«Um café com...» senta o Maisfutebol à mesa com figuras eminentes da nossa sociedade, nomes sem ligação aparente ao desporto, a não ser a paixão. A música, a literatura ou o cinema enredados nas quatro linhas de conversas livres e descontraídas. Críticas e sugestões para pcunha@mediacapital.pt ou bmmr.externo@medcap.pt 

São quase 30 anos a fazer cartoons. Não necessariamente humor, diz ele, mas um olhar crítico sobre a atualidade. Futebol também, ainda que não seja propriamente um grande adepto. Sobretudo do futebol português.

Luís Afonso, 54 anos, alentejano de sempre. O autor de Barba e Cabelo, que assina no jornal A Bola desde 1990, do Bartoon, no Público, ou mais recentemente da Mosca, na RTP e Antena 1, falou com o Maisfutebol sobre desporto, o seu e aquele sobre o qual trabalha. Foi um café virtual, a agenda e a distância assim mandaram. Mas teve muito que contar. Uma conversa para ler com o sentido de humor ligado. Provocadora, mordaz. Sem se levar demasiado a sério, como ele e os seus cartoons.

Faz humor sobre futebol há muito tempo, mas nem sempre foi grande fã de futebol, pois não?

Continuo a não ser… Sobretudo do futebol português. Muitas vezes não vejo os jogos. Espero que acabem para ver no fim as declarações e saber o que aconteceu. Se acontecer alguma coisa de importante durante o jogo que tenha de ver puxo para trás. Estou muito grato a estas novas tecnologias porque permitem-me não ver os jogos. Não levar com aquilo. É uma crueldade uma pessoa com os impostos em dia e o registo criminal limpo ter que ver os jogos do campeonato português. É muito mau. Há aquela história de quem fez alguma coisa mal ser condenado a serviço comunitário. Podia haver uma outra pena, que é o tipo ser condenado a ver jogos do campeonato nacional, uma coisa mais dura.

E outros jogos, por exemplo a Liga dos Campeões?

Vejo. Gosto de ver Liga dos Campeões. Gosto de ver a Liga inglesa. Gosto de ver jogos onde há equilíbrio, onde se sente uma atmosfera de futebol diferente. Os meus desportos favoritos são os motorizados, mas gosto de ver um jogo de futebol quando é bem disputado. Mas não é só futebol. Às vezes dou por mim a ver jogos de voleibol fantásticos, ou de andebol. O que eu acho importante é o espetáculo. Ser uma coisa bonita. E a atmosfera, que é uma coisa que o campeonato português não tem. Tem as bancadas normalmente despidas, o som é horrível porque em vez daquele bruáá, aquele som de uma multidão que se ouve por exemplo na Liga inglesa, cá ouve-se até as vozes das pessoas. Ouvem-se guinchos, batuques esquisitos. Parece uma coisa de Terceiro Mundo. Os jogos que acompanho por questão de trabalho são os do Benfica, Sporting e FC Porto. Do Benfica só acompanho os jogos fora, porque não vejo por princípio canais de clubes. Até tenho uma esperança que os jogos em casa do FC Porto e do Sporting também venham a ser transmitidos pelos canais deles, para não ver esses também… É uma coisa impensável, como ver um debate ou um direto sobre as eleições no canal do PS ou no canal do PCP. E depois há uma coisa particular que é o que nos faz ser um país muito atrasado. Quando é fora, em qualquer estádio, exceto os do FC Porto e do Sporting, parece que o Benfica está sempre a jogar em casa. E mesmo o FC Porto e o Sporting, quando jogam fora, vê-se mais adeptos deles do que do clube da casa. É deprimente ver as casas do Benfica, do Sporting e do FC Porto espalhadas pelo país todo. Dou por mim a imaginar uma situação como a do Leicester, que foi campeão, aqui. Se o Leicester fosse uma equipa portuguesa, tinha os jogos às moscas todo o ano e os adeptos estariam na casa do Benfica de Leicester a jogar à sueca ou isso. E só encheriam aquilo quando o Benfica lá fosse jogar pelo Leicester, a puxar pelo Benfica. É isso que distingue Portugal de um país civilizado.  

