Fez-se sócio do Benfica pela mão do pai, mas foi a mãe que lhe proporcionou a primeira memória futebolística da infância: uma televisão ao fundo da cama para, doente e acamado, assistir ao Mundial de 1978.

«Ela tinha tanto medo que eu morresse que arranjou dinheiro para a comprar.»

Os primeiros ídolos surgiram no Mundial seguinte. Chorou com aquele Brasil-Itália, em 1982, e com um Benfica-Liverpool, em 1984. A bola não voltaria a causar-lhe lágrimas depois dos traumas provocados por Paolo Rossi e Ian Rush.

Luís Osório, 50 anos, lisboeta, jornalista e pai de quatro filhos. Autor de oito livros, como o mais recente «Ficheiros Secretos», criador de programas televisivos de culto, como «Zapping» e «Portugalmente», dirigiu jornais, uma estação de rádio e, antes de tudo isso, foi bicampeão nacional de basquetebol nos escalões jovens.

Porém, é o futebol que o faz vibrar, revela à conversa com o Maisfutebol.

Sofre pelo Benfica, mas admira a personalidade de Sérgio Conceição e a identidade do FC Porto, «um clube de combate, incómodo e muito irritante para os adversários».

Continua a gostar muito de ver a bola, mas agora a televisão está cada vez mais no fundo da sala, para evitar que acompanhe um Estoril-Paços de Ferreira ou um Académico de Viseu-Trofense. Por um bom motivo: «Quero preservar o casamento que tenho até ao final da vida.»

MAISFUTEBOL - Qual a primeira memória que tem de um jogo de futebol?

LUÍS OSÓRIO – O Mundial de 1978, na Argentina. Ia fazer 7 anos e estava doente. Estive praticamente um ano de cama com febre reumática e, nesse verão, foi um dia muito feliz aquele em que a minha mãe resolveu pôr uma televisão no meu quarto. Ela tinha tanto medo que eu morresse que arranjou dinheiro suficiente para comprar uma televisão e colocar-ma em frente à cama. Foi dos momentos mais bonitos da minha vida. É a primeira memória forte de grande entusiasmo em ver futebol.

Foi aí que lhe surgiram os primeiros ídolos?

Lembro-me da final, dos papéis a voarem no estádio… Eu gostava de futebol, não sei o que me levou a gostar, mas sei que gostava muito. Ídolos mesmo só a partir do Mundial de 1982, com aquela seleção do Brasil que me fez chorar.

Como assim?

Eu estudava piano, com uma falta de talento enorme. Era muito infeliz naquela escola, porque não tinha jeito nenhum para a música. Uma tarde, consegui levar um rádio para uma aula de piano para acompanhar o Brasil-Itália. Quando o Paolo Rossi marca aqueles três golos, comecei a chorar… Só chorei duas vezes por causa do futebol. Essa foi a primeira.

Qual foi a segunda?

Foi num Benfica-Liverpool, que acabou 4-1. Chovia a cântaros, lembro-me que o Ian Rush marcou. Foi uma derrota copiosa, em 1984. Chorei tanto dessa vez que nunca mais o fiz a ver um jogo de futebol.

O que o levou a ser benfiquista?

O meu pai também era. Ele gostava de futebol, mas moderadamente. Tenho uma memória forte do dia em que o meu pai me levou a ser sócio do Benfica.

Como foi esse dia?

Era criança, ele levou-me a almoçar, depois fomos à Rua Jardim do Regedor e ele fez-me de sócio. Depois não pagou as quotas e deixei de o ser. [risos] Já o irmão da minha mãe era fanático e levou-me a ver alguns jogos. O primeiro que vi no estádio foi um 8-0 para o Benfica frente ao Belenenses. Essa é a altura em que as gerações dos nossos pais eram ainda herdeiros daquelas equipas campeãs europeias, que dominavam o futebol português. Nessa altura, era-se do Benfica quase por defeito.

Em janeiro deste ano escreveu numa publicação do Facebook que «ser do FC Porto é um ato de resistência». Falta essa perceção em Lisboa?

Lembro-me pouco do José Maria Pedroto, mas ao longo destes 40 anos Pinto da Costa conseguiu fazer algo de ideológico: encontrar uma motivação que transformasse o FC Porto num projeto vencedor. Ter a fortíssima identidade de ser mais do que um clube. Ser a força de uma região muitas vezes ostracizada pelo poder central. Sim, ser do FC Porto é um ato de resistência. Aliás, isso transformou-se na essência do clube, somado a uma identidade que já existia, pelo facto de o Porto ser uma cidade muito diferente de Lisboa.

