse lado acho encantador, é isso que mobiliza as pessoas. Portanto, a nossa participação num jogo tem muito a ver com essa disponibilidade para a guerra. Por isso é que é preciso ver futebol com humor, porque se a gente vê futebol com muita seriedade ficamos assassinos, uns celerados, umas pessoas sem graça. Às vezes quando vejo alguns comentadores com um ar muito sério, acho aquilo ridículo.

Apesar de usar essa analogia da guerra, que é um termo forte. Fala de guerra no sentido tribal, de identificação?

Guerra porque a guerra, o combate, são coisas que fazem parte da nossa vida desde miúdos. Nós fazemos guerra com os miúdos do bairro, escolhemos um grupo, escolhemos pertencer a uma nação. Identificação tribal. É o que nos salva, termos uma tribo, se não vivíamos todos sozinhos. Não acredito nada naquela ideia do «Somos todos…» Não, não somos todos. Aliás, foi isso que me levou a optar pelo FC Porto. Mas quando vejo os comentadores muito sérios, de sobrolho franzido… Ou estão a fazer um serviço, e geralmente estão, ou então não têm a noção do que é o futebol. Eu encaro o futebol com humor. Com simpatia, que é uma coisa que as pessoas não percebem. É uma coisa divertida. Se não, a gente perde um jogo e morre. Destrói a vida. Não! O futebol é uma metáfora da vida, é verdade, mas não é só o futebol, é outras coisas. Por isso é que eu gosto de ir para o estádio antes e sair depois, porque gosto daquela onda, de ouvir as piadas.

Falou do que o levou a tornar-se adepto do FC Porto. Como foi?

Justamente porque as pessoas me perguntavam: «És do Sporting ou do Benfica?» E essa unanimidade nacional irrita-me muito. O meu pai era sportinguista, que já era uma coisa que me agradava, porque não era benfiquista. E eu tinha alguma simpatia pelo Sporting, porque ia com o meu pai ao futebol e tal. Mas depois aquela coisa, és do Sporting ou do Benfica, e eu disse não… E houve outra coisa. Nós éramos vizinhos dos pais do Pavão, que era jogador do FC Porto. Quando ele morreu, em dezembro de 1973, para mim foi emocionalmente muito forte. Porque o conhecia, era miúdo, via o Pavão, os pais do Pavão… E aí nasceu uma grande ligação ao Porto.

Mais emocional por causa do Pavão…

Muito mais emocional por causa do Pavão. Logo a seguir entra o Cubillas, que foi outro dos meus ídolos de infância/adolescência. E aquela equipa, com o Rolando, Oliveira, o Pavão, é uma equipa que ainda hoje não esqueço.

Isso de o colocarem perante a escolha entre Sporting e Benfica é de um tempo em que o FC Porto ainda não era o que foi depois, a partir dos anos 80, um tempo em que esteve muito tempo sem ganhar...

Sim. Esteve muito tempo sem ganhar e isso não me assustava muito. Assustava-me mais, por exemplo… Quando vim para Lisboa estudar, em 1979, houve um ano em que ganhámos um jogo ao Sporting em Lisboa, 80 ou 81. Eu estava tão contente. E lembro-me que no dia seguinte, fui para a Faculdade e que não havia uma única pessoa para festejar. Eu estava ali sozinho… Portanto, hoje quando as pessoas dizem que é difícil ser do Porto, e é muito difícil ser do Porto ainda hoje, eu lembro-me que ser do Porto em Lisboa era uma raridade. Era uma coisa exótica. Dessa vez aquela coisa de não haver ninguém do grupo também me marcou um bocadinho como adepto do FC Porto.

Porque é que diz que é difícil ser do FC Porto?

Porque há uma benfiquização absoluta da vida portuguesa. Cada vez mais. Como no tempo do fascismo. É uma coisa mental. Os órgãos de comunicação, a imprensa, a televisão, é maioritariamente sensível ao negócio do Benfica, ao negócio do futebol. Hoje vive-se muito em torno disso. Não é difícil no sentido em que… é o segundo clube em termos de sócios e adeptos, mas tem de se ter muito sangue frio.

O FC Porto também teve um período de hegemonia…

Sim, mas nunca deixou de ser a segunda força. Não em termos de notoriedade, mas em termos de peso demográfico. O que não é mau, isso não me assusta. Eu podia ser adepto do Salgueiros, ou do Mirandela, ou do Riopele, que já não existe.