E com o desporto motorizado é diferente, isso é uma paixão?

Quando comecei a gostar de alguma coisa de desporto, logo em miúdo com os meus seis anos, o que gostava de ver era as corridas de carros. Passavam algumas na televisão, de Fórmula 1. Tudo o que era carros e motas eu gostava. Não ligava peva ao futebol, não fazia ideia das equipas, dos jogadores… Por exemplo, pensava que o Pelé era português. Pensava que o Ajax tinha a ver com um detergente.

Foto: José Serrano/Diário do Alentejo
Foto: José Serrano/Diário do Alentejo

Nasceu em Aljustrel, como é que era a ligação ao desporto no interior do Alentejo?

Nasci em Aljustrel e vivi lá até aos 18 anos. Via os jogos do Mineiro Aljustrelense, que ainda hoje é o meu clube, o clube de que sou sócio e por que torço incondicionalmente. Já sou dos sócios com o número mais baixo, porque infelizmente as pessoas têm morrido… E tenho lugar cativo, apesar de raramente ir lá. Mas acompanho. Agora até acompanho os jogos pela televisão, há uma coisa que é o Mycujoo, tenho visto os jogos do Mineiro Aljustrelense. Ia sempre ao domingo ao futebol com o meu pai. O futebol para mim era esses jogos. Para mim não existia o futebol da primeira divisão. Eles jogavam no pelado. Era ao pé da mina e o terreno era meio vermelho. Era um pelado muito diferente dos que se veem por aí. E jogava com os meus colegas. Apesar de não jogar nada, na escola jogávamos. E no pátio da escola também era terra, era na terra que se jogava. Para mim o futebol era isso.

E o primeiro jogo que viu num estádio?

Só fui mais tarde a um estádio ver um jogo. Fomos ao Estádio do Bonfim, que era o sítio mais perto que tínhamos de Aljustrel. Foi a primeira vez que vi um relvado. Fiquei com muita curiosidade a olhar para aquilo. Um puto com nove ou dez anos… Eu e os miúdos da altura crescemos proibidos de pisar a relva. Nunca tinha pisado relva na minha vida. Não sabia qual era a reação. É como quem pisa pela primeira vez gelo. Quando os vi numa coisa que era relvada estranhei muito. Porque na televisão, as poucas vezes que via pela televisão, aquilo era tudo cinzento. Era a preto e branco, fazia lá a mínima ideia que era relva… Não me lembro com quem era o jogo. No V. Setúbal jogava o Jacinto João e o José Maria. Tinha uma equipa muito boa na altura. Fomos lá para ver o Vitória de Setúbal, que estava até nos primeiros lugares, se bem me recordo.

E há aí uma ligação ao Sporting, não há?

Eu na altura, sem perceber nada de futebol, acabo por me inclinar mais pelo Sporting por uma coisa muito estúpida. Não foi por perceber de futebol, que se um gajo percebe de futebol não vai gostar do Sporting... Eu começo a gostar do Sporting por causa do Joaquim Agostinho. E porquê? Porque o piloto que eu mais admirava nas motas era o Giacomo Agostini. O meu pai era adepto de ciclismo, íamos muitas vezes ver a Volta a Portugal, ver as etapas. Eu ia com o meu pai e ele gostava muito de ver o Joaquim Agostinho. Ora, Giacomo Agostini e Joaquim Agostinho, eu achei piada. E ele corria no Sporting. Fiquei a gostar mais do Sporting por causa disso. Mas para mim, se o Sporting jogar com o Mineiro Aljustrelense, não há qualquer confusão. Quero que o Mineiro ganhe por quantos mais possível. O que não deve ser difícil, porque o Alverca, que está na mesma divisão que o Mineiro Aljustrelense, ganhou ao Sporting. Julgo que o Mineiro é uma equipa que tinha todas as condições para ganhar ao Sporting.