Em que aspetos?

Lisboa, sendo aparentemente muito mais aberta para o que vem de fora, é uma cidade em que a maioria das pessoas são muito fechadas ao contacto, à proximidade. Temos esta abertura mais cosmopolita, mas com pessoas muito mais distantes umas das outras. Daí que a vizinhança não tenha o peso que tem no Porto. Ser do Porto, independentemente do clube, é acreditar numa ideia de proximidade. Posso dar um exemplo pessoal.

Conte-nos.

Quando o ator que fazia de Tony Soprano morreu, eu fiquei mais comovido do que se tivesse morrido um vizinho do meu prédio. Porque nem os conheço. No Porto isso é quase impossível, porque o culto de vizinhança é um culto identitário na cidade.

Isso reflete-se no plano desportivo?

O FC Porto promove essa ideia de grande proximidade. Vê-se que a coisa é diferente com determinados jogadores, que até passaram pelo Benfica ou pelo Sporting. É um clube com uma raiz popular e de uma cidade cuja identidade é esta. Um clube de grande combate, bandeira de uma região. Este caldo dá uma força e uma capacidade de revolta que leva a uma necessidade de conquista permanente e faz com que seja extremamente incómodo e muito irritante para os adversários. Por outro lado, é um clube que vai na perfeição ao encontro daquilo que Pinto da Costa preconizou há 40 anos. Esse é o grande legado do presidente do FC Porto.

No Benfica e no Sporting também é fácil identificar uma causa identitária evidente?

Os dois únicos clubes grandes de raiz popular são o Benfica e o FC Porto, de maneiras diferentes. O Benfica é um clube com uma massa de adeptos gigante e que tem a capacidade de vender uma ideia de clube global. Faltou alcançar isso a Pinto da Costa, porque algumas características do FC Porto são contraditórias com esta ideia de globalidade. Um clube de combate está muitas vezes de mal com o mundo para estar sempre em unidade consigo próprio. O Benfica é do povo. Quando ganha, percebe-se esse clamor e até chega a ser surpreendente. Ao ver o estádio do Benfica ou o do Sporting cheio percebe-se que as pessoas que estão ali são diferentes.

E qual é a identidade do Sporting?

É mais próxima de uma burguesia e até de uma aristocracia de Lisboa. Tem essa raiz social. Claro que o Sporting também tem muito povo, muita gente humilde, mas a sua raiz é aristocrática. Coisa diferente é o facto de larga maioria dos agentes do poder político e económico do país serem do Benfica. O clube tem essa capacidade. Isso é uma diferença que quase transforma o Benfica numa espécie de União Nacional.

Num patamar diferente, é comparável ao Real Madrid em Espanha.

É o paralelismo mais perfeito que se pode fazer: o Real Madrid é o Benfica e o Barcelona é claramente o FC Porto. A grande diferença é que Benfica e FC Porto andam à «porrada» cá, mas se se encontrarem em Espanha dão um abraço e vão beber uma cerveja. Se disserem mal do FC Porto ou do Sporting em Espanha eu levanto-me e parto a mesa. [risos]

Sérgio Conceição só faz sentido no FC Porto?

Era muito difícil ter um Sérgio Conceição ou um Simeone no Benfica, porque ambos têm essa identidade de combate. Ao fim de algum tempo, os dirigentes começam a achar aquilo estranho. Nós já achamos estranho um tipo como o Jorge Jesus. O Conceição é perfeito para o FC Porto. Pinto da Costa errou quando apostou em treinadores que não tinham nada que ver com a identidade do clube. Se este Roger Schmidt fosse para o FC Porto, a possibilidade de não ganhar seria enormíssima. Tem mais possibilidades de ganhar no Benfica.

É por isso que escreveu naquela publicação: «Chocamo-nos em Lisboa com o Sérgio Conceição»?

É um líder. Olha-se para ele e quase não se consegue tirar os olhos. Tem esse magnetismo. Não o conheço, mas tenho admiração pela personalidade dele e, como benfiquista, gostava imenso que ele fosse feliz noutro lado. [risos]

O Sérgio Conceição tem também uma personalidade moldada pelas dificuldades da infância e adolescência, não concorda?

