Luís Jardim tem um currículo que não acaba. Músico, produtor e compositor, trabalhou com os maiores do mundo: Paul McCartney, Elton John, Tina Turner, David Bowie, Rod Stewart, Tom Jones, George Michael, Bjork, Mariah Carey, Rolling Stones, Bee Gees, enfim.

Fez parte dos Rouge, uma banda britânica que em cinco anos vendeu cerca de quatro milhões de discos, e produziu a banda sonora de grandes êxitos do cinema como Gladiador, Um Peixe Chamado Wanda, Thelma & Louise, Encontro de Irmãos ou Sabor da Paixão.

O Maisfutebol encontra-o em Londres, onde continua a viver a maior parte do tempo. O primeiro contacto apanha-o em estúdio, a gravar, pede para ligar no dia a seguir e quando o fazemos está num programa de televisão. Finalmente à terceira foi de vez e a conversa flui.

Luís Jardim é de uma simpatia desarmante e lamenta que por vezes a memória já lhe falhe. Aos 71 anos continua a dividir-se entre duas paixões, a música, claro, e o futebol, que viveu intensamente quando representou o Chelsea. Tem há 30 anos camarote em Stamford Bridge e é raro falhar um jogo.

Qual é a sua primeira memória do futebol?

O meu pai foi presidente da Assembleia Geral do Marítimo, o meu avô foi presidente do Nacional e eu fui guarda-redes do Marítimo até aos juniores. Portanto, o futebol esteve sempre na minha vida.

Então jogou futebol praticamente até à idade adulta?

Mais ou menos, sim. Eu fui para Londres quando tinha 16 anos. Nessa altura ainda joguei no Chelsea, mas como estava muito envolvido na música e o tempo não esticava, resolvi afastar-me. Não dava para fazer tudo.

No Chelsea também jogou nos juniores?

Não, nessa altura não se chamava juniores. Aquilo eram equipas preparatórias, que tinham outro nome qualquer aqui em Inglaterra. Eles aqui tinham a primeira equipa, a segunda equipa, que era geralmente conhecida por reservas, a terceira equipa e por aí fora. Eu jogava nessa altura na terceira equipa do Chelsea, o que era normal, tinha 16 ou 17 anos.

E tinha algum jeito para ser guarda-redes?

Eu acho que era bom. Eles até queriam que eu ficasse e fizesse o caminho até ser profissional, mas decidi que a música era mais importante. Estava bem mais lançado na música. Já tocava há muitos anos e nessa altura comecei a infiltrar-me em bandas conhecidas. A partir daí a febre da música tomou totalmente conta de mim e lá se foi a febre do futebol.

Pois, normal.

Mas sem nunca deixar de amar o futebol. Depois tornei-me sócio do Chelsea e ia sempre a todos os jogos. Tinha um camarote em Stamford Bridge e continuei sempre a gostar muito de futebol.

Mais tarde acompanhou bem de perto a fase de Mourinho no Chelsea...?

Sim, sim, os anos de Mourinho, Ricardo Carvalho, Paulo Ferreira. Aquilo foram anos gloriosos, não é? Eu era muito fã do FC Porto e o que me atraiu no Chelsea, embora isto seja muito estúpido, foi o facto de vestir também de azul. Foi a primeira coisa que me chamou a atenção. Então aqueles anos de Mourinho, tendo vibrado com o sucesso dele no FC Porto primeiro, foram mágicos. Foi uma felicidade a dobrar. Veja bem, eu vim para Londres em 66, o Mourinho chegou em 2004, portanto 40 anos antes de ele vir já eu gostava do Chelsea.

Nessa altura, quando chegou a Londres, o Chelsea não era nada do que é hoje.

Não, não. Naquela altura não. Naquela altura era o Liverpoool, o Manchester United, o Tottenham, o Arsenal. Até mesmo o West Ham, no leste de Londres, também era muito popular. Mas eu nessa altura via tudo. Como vivia não muito longe de Watford, ia muitas vezes ver jogos do Watford. Adoro futebol e ver futebol. Mas claro, gosto mais de ver o Chelsea.

E como explica essa paixão pelo futebol?

Eu nasci numa família que respirava futebol. O meu pai, além de ser presidente da Assembleia Geral do Marítimo, era médico e ofereceu-se como voluntário para ser o médico da equipa, porque assim garantia que ia a todos os jogos. E eu ia atrás dele, não é? Foi assim que começou a doença pelo futebol. Depois mais tarde, quando comecei a jogar mais a sério, o futebol tornou-se uma coisa diferente, aí tornou-se mais real. Mas eu já gostava também muito de música e sentia-me sempre um bocadinho dividido. Até que em Londres a música tornou-se uma coisa realmente grande e o futebol ficou para trás. Mas continuou a ser sempre uma das minhas grandes paixões.

Hoje em dia ainda vai muitas vezes ao estádio?