Voltando à paixão pelos carros, como é que aparece?

Aparece por um vizinho que eu tinha, que na altura tinha 16 ou 17 anos e gostava muito de carros. Ele é que me levou a começar a gostar disso. Eu começo a gostar e a ligar à Fórmula 1 ali nos anos 1970/71. Com seis, sete anos lembro-me perfeitamente de acompanhar já. O Jackie Stewart, o Emerson Fittipaldi.

Também era dos poucos desportos que passavam na televisão, não era?

Era. Dava a seguir ao TV Rural. Aliás, nem era depois. Era uma coisa surreal. Dava o arranque do Grande Prémio, e davam os primeiros 20/25 minutos. Depois começava o TV Rural, que era meia hora, e depois voltava o Grande Prémio. Era como estar a ver um Benfica-Sporting, haver um penálti a favor do Benfica e interromper. E depois meia hora depois voltar a dizer «Houve um penálti, e tal, marcou o Benfica». Surreal.

O que não se via não se voltava a ver…

Não, nem pensar. Não havia gravações automáticas nem nada disso. Eu desenvolvi um ódio do caraças ao Sousa Veloso na altura. O homem devia ser uma pessoa impecável, não faço ideia. Mas, imagine-se. Estava ali o Niki Lauda, por exemplo, e o James Hunt, numa disputa grande. E interrompem aquilo. E eu ficava a olhar para as vaquinhas e para as cabrinhas e para as couves e para as batatas desesperado. Ficava ali colado, à espera. Eu a querer que acabasse e o Sousa Veloso a fazer perguntas: «Então, mas qual é a vaca que dá mais não sei quê?» «E estas couves?» Era um inferno. Mas vi os Grandes Prémios todos. Era uma coisa religiosa para mim. E só davam os Grandes Prémios da época europeia e não eram todos. Mas sim, era do pouco desporto que se via na televisão. Isso e o râguebi do País de Gales.

Cresceu no tempo do PREC, uma época que foi particularmente intensa no Alentejo.

Sim. E no tempo do PREC no Alentejo eu ser adepto da Fórmula 1 era uma coisa que fazia todo o sentido…. O mais surreal é que eu chegava a ver Grandes Prémios de Fórmula 1 no Centro de Trabalho do Partido Comunista. Depois do 25 de Abril, a nível de águas, de esgotos, de eletricidade, houve muitas obras que tiveram de ser feitas. As pessoas não sabem, mas no interior havia falta de tudo. Havia muitas obras, para dar às pessoas as condições devidas. Ao domingo era quando a EDP fazia obras na linha elétrica, e desligavam a luz logo de manhã. Só havia um sítio em Aljustrel com gerador, que era o Centro de Trabalho do PCP, porque estavam preparados para a clandestinidade. Eu ia para lá, metia-me na sala da televisão, e pedia aos velhotes que estavam no bar para ligar a televisão. E ficava lá muito quietinho a ver se não se lembravam de mim. Eles de vez em quando diziam-me: «Eh pá, mas porque aqui tu estás aí a ver isso? Isso é sempre a mesma coisa, andam sempre aí às voltas. Sai daí, pá.» E eu não contestava, para ver se não me desligavam a televisão. Ainda hoje, apesar de a Fórmula 1 não ter a graça que tinha antigamente, eu não preciso de despertador para ver um Grande Prémio da Austrália. Sei que meia hora antes vou acordar sozinho. Desses anos 70 consigo dizer primeiro, segundo e terceiro classificado de quase todos os Grandes Prémios. É estúpido, porque está a ocupar aqui espaço no cérebro, sem necessidade nenhuma.

E isso era só uma paixão de adepto, ou havia a ilusão de vir a ser piloto?