Não era um predestinado, viveu do trabalho e do sacrifício em permanência. O mesmo podia dizer-se, com condições e num contexto diferente, do Cristiano Ronaldo. É moldado pela dificuldade, até por aquele acaso extraordinário de a mãe se ter dirigido a uma mulher que abortava e a meio do caminho um qualquer sopro divino a ter impedido de o fazer. De repente, nasce o Ronaldo no meio de um bairro difícil do Funchal. O Sérgio é alguém que construiu um caminho coerente com as suas dificuldades na infância. Pode atingir o Olimpo, mas aquilo que o faz ser diferente e um vencedor é o que o pode impedir de lá chegar. Os clubes maiores, gigantescas empresas que vivem da imagem, dificilmente investem em alguém com as características dele. Como benfiquista, espero que invistam.

O futebol ainda hoje funciona para muitos miúdos em Portugal como uma espécie de elevador social?

É verdade o que se diz: muitas destas grandes figuras não existiam sem uma dose muito grande de obsessão com o trabalho. O Ronaldo será o melhor exemplo disso. Mas é como aquela parábola do comboio: precisamos de estar à hora certa na estação para o apanhar. A maioria das pessoas pode trabalhar e sacrificar-se ao máximo, mas o comboio não parou para elas.

Para outros jovens, a afirmação pelo desporto continua a ser a única forma de subir na vida?

Há esse aspeto de elevador social, sem dúvida. Há uns anos, lembro-me de ver jogadores a falarem para os jornalistas e a não dizerem três frases seguidas. Hoje o alto profissionalismo dos clubes somado a uma evolução que houve na educação em Portugal mostra que já não é a mesma coisa. Há uns bons anos, praticamente não havia gente de classe média/alta a jogar futebol. Era um reduto dos que se fizeram a pulso. Hoje, também isso é diferente. Há muitos miúdos privilegiados que são grandes jogadores de futebol. Vê o Bernardo Silva, por exemplo, que joga com o João Cancelo, que vem de uma realidade totalmente diferente. Em qualquer caso, é fundamental a capacidade de sacrifício. Muitas vezes, as pessoas com mais dinheiro sacrificam-se menos. Muitas vezes quem mais se sacrifica é quem tem contas a ajustar com a própria vida. Mas há cada vez mais exceções. É um fenómeno sociológico muito interessante.

Em criança sonhava ser jogador de futebol?

Fui bicampeão nacional de basquetebol: juvenis e juniores pelo Atlético Clube de Portugal, um clube bairrista, mas que tinha essa identidade muito arreigada, de miúdos capazes de morrer em campo. Só não fui tricampeão porque perdi uma final com o FC Porto, com dois cestos do meio-campo do Rui Santos, um base que acabou por fazer história.

Tinha expectativa de jogar nos seniores?

Tive convites para jogar nos seniores de quatro ou cinco clubes, mas eu estava muito obcecado com a ideia de ser jornalista. Vivia com dificuldades e era importante começar a trabalhar. Só joguei até aos 19 anos. Era segundo base, tinha a particularidade de ser canhoto, o que era uma grande vantagem, e de ser um bom triplista. Todos os meus filhos jogaram ou jogam basquetebol, como é o caso do mais pequenino, que tem quatro anos. É uma modalidade de família. Mesmo assim, gosto muito mais de ver futebol, sobretudo em televisão.

Porquê?

Acho que o basquetebol é muito melhor no pavilhão. É uma experiência completamente diferente. Para mim, ver basquetebol na televisão é quase como ver teatro. É ridículo, é «fake». O teatro é para se ver numa sala.

Acompanha futebol com o mesmo entusiasmo da infância?

Nunca tive propriamente fervor clubístico, mas sofro com o Benfica. Sou muito enciclopédico, conheço até os jogadores dos juniores. Nunca tendo escrito nada sobre futebol tenho uma curiosidade até sociológica. Agora, vejo futebol moderadamente; com tantos filhos em casa é muito difícil. Quero preservar este casamento até ao final da vida e isso implica que eu não possa ver os jogos de futebol que gostaria. [risos] Era capaz de ficar tranquilamente na sala a ver um Estoril-Paços de Ferreira ou até um Académico de Viseu-Trofense, da II Liga, mas tenho de me refrear.

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