Ou seja, não é tanto ganhar o que o atrai.

Não, a mim agrada-me pertencer. Perceber que ser de um clube é aceitar o seu folclore, a sua pequena desgraça, até as suas pequenas pirosices. O Julian Barnes, um escritor de que eu gosto muito, alimentou durante anos secretamente a sua paixão pelo Leicester. E quando o Leicester ganhou, ele escreve um dos artigos mais maravilhosos de sempre para mim, não sobre o Leicester mas sobre futebol, sobre a magia e a paixão do futebol. Apreciei muito o gesto, dele gostar do Leicester, mesmo do seu lado mau. Claro que o lado mau não é o lado criminal, é o lado menos agradável de ver.

Acha que isso também tem a ver com o olhar dos ingleses sobre o futebol?

Sim, porque varreram o lado criminal. Enquanto nós não varremos. Há um lado criminal que está muito associado ao futebol em Portugal. E está cada vez mais, porque há uma total impunidade desse lado criminal. O que é uma coisa triste, que deve deixar qualquer adepto triste. E estou a dizer isto em relação a qualquer clube, quer seja o Benfica, o Porto, o Sporting, qualquer um.

Porque é que acha que isso continua a acontecer?

Em parte por causa dessa benfiquização absoluta da vida portuguesa. Acho isso um fenómeno empobrecedor. Esta pretensa unanimidade nacional, não se pode fazer nada contra ela, porque é o que é. Mas parece-me que quer os mecanismos, quer de investigação jornalística quer judicial, estão de certa maneira prisioneiros dessa influência poderosa, não estou a dizer que seja ilegal, mas poderosa, do Benfica.

Esses meandros do futebol…

Não me interessam nada, é horrível. Já me interessaram, mas a partir da altura em que vamos percebendo e conhecendo histórias, vamos tendo cada vez menos paciência. Quanto mais conhecemos menos queremos conhecer. Porque não são coisas simpáticas. Depois, é um mundo que move muito dinheiro, muita influência política, empresarial. Portanto, está marcado pelos seus próprios pecados de cupidez, de pequena corrupção, de grande corrupção, de influência…

É o mundo que serviu de pano de fundo ao seu romance «Morte no estádio», de 1991

Sim. Mas eu voltaria a escrevê-lo, provavelmente com mais intensidade. Mas o olhar do livro não é sobre esse mundo. É sobre o mundo que está por detrás do futebol. Aquilo que me apaixonou muito na altura era ir procurar o lado escondido das estrelas do futebol, dos jogadores. E ao mesmo tempo brincar com um poder extraordinário, que era o futebol. Por isso é que eu escolhi o FC Porto, para que não me acusassem de estar a brincar com o Benfica. E houve uma grande tolerância e grande abertura do FC Porto, quando escrevi o «Morte no estádio».

Disse uma vez que o futebol é um antídoto para a solidão. É nesse sentido de pertencer à tribo?

Sim. Eu já fui ver jogos sozinho, mas não gosto muito. Vou sempre com um dos meus filhos, portista, ou com a minha filha, portista, ou com a minha mulher, portista… Quer dizer, eu acho que ela é do Leixões, é de Matosinhos. Acho que ela me trai com o Leixões… Mas vai comigo ver os jogos do FC Porto. É bom ir com companhia. Uma das coisas fantásticas do futebol é ter transportado dois mundos para as bancadas. O mundo da rua e o mundo da família. O pai que leva os filhos, o marido que leva a mulher, a mulher que leva o marido. Isso é muito engraçado e não tem a ver com o desporto. O desporto tem muito a ver com a competição física, e o futebol não. O futebol tem espírito de rua. Toda a gente pode jogar, não tem a ver com superação extrema. Tem a ver um bocadinho com arte, com familiaridade, com amizade. Portanto, é de facto um antídoto contra a solidão. Lembro-me que ainda no Estádio das Antas eu ficava quase sempre no mesmo sítio. E as pessoas eram as mesmas. Encontrávamo-nos e dizíamos as mesmas piadas sobre os mesmos jogadores, dizíamos mal deste ou daquele. Ainda me lembro que havia três ou quatro pessoas que sempre que determinado jogador, não vou dizer quem, tocava na bola, eles viravam-se de costas: «Não quero ver, não quero ver...» E vejo amigos meus, que são do Sporting ou do Benfica, que vão e se juntam com as mesmas pessoas no estádio. Esses rituais são muito bons. E no caso masculino são rituais de iniciação permanente, são rituais de passagem. Eu ia com o meu pai ao futebol e era uma espécie de socialização.

