José Ramos-Horta é um nome que dispensa apresentações. Prémio Nobel da Paz em 1996, numa distinção partilhada com o bispo Ximenes Belo, foi Primeiro-Ministro e Presidente da República de Timor Leste após a independência.

Antes disso, porém, teve uma vida dedicada à luta pela independência de Timor, ele que foi nomeado Ministro das Relações Exteriores em 1975, no primeiro governo de Timor, quando tinha apenas 25 anos.

A invasão da Indonésia apanhou-o no estrangeiro, a partir de onde se tornou o porta-voz da resistência timorense durante as duas décadas e meia de ocupação do território, tornando-se um dos rostos da luta pela independência.

Nesta viagem pela vida de Ramos-Horta, ficamos a saber que chegou a jogar futebol no Sporting, embora as razões fossem mais sociais do que desportivas.

O Prémio Nobel é, de resto, um fervoroso adepto da seleção portuguesa, que acompanha fielmente e com grande sofrimento interior. Pelo caminho reflete sobre a importância do desporto na autoestima de um povo: e em particular na recuperação da autoestima dos timorenses.

Qual é a primeira memória que tem do futebol?

A primeira memória que tenho é de, quando era adolescente, jogar futebol com os meus amigos em Dili. Jogávamos num terreno da casa de um vizinho meu, que devia ter o tamanho de um campo e meio ou dois campos de ténis, era um espaço pequeno e havia sempre muitos golos. Eram jogos que não tinham tempo para acabar. Dizíamos que ganhava quem fizesse 60 golos ou ganhava quem fizesse 70 golos e jogávamos até uma equipa marcar 70 golos. Começávamos a jogar às cinco da tarde, quando vínhamos da escola, e ficávamos até às sete ou oito da noite.

Mas também jogou no Sporting de Timor Leste. Foi por iniciativa sua ou por influência?

Foi por iniciativa minha, eu quis ir jogar para o Sporting de Timor Leste. Sempre fui sportinguista, mas a verdade é que não fui jogar para o Sporting por razões desportivas. Fui jogar para o Sporting porque na altura, em Timor, o único cinema que existia era do Sporting. Como os atletas do clube podiam ir ver os filmes de graça, inscrevi-me no Sporting. Mas apenas para ir ao cinema.

Que filmes é que via nessa altura?

Os filmes que chegavam nessa altura a Timor eram filmes muito antigos, já tinham passado nos cinemas dos Estados Unidos há vinte anos. Eram aqueles westerns, de cowboys. Ficavam em cartaz às vezes durante seis meses e durante esses seis meses só havia aquele filme. Eram exibidos três vezes por semana. Então eu via o mesmo filme várias vezes. Antes havia sempre aqueles documentários do Estado Novo e do Salazar. Mas às vezes esses documentários eram substituídos por outros, vindos do Brasil, sempre assinados pelo mesmo realizador, e desses documentários brasileiros eu gostava mais. Falavam do Amazonas e das grandes obras da Ditadura Militar.

Era um cinéfilo mais do que um jogador de futebol.

Mas havia outra coisa. Nessa altura, os melhores bailes de Dili eram os do Sporting e do Benfica. Eram os bailes da alta sociedade. Então eu, como jogador do clube, tinha entrada gratuita nesses bailes, que eram um acontecimento social na cidade.

E fazia sucesso nos bailes?

Não [risos]. Não fazia sucesso porque as raparigas não queriam dançar com timorenses, só queriam dançar com os militares portugueses. Mas também não queriam dançar com todos os militares. Se fosse um cabo, por exemplo, não tinha sucesso. Só queriam de furriel para cima. Um furriel já fazia sucesso, um sargento fazia mais sucesso e um cadete fazia ainda mais sorte. Os alferes e os tenentes já eram casados. Depois, duas ou três vezes por ano, vinha um navio chamado «Timor», que trazia mantimentos para os militares e para o comércio local, e levava os militares que acabavam a missão. Então as raparigas iam ao porto despedir-se dos namorados, muito tristes, a chorar. E nós íamos para gozar com elas. Era a nossa vingança por não dançarem connosco [risos].

Portanto fez-se jogador do Sporting por causa do cinema e dos bailes.