O meu projeto de vida na altura era ser piloto de Fórmula 1 e ser campeão do mundo. Obviamente, isto para uns pais que estavam a viver a revolução do 25 de abril no Alentejo é o mesmo que dizer «Quero ir à Lua», ou «Quero ir a Marte». Aquilo não encaixava ali. Mas era o que eu gostava. Depois quando vou estudar para Lisboa percebo que já não tenho idade para aquilo. Não tinha contacto com qualquer carro. Não havia um único circuito ou qualquer coisa do género perto. As distâncias na altura eram distâncias. Não havia autoestrada. O único contacto que tive foi na estrada, uma vez que parou ao pé de nós um reboque que tinha atrás um carro com um número. Fiquei embevecido, como se estivesse a olhar para o McLaren do Senna. Só porque tinha um número. Foi a primeira vez que vi um carro de corrida. Suponho eu, podia ser só um maluco que tivesse posto um número no carro… Foi como os Pastorinhos, quando viram aparecer a Virgem lá em cima da azinheira. Eu vi um carro em cima de um reboque, para mim foi um milagre.

Apesar de andar distraído com os carros, esses tempos do 25 de Abril e do PREC tiveram alguma influência para aquilo que viria a fazer, esse olhar crítico sobre o que se passa?

Sim, claro. Eu lia jornais, fui acompanhando a situação. Até fui desenvolvendo alguma culpa interior por gostar de uma coisa completamente burguesa como os carros. Só que nunca consegui deixar de gostar daquilo. Fiz várias tentativas. Eu fazia um exercício. Ao olhar para uma corrida pensava: «Metade destes tipos que estão ali a correr e das pessoas que estão a assistir devem ser desinteressantes. É malta burguesa sem interesse nenhum.» A tentar convencer-me. Mas não conseguia.

Acabou por ir para Lisboa, para tirar o curso de Geografia. Com futebol pelo meio, não foi?

Sim. Joguei na seleção da Faculdade de Letras. Por engano. Estávamos na segunda divisão universitária na altura. A malta de Letras era quase tudo raparigas. Havia poucos gajos e a maioria não tinha jeito para o futebol. Éramos poucos e maus. E entre os poucos e maus, eu era péssimo e não tinha qualquer interesse por jogar à bola. Mas tinha colegas, sobretudo um que jogava muito bem e jogava na seleção, que me convenceram. Eles não tinham gente suficiente para fazerem treinos de conjunto. E eu fui. Puseram-me a jogar lá à frente. Um dia há uma bola que vem pingada. O guarda-redes e os centrais ficaram enleados uns com os outros. A bola sobra, vai aos saltinhos até à linha de fundo. E quem é que estava lá perto? Eu. Estava com a baliza do meu lado esquerdo, tinha a bola na grande área, encostada à linha. E eu, sem conseguir olhar, porque eu sou daqueles jogadores, com aspas, que não têm visão periférica. Aliás, nem sequer tenho visão de frente. Deixo de ver, porque a única coisa que tenho é necessidade de desembaraçar-me da bola. Então, o que é que me ocorreu? Mandar a bola para o pé da baliza para ver se alguém lhe dava um pontapé lá para dentro. Fiz isso, só que chutei tão mal a bola que ela entrou. Aquilo criou um certo impacto no mister, que chegou ao pé de mim e disse que eu tinha «killer instinct». Eu a rir-me a dizer que não, que tinha sido sorte, e ele entendeu aquilo como modéstia. Fiquei logo aí inscrito como atleta da faculdade. Nunca saí do banco. E ia para o banco porque nunca estávamos os 16 para jogar à bola. Havia sempre uns gajos que iam namorar, ou que pura e simplesmente se esqueciam do jogo. Mas o meu nível era tal que mesmo estando só 13 gajos e podendo fazer duas substituições eu nunca entrei. Só entrei uma vez em campo, para ser fiscal de linha.

Como é que foi isso?