Vai com regularidade ao Dragão?

Sim, quando posso. Não tenho lugar cativo, mas compro quase sempre o mesmo lugar. E gosto de ir para a bancada para o meu lugar, não gosto lá das tribunas… Porque lá está, para mim ir ao futebol não é ir festejar uma vitória, é ir assumir um risco. E mostrar que estou a assumir o risco. Portanto, gosto de ir para o meio das pessoas que estão a sofrer como eu.

Acha que todo esse ritual de ir ao estádio está em risco com a mudança de hábitos e tanto futebol na televisão?

Acho que há um excesso de futebol na nossa televisão, isso acho. Mas não é censurável, ou melhor, regulável. Acho é que pode vir a ser prejudicial ao próprio futebol, porque as pessoas um dia podem cansar-se mesmo, e as audiências podem baixar. O problema é que esse excesso nem sempre é sobre futebol, é sobre política, economia, crime, corrupção, questões jurídicas. Muitos programas, em que eu também participei, muitas vezes não são sobre futebol. São sobre fait divers. Futebol mesmo é quando a gente vê o jogo, vê se é bem ou mal jogado e diz piadas sobre o assunto. Coisa que se resolve em meia hora. Não é preciso mais. Agora, de facto o futebol movimenta muito dinheiro. Depois temos as transferências… Se fossemos ver as capas dos jornais desportivos sobre jogadores que seriam transferidos teríamos a maior concentração de talentos e génios do mundo. Mas vemos a quantidade de transferências falhadas, e de jogadores anunciados, e de favores aos clubes e aos agentes, é assustador. Por isso é que quando se fala de imprensa desportiva eu tenho muitas dúvidas. Imprensa mesmo, jornalismo, duvido muito.

Gosta muito de falar de futebol? Há um ano esteve no México na Feira do Livro de Guadalajara e fez uma conferência em que o tema era futebol, uma analogia com Herrera pelo meio.

Sim, até usei o nome do Herrera («Deus é redondo e Herrera o seu pastor», era o tema). Foi muito engraçado, e era também para puxar um bocadinho pela audiência. Era sobre futebol e literatura e sobre a similitude que existe entre um bom romance e um bom jogo de futebol, entre um bom romance e um bom romance policial. Há uma série de metáforas de futebol que podem ser aplicadas na literatura, ou na análise literária. Deu-se o caso na altura de o Porto ter uma série notável de grandes jogadores mexicanos, como o Corona, o Herrera, o Layún, e de serem heróis nacionais no México. A conferência estava cheia porque as pessoas pensaram: «Ele vai falar do Herrera, e do Tecatito?» Há uns anos também fui fazer uma conferência sobre romance e sobre os meus livros na Colômbia, na altura do Falcao, e do James Rodríguez, aquela gente toda, no FC Porto. O Presidente da República da Colômbia era um fanático de futebol e um fanático do FC Porto. A certa altura dizia-me: «O que é que está aqui a fazer? Daqui a bocadinho vai começar o jogo!» Eu, com cinco horas de diferença horária, nem me lembrava do jogo. E foi ele que me disse: «Vá, tem que ir ver o jogo, tem que acabar a conferência.» Porque no fundo ele também queria ir ver o jogo. E estes fenómenos são muito engraçados. Lá está, a socialização, que não tem a ver com maldade, nem com aquela violência que às vezes se vê.

É a tal universalidade do futebol?

Sim, estar na Colômbia e falar com o presidente sobre futebol, como no outro dia estava em Pequim e estava um tipo a falar-me do Hulk, isso é extraordinário. Essa universalidade do futebol é muito engraçada, e só é garantida porque é um desporto popular, ou melhor é uma guerra, um combate. Não é uma coisa para apreciarmos os músculos do Ronaldo. A gente aprecia quando são eficazes, quando ele salta a dois metros e tal. Mas não são fundamentais. Se calhar às vezes a barriga do Maradona funcionava melhor. A gente não está ali para ver a performance física. Isso é outra coisa. A gente olha para o Messi, por exemplo, não tem um grande perfil de atleta. É muito diferente analisarmos a forma atlética de um atleta e a performance de um jogador. Eu por exemplo às vezes gosto de maus jogadores.