Sim, mas também havia os bailes dos bairros. Todos os bairros ao sábado à noite tinham um baile, mais modesto que os do Sporting ou do Benfica, para pessoas mais simples. Eram bailes em que se dançava e bebia vinho tinto. De garrafão. Mas pagava-se para entrar. Como não tínhamos dinheiro, tentávamos entrar sem pagar. Os bailes tinham sempre à porta uma senhora a receber o pagamento, então os meus colegas mandavam-me à frente para ir falar com elas. Nessa altura já era o diplomata do grupo [risos]. Então eu, sempre muito simpático. ‘Boa noite, tia, tudo bem?’ E lá ficava um bocado a falar com elas, a tentar dar-lhes a volta para entrar. Depois ainda tinha de as convencer a deixar entrar os meus colegas. Às vezes havia uma ou outra menos simpática, ou que já me conhecia melhor, que não nos deixava entrar sem pagar. Eu dizia ‘Boa noite, tia, tudo bem?’, mas ela não dava hipótese.

E nesses bailes tinha mais sorte?

Sim, nesses bailes tinha mais sucesso.

Também tinha a vantagem de ser um diplomata, lá está.

Falava bem.

Voltando ao Sporting de Timor Leste, que tipo de jogador é que era?

Era reserva [risos]. Aliás, era reserva do reserva. Havia os titulares, quando algum faltava jogava um reserva e se os reservas também faltassem é que entrava eu. Só joguei uma vez.

E correu bem?

Não, correu muito mal. Eu nos jogos no campo do meu vizinho era bom, mas ali o Sporting era outra coisa. Era defesa e geralmente tinha pontaria às canelas dos adversários. Era um defesa duro. Então nos jogos no bairro, quando eu me aproximava os adversários chutavam logo a bola. Já nem tentavam aproximar-se mim, rematavam de onde estivessem.

Antes de ir para Dili, quando morava no interior, não jogava?

Sim, jogava. Eu nasci em Dili, mas ainda bebé fui com os meus pais para o interior. Vivemos em Laclubar, depois em Barique e estudei na Missão Católica de Saibada. Era tudo muito perto, mas lá mesmo no interior, onde não há nada a não ser muito verde. Não havia carros, não havia motas, havia um camião chinês, que nem era muito grande, daqueles de seis rodas, que iam lá de vez em quando levar coisas e era um acontecimento. O camião levava sempre atrás um pé descalço. Então chegava, o motorista puxava o travão e o pé-descalço descarregava a mercadoria. Eu ficava a olhar para o camião e sonhava ter um quando fosse adulto, para correr o mundo. Mal eu imaginava nessa altura que ainda haveria de viajar por todo o mundo.

E não foi de camião.

Não, não foi de camião. Mas o interior nessa altura era muito pobre. Então na Missão Católica de Saibada nós jogávamos futebol com o que houvesse. A bola podia ser uma toranja amaciada, podia ser trapos enrolados, era o que houvesse.

[...]

Espere aí um momento que está aqui uma cobra e eu detesto cobras.

[pausa]

Não sei onde é que ela se meteu. Aqui na minha propriedade é muito raro aparecerem cobras e quando aparecem, eu mato-as, porque odeio cobras. Mas esta fugiu.

E como é que as mata?

Tenho aqui uma enxada. Outras vezes é com duas espadas que tenho na sala. Houve uma noite em que comecei a ouvir os passarinhos a gritar, mas eram gritos de pânico: era por causa uma cobra que andava aqui. Então eu peguei nas duas espadas... parecia uma samurai. Esquartejei a cobra. Os defensores dos animais não vão gostar de saber isto, mas eu detesto cobras. Detesto, detesto, detesto. Não sei porquê. Acho que é da educação católica que tive, da cobra ter enganado Adão e Eva, o que levou o animal a ser castigado e condenado a rastejar a vida toda.

Estudou na Missão Católica de Soiabada e depois foi para Dili fazer o liceu, certo?

Sim. Eu entrei na pré-primária muito tarde, com sete anos, por isso acabei a escola mais tarde. Quando fui para Dili, para estudar no liceu, já tinha 14 anos e fiquei em casa da minha madrinha. Não havia muitos carros em Dili, as motas eram raras e ter uma bicicleta já era sinal de algum poder financeiro. Eu pedia uma bicicleta a um amigo meu para ir ter com uma namorada que tinha na altura. Houve um dia em que o cão veio atrás de mim, eu fugi como pude, arranhei-me todos nos arbustos e deixei a bicicleta para trás.

O seu amigo deve ter ficado muito chateado...

Ficou furioso. Depois fomos lá buscar a bicicleta, que continuava no sítio onde a deixei. Nessa altura praticamente não havia roubos em Dili.

E porque é que se tornou adepto do Sporting?

Não sei. Naquela altura em Dili torcia-se por dois clubes: ou era o Sporting ou o Benfica. Eu fiquei sportinguista. Mas nunca fui ferrenho. A única equipa que sigo fervorosamente é a seleção portuguesa. Aí sim, gosto de ver os jogos e sofro com aquilo. Insulto os adversários, grito, não consigo estar calado. O Max Stahl, jornalista que faleceu recentemente, esteve a viver uns tempos em minha casa. Ele era sueco por parte da mãe e inglês por parte do pai. Então houve uma altura em que Portugal jogou com a Suécia e ganhou. O que ele teve de me ouvir! Pouco depois, Portugal jogou com Inglaterra e também ganhou, e ele teve de me ouvir outra vez. Quando joga a seleção portuguesa, aí sou mesmo adepto.