Uma vez chegou lá o árbitro sem fiscais e cada equipa tinha de nomear um elemento para ser fiscal de linha. O mister olhou para o banco e viu: «Qual é o tipo que não vai entrar? É este. Vais para ali.» E fui. Era um jogo com o ISEL. A Faculdade de Letras tinha três ou quatro gajos com um certo toque de bola. E lá conseguiram marcar dois ou três golos. Aquilo vai para o intervalo e a malta toda ouvia a conversa do mister a fumar um cigarro. Na segunda parte, não só pelo cigarro que se fumou no intervalo como pelos que se fumavam durante a semana, era para esquecer, não havia pulmões. Aquela rapaziada do ISEL, jovens, sem vícios, passava por eles à força toda. Entrou uma, entraram duas, entraram três. E quando entra uma quarta, o que é que o guarda-redes e o central da nossa equipa se lembram? Apontam para mim e dizem: «Olha que o fiscal de linha está com a bandeirola levantada». Então vem o capitão de equipa a correr para mim muito depressa: «Diz que é fora de jogo, diz que é fora de jogo.» Vem tudo para cima de mim, os gajos do ISEL, o árbitro. O árbitro mandou afastar toda a gente e disse-me: «Então diga lá. O que é que se passou aqui?» E eu: «Ó senhor árbitro, não se passou nada.» E o árbitro: «Pois, bem me parecia.» Acabou mal, porque os gajos da seleção, assim que me apanham no balneário, molharam-me todo. Despejaram-me um balde de água fria para cima.

Acabou aí a carreira como jogador…

E como fiscal de linha também.

E como começa a desenhar e a desenhar sobre desporto?

Já desenhava, desde miúdo. Quando estou na faculdade é que começo a colaborar com jornais. Começo em suplementos de juventude. A minha vida a esse nível muda quando venho dar aulas para o Alentejo. Vim para Serpa com a minha mulher, dar aulas de geografia. Isto é muito giro nos primeiros meses, mas depois há uma altura em que sentes que tens pouco para fazer. Foi nessa altura que quis fazer mais coisas ao nível dos cartoons. Eu tinha feito parte, ainda nos anos 80, de uma equipa que fundou o «Ases», um jornal do professor Moniz Pereira, ele era o diretor. Tinha um subtítulo que era «Desporto não é só futebol». Como se imagina, aquilo não teve futuro nenhum. Eu era o cartoonista, fazia cartoons sobre desportos variados sem palavras, gags. Ficaram na gaveta porque aquilo não saiu. Saíram só uns números zero. Então, pensei: «Vou levar estes bonecos a um jornal desportivo, pode ser que queiram.» Fui à Bola. E foi a última vez que fui a um jornal apresentar trabalho. Quiseram, fiquei. Depois recebi um convite para ir para a Grande Reportagem, depois fui convidado para ir para o Público, a seguir para o Jornal de Negócios, depois também RTP e Antena 1.

E passaram quase 30 anos a fazer humor gráfico

Os cartoons não são necessariamente sempre humor. São uma visão crítica gráfica, que pode ter humor. Normalmente tem, mas pode não ter. Pode ser só uma interrogação, digamos, só questionar. De há uns anos para cá há uma grande obsessão sobre o humor. O cartoon radiofónico que faço para a RTP e a Antena 1, aquilo é um cartoon, não é humor radiofónico nem televisivo, é uma coisa diferente. Para fazer humor precisas de mais tempo, não pode ser uma coisa de 30 ou 40 segundos. É um apontamento crítico.

Já disse que gosta mais da palavra do que do desenho, e tem vindo a fazer coisas diferentes a nível de escrita

No princípio era o desenho. Na Bola e no Público ainda fiz muito isso, aqueles cartoons de página inteira, a cores. Mas aos poucos fui-me desviando e fui-me fixando nas tiras. Quer no Barba e Cabelo, quer no Bartoon, quer na Mosca. E o que é esse trabalho? É basicamente escrever. A minha criação é mais a nível de escrita. Os bonecos são suporte, mas o que faz diferença é o texto. Depois acabo por desenvolver um gosto pela palavra e por escrever. E há certas ideias que tens e não são aplicáveis nos cartoons. Eu faço cartoons sobre atualidade. Mas eu penso em coisas para lá da atualidade, pensamentos absurdos que me vêm à cabeça. Não são enquadráveis em trabalho sobre a atualidade, ainda que a atualidade seja cada vez mais absurda. Daí surgiu a ideia de começar a escrever e fazer outras coisas. O absurdo é uma coisa que me atrai muito. O absurdo de estarmos vivos, tudo isto não tem lógica.