Então?

Quer dizer, maus jogadores no sentido de jogadores com deficiências. Por exemplo, eu gosto do Marega. O Marega não é mau, mas não é um brilho de jogador. Mas cumpre a sua função.

Tem ainda mais valor do ponto de vista de um adepto quando um jogador desses se supera?

Claro! Lá vai ele, o nosso feio! A gente tem essa tentação. Se a gente quisesse uma coisa perfeita ia ao Museu de Arte Antiga. Ali não, ali vamos ver as nossas imperfeições refletidas nos jogadores. O mau feitio, etc. Há jogadores do FC Porto de que eu gosto ainda hoje e não eram grandes jogadores, mas tinha uma ternura especial por eles.

Tais como?

Ah… Olhe, o Celso, que era um jogador de que eu gostava muito, o Frasco, por quem tinha uma especial admiração… Naquela esquadra do Madjer, Juary, há uns que eram brilhantes, outros que eram divertidos, às vezes por serem até maus jogadores. O Tarik Sektioui não era um grande jogador, mas era divertido quando ele apanhava a bola, e fazia aquela ala… Ainda hoje, a gente vê o Marega ali a puxar, a puxar, aquilo é superação. O Marega nunca me sairá do coração. Uma vez, ele era jogador do V. Guimarães e foi receber a medalha do segundo classificado, depois de perder a final da Taça com o Benfica, e alguém na assistência diz «O Porto é merda» e ele volta-se para trás furioso… Isto nunca me saiu da memória. Ele pode ser mau, mas se joga eu apoio o Marega. A gente tem simpatia muitas vezes por maus jogadores. É como em literatura, também gostamos de maus romances. Ou de maus filmes, eu às vezes gosto de um mau filme. É uma maneira um bocadinho inocente, eu sei, de ver futebol.

Mas faz questão de ver futebol com esse olhar inocente?

Faço questão de ver assim. Claro que se fosse dirigente ou técnico veria de outra maneira. Mas não sou.

Nem nunca lhe passou isso pela cabeça no meio de tanta coisa que já fez?

Não, não tenho jeito nenhum! Uma das histórias mais divertidas da minha vida, e de futebol, que contei outro dia no Twitter, foi no ano do Penta do FC Porto. Fui com os meus filhos ver o último jogo, às Antas. Era o FC Porto-Estrela Amadora, o Porto ganhou. Nós almoçámos na Praça Velazquez, ao pé das Antas, e fomos para o estádio. Eu nessa altura fazia um programa com o Santana Lopes e o Fernando Seara. E há um senhor, com uma bandeira enorme do FC Porto, que olha para mim, reconhece-me e diz: «Ah, gosto muito de o ver na televisão. O senhor fica muito bem. Gosto muito.» Depois pára e diz: «Quer dizer, vamos lá ver… O senhor de futebol não percebe um caralho. Agora, com você lá até parece que a gente sabe ler e escrever.» E eu acho que ele tinha razão em tudo… É esta jovialidade na relação com o futebol que é boa. Claro que quando uma pessoa perde nem sempre consegue essa dimensão da jovialidade… Lembra-me o Nick Hornby, que tem aquele livro, o «Fever Pitch», em que ele acompanha os jogos do Arsenal e o Arsenal nunca ganha. Mas é outra cultura futebolística.

É a tal abordagem diferente do futebol inglês?

Sim, uma cultura de participação, de associação. Nós não temos. Temos muito esta coisa de temos que ir, temos de ganhar. Esta coisa ridícula que Portugal tem de «Temos de ser os melhores do mundo». Não somos. E ser o melhor do mundo traz imensa responsabilidade, exige uma superação constante. Nós não temos essa capacidade.

Voltando ao futebol e à literatura, quais são os pontos comuns?