Vou sempre. Desde que esteja livre, vou sempre. Eu vivo entre Portugal e Londres, e muitas vezes estou em Portugal e venho propositadamente a Londres só para ver um jogo. Sobretudo quando são grandes jogos, clássicos ou dérbis.

Ainda tem o lugar anual em Stamford Bridge?

Sim, sim, ainda tenho. Nós somos quatro ou cinco amigos e reservamos um camarote para a época toda.

Uma das coisas boas do futebol é esse lado social, não é?

Verdade. É fantástico. Nós somos todos músicos e temos um camarote há décadas. Sei lá, há 30 anos ou mais. Ainda apanhei a altura dos hooligans. Felizmente agora já não é nada assim, vemos mais violência na Alemanha, na Polónia, na Turquia, enfim. Em Inglaterra acalmou. De vez em quando ainda vemos tristes espetáculos, sobretudo nos jogos fora de Inglaterra, mas aqui acalmou. Esses tempos do hooliganismo foram terríveis. Eu vivia aqui na zona de Chelsea e quando havia jogos grandes até tínhamos de tapar as janelas com tábuas. Tínhamos de esconder os carros... Aquilo a seguir aos jogos era pancada que nunca mais acabava.

E como era ir ao futebol nessa altura?

Era um bocado perigoso. Eu tenho quatro filhas, quatro meninas, levei-as uma ou duas vezes quando eram pequeninas e jurei que nunca mais. Apanhei uns valentes sustos. Foi uma altura terrível. Agora as minhas filhas já são grandes, já são adultas, e algumas também são adeptas do Chelsea. Felizmente o governo aqui atacou o fenómeno com toda a força.

Voltando um bocadinho atrás, como é que um miúdo nascido na Madeira nos anos 50 se torna portista?

Não foi logo em miúdo. Foi mais tarde. Eu trabalhava pouco em Portugal Continental, só quando produzia o disco de um artista qualquer ou ia dar um concerto. Mas tinha um grande amigo no Porto que era o Alberto Manso, que era adepto do FC Porto. Ele começou a levar-me aos jogos do FC Porto quando eu estava no continente e foi uma coisa que foi despertando em mim. Porque em criança era do Marítimo. Mas depois vinha a Portugal fazer isto ou aquilo, e era desviado para ver os jogos do FC Porto. Comecei a gostar dos jogadores e a gostar de ver o clube.

Curioso que se apaixonou por duas equipas que não viviam uma fase de grandes vitórias.

É verdade, não viviam. Mas sabe que o FC Porto é muito popular na Madeira. Há uma grande ligação do povo da Madeira ao FC Porto, porque a maneira de ser das pessoas é semelhante. O madeirense e o portuense são geralmente muito parecidos em carácter, em produtividade, na presença de um sotaque muito marcado. Até naquela malcriação de dizer muitos palavrões. Por isso o madeirense gosta do Porto e já havia uma grande influência do FC Porto na ilha, o que acabou por tornar mais óbvio que eu me tornasse portista após ver os jogos da equipa.

Disse que gostar de um clube é muito gostar dos jogadores. Que jogadores o marcaram?

O Vítor Baía. De quem mais tarde me tornei amigo, curiosamente. Mas como fui guarda-redes, sempre tive uma preferência por guarda-redes. E depois apareceu o Vítor Baía. Acho que os sonhos que eu tinha quando era guarda-redes se concretizaram a ver o Vítor Baía. Aliás, ele sempre foi muito respeitado aqui em Inglaterra.

É curioso porque os miúdos quando começam a jogar gostam de marcar golos. Como é que o Luís Jardim se tornou guarda-redes?

Porque eu tenho 1,82 metros. Ou seja, sou alto. Sobretudo na Madeira, onde o madeirense em geral não é muito alto. Então o meu primeiro treinador, que já faleceu, disse-me: ‘eh pá, tu és muito alto, tu vais para a baliza’. Fui mais colocado lá à força, portanto. Mas depois gostei. Pensei: ‘eh lá, isto é bom’. E eu era bom, porque era muito alto e isso ajudava claramente ao meu desempenho.

O Luís sendo músico e tendo trabalhado com muitos nomes grandes do rock, também é fã do hard rock do Jurgen Klopp ou do Thomas Tuchel?

Sim, sim, claramente. Porque essa é uma maneira de aproximar os adeptos do futebol. É um jogo mais para a frente, mais emocionante, com mais golos. Acho que nós em Portugal até temos um bocadinho falta disso. Não temos essa atitude, somos muito brincalhões, gostamos de trabalhar a bola, gostamos muito de controlar o jogo. O FC Porto é um bom exemplo, não é comum dar grandes goleadas. Temos muito aquela ideia do passa para trás, passa para o lado, mete gelo no jogo. É por isso que em muitos jogos temos menos golos do que poderíamos ter.

«Um café com...» senta o Maisfutebol à mesa com figuras eminentes da nossa sociedade, nomes sem ligação aparente ao desporto, a não ser a paixão. A música, a literatura, o cinema ou a política enredados nas quatro linhas de conversas livres e descontraídas.

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