O potencial do futebol é inesgotável?

Há muito potencial, por causa das personagens que vão aparecendo. Antigamente era mais fácil fazer coisas à volta de jogadores, porque os jogadores podiam falar. Hoje é muito difícil os jogadores darem uma entrevista fora do enquadramento dos clubes. Mas aparece uma série de gente que se tornam personagens. O Pinto da Costa, o Vieira, o Sousa Cintra, que era uma grande personagem. O Bruno de Carvalho. Este lado menos bom do futebol, menos interessante… Para mim o interesse é o jogo ser bem jogado. Mas em termos de cartoons, se o futebol for só isto, eu só consigo fazer daqueles cartoons sem palavras e aqueles gags inócuos. Quando as coisas funcionam e são bonitas, e são boas, o que é que vais criticar? Portugal é um país que não funciona. Nada disto funciona, nem a saúde, nem a educação, nada. Nem o futebol. É um país ótimo para criticar. Se o futebol fosse muito bonito e fantástico, era complicado. Por isso é que quando o Mourinho chegou a Inglaterra abanou aquilo completamente. Aquelas declarações, aquelas coisas todas, mexeu com eles. Começou a dar a possibilidade de fazer outras coisas. Os espanhóis são mais parecidos connosco. Esta história de Portugal ter estes clubes nacionais, como em Espanha também há o Real Madrid, acho que são heranças do fascismo. Em países que têm uma longa tradição democrática não há esta estupidez de ter três clubes nacionais. Não há nenhuma razão para alguém aqui em Serpa estar a torcer por um clube da Segunda Circular de Lisboa ou da Via de Cintura Interna do Porto. Não faz sentido. Apesar de isto se estar tudo a virar contra eles também. Conheço miúdos que já nem sequer têm clube nacional aqui em Portugal. Porque a globalização também se vira contra nós. Porque é que eu hei-de ser adepto do Benfica ou do Porto se posso ser por exemplo do Manchester City ou do Liverpool? Qual é a diferença entre o FC Porto e o Wolverhampton? O último jogo da seleção portuguesa acabou com quatro jogadores do Wolverhampton em campo. O Moutinho, o Diogo Jota, o Patrício e o Rúben Neves.

Quais são as personagens com mais piada do futebol português?

O Jorge Jesus é fantástico. No Brasil, que é um país que tem de tudo e onde já aconteceu de tudo, chegar lá um tipo como o Jesus e mexer com aquilo, dá para ver a capacidade e o potencial da personagem.

Há alguma coisa por fazer em termos criativos relacionado com futebol? O que é que ainda há a esperar do futebol português?

Não me importava de pegar naqueles cartoons intemporais que fiz e fazer animações. Isso era na perspetiva mais positiva do futebol. Agora, de resto, o futebol como está em Portugal, a forma como é feito, isto é uma coisa absolutamente sem sentido. Enquanto não houver uma centralização dos direitos televisivos e não trabalharem isto de outra maneira… É uma coisa muito difícil. Há quantos anos é que o Braga está a trabalhar para ser um clube grande e não consegue? Porque chega-se lá, o Benfica marca um golo e ainda há ali malta dividida. É impossível conseguir mudar alguma coisa enquanto for assim. Eu outro dia vi um puto que era do Belenenses e dei-lhe um abraço. Quando vejo alguém que não é do Sporting, do Porto ou do Benfica fico encantado. Não temos de ser dos clubes que ganham sempre. É tão bonito seres de um clube que ganha quando calha. Se o Sporting começasse a ganhar eu deixava de gostar do Sporting. Perdia as características todas, perdia aquela graça que tem. Se o Sporting ganhasse agora três ou quatro campeonatos seguidos para mim era chocante.