São muitos. A criação de pontos de emergência num jogo. Se num romance ao terceiro capítulo não houver um ponto que me faça despertar uma pessoa desliga. Se num jogo até aos 20 minutos não houver ali momentos especiais a pessoa desliga. Um jogo de futebol tem de ter os seus pontos altos, os pontos baixos. É importante esse desequilíbrio. Não é equilíbrio, eu não quero um jogo equilibrado, quero um jogo desequilibrado. Quero pontos em que a gente assobie e pontos em que fique extasiado. Por outro lado há a necessidade de superação e essa superação é mágica. A gente sabe que para fazer um jogo perfeito é preciso muito treino. Como na literatura, é preciso muito trabalho, é preciso deitar muito papel fora como é preciso deitar muitas jogadas fora. Há uma relação muito especial entre o que é o espírito de futebol e o que é o espírito da literatura.

O futebol tem essa identidade de arte, de expressão artística?

Tem, de expressão artística, de movimento… Depois esta coisa que a televisão tem vindo a estragar que é velocidade, velocidade. Velocidade porquê? Quem corre é a bola, não são os jogadores. É a diferença entre um tipo que corre, corre e um tipo que pára o jogo. Porque é que eu gostava do Herrera? Apesar de o Herrera ser muito de altos e baixos. Mas há momentos fantásticos do Herrera, porque o Herrera era aquele que parava a bola. Parava o jogo, conseguia parar o tempo e criar um momento para pensar o jogo. A partir daquele instante, o jogo vai começar onde o Herrera escolher. Isso era muito bom no Herrera, como noutros jogadores. Às vezes vemos alguns comentadores que são um bocadinho patetas que acham que aquilo tem de ser «ta-ta-ta-ta». É absurdo. Depois aparece um jogador com um talento extraordinário como o Messi, ou o Quaresma, ou Ronaldo, estes três, ou o Hulk também… O Quaresma é um génio. Li um texto fantástico do Valdano sobre o Quaresma. Eu depois exagerei-o, retomei o texto. O Quaresma é um cantor de Flamenco, tem o brilho de um bailarino de Flamenco. Ele exibe-se, o que é bom para os adeptos, e por outro lado improvisa de maneira fantástica. E essa capacidade de improvisação do Quaresma, como do Messi, não são para fazer «ta-ta-ta-ta», como dizem os comentadores. Eu aprecio o talento, e o talento é fazer coisas impossíveis. Isso não é explicável pelos senhores que sabem as estratégias todas e as táticas todas. Se não estivermos disponíveis para a improvisação, então não gostamos de futebol. Até no Benfica havia jogadores que tinham isso…

Consegue valorizar isso num adversário?

Consigo. Há jogadores que me são altamente antipáticos, mas que desequilibram um jogo. Isso não é a perspetiva de um comentador, ou de um técnico, é de um outsider.

Alguma vez jogou futebol?

Só pela minha terra, pelo Pocinho. Jogava no verão e a nossa grande alegria era ganhar ao Foz Côa. Era o grande dérbi… Era uma brincadeira, mas jogávamos, num campo meio areia, meio relva. Eu era defesa.

Qual é o jogador que lhe fica na memória, qual é o grande jogador da sua vida?

Não consigo dizer. É como aquela coisa, Pelé ou Maradona…

Ou Messi ou Ronaldo…

Ou Messi ou Ronaldo… É como dizer, Pelé ou Maradona, então e o Garrincha, que era maravilhoso? E o Didi? Só vi alguns vídeos deles, mas havia coisas, dos movimentos do Garrincha… O Van Basten, ver aquele golo do Van Basten… Sei lá. Há jogadores maus que gostei muito de ver, Gostava muito do Cubillas. Como gostava do Raul, do Real Madrid, achava aquela melancolia dele fantástica. Como do Ricardo Quaresma, que foi um jogador mal compreendido, um génio.

Portanto, o que guarda do futebol são momentos?

Sim. Muito mais aquilo que de repente brilha mais num jogador, num jogo. 50 anos depois lembro-me de um golo do Jairzinho no Mundial 70. Como me lembro de um golo do Rolando, no Porto, que não era um grande jogador mas fazia umas incursões pela ala direita e quando chegava ali pela altura do banco o Pedroto gritava-lhe: «Cruza, cruza!» E há um dia que o Rolando estava farto de ouvir o «Cruza», que era para cruzar para o Oliveira e tal, rematou e marcou um golo. Nunca me hei-de esquecer. E o Pedroto fez aquele gesto: «Também está bem.»