Mas porquê essa paixão pela seleção portuguesa?

Historicamente as duas nações estão muito ligadas. Apoiar a seleção portuguesa acho que é uma coisa cultural em Timor. Quando Portugal vence algum jogo importante, as ruas de Timor enchem-se com milhares de pessoas e motas a celebrar. Festeja-se mais as vitórias da seleção portuguesa em Timor do que em Portugal. É uma coisa que só vista. Há um grande fervor nos timorenses, muitas bandeiras na rua. Eu tenho uma vizinha que é alemã e quando a Alemanha ganhou a Portugal, recentemente, perguntei-lhe: ‘Então, o jogo?’. Ela, que não liga muito a futebol, respondeu-me: ‘Não vi, mas percebi pelo silêncio no bairro que Portugal tinha perdido’. Depois, claro, também há o fenómeno Cristiano Ronaldo, que até já veio a Timor, há muitos anos.

A luta pela independência de Timor também aproximou muito os dois países.

Portugal foi determinante na independência de Timor Leste. O que o Portugal novo, este Portugal atual, não o Portugal da ditadura, fez por Timor Leste é impagável. E fez tudo muito à portuguesa, muito discretamente, sem se colocar em bicos de pés. A independência de Timor Leste foi uma grande vitória da democracia portuguesa e tudo foi feito sem show off. Ainda hoje ajuda, porque temos cá muitos professores portugueses. Por isso Portugal é muito respeitado, mesmo entre quem estava do outro lado da luta, como os indonésios. A Indonésia tem hoje um grande respeito, e eu conheço bem o atual presidente, por Portugal e pela forma como Portugal fez as coisas.

Em contrapartida Timor tem um grande carinho por Portugal...

Quando Portugal saiu de Timor, só dez por cento dos timorenses falavam português. Durante a ocupação indonésia esse número caiu para um por cento. Agora já há 40 por cento, que até deve ser mais, mas vamos assumir 40 por cento, pronto, da população a falar português. Portanto Timor Leste também tem feito muito pela expansão da língua portuguesa.

E qual é o papel que o futebol pode ter na construção de um país?

Um papel muito importante. Timor Leste teve de ser construído não do zero, mas abaixo de zero. A ocupação indonésia destruiu o país, destruiu as casas particulares, destruiu os edifícios públicos, só ficou o Palácio do Governador, porque era uma construção muito sólida dos anos 60. Até o Banco Nacional Ultramarino foi dinamitado. Nenhuma outra ex-colónia, bem Moçambique, nem Angola, nem sequer a Guiné-Bissau tiveram de recomeçar tão do fundo. Foi abaixo de zero. Depois morreram 250 mil timorenses durante a ocupação indonésia. A Guerra Colonial não provocou esse número de mortos, nem juntado as baixas entre militares portugueses com as baixas entre guerreiros e civis de Moçambique, Angola e Guiné. Portanto, para além da destruição física, ficou uma dor muito grande na alma e no coração dos timorenses. Foi necessário iniciar a reconstrução do país e curar essa dor que ficou no povo.

E o futebol pode ser importante para a autoestima e amor patriótico dos povos...

O desporto tem esse poder. Enquanto fui Presidente da República, entre 2007 e 2012, criei um projeto que se chama «Dili, cidade da paz», o qual era uma forma de recuperar a autoestima dos timorenses através do desporto e da cultura. No desporto, foram criados dois grandes eventos. A Dili Marathon, que era uma prova com percursos de 42 quilómetros, 21 quilómetros, 10 quilómetros, cinco quilómetros e para crianças. Participaram milhares de pessoas, muitos estrangeiros, inclusivamente quenianos. O outro evento foi o Tour de Timor, uma prova de ciclismo de montanha, em que chegou a participar um antigo campeão do mundo americano. O Tour de Timor era um grande acontecimento, porque percorria as povoações mais rurais, que se juntavam e faziam festas à noite à passagem dos ciclistas. Infelizmente o meu sucessor, Taur Matan Ruak, foi deixando que estes eventos perdessem importância até desaparecerem.

A seleção de futebol de Timor pode vir a desempenhar esse papel de catalisador da autoestima?

Timor Leste ainda tem grandes deficiências nesse aspeto. Não temos, por exemplo, um estádio qualificado para grandes jogos. E a Federação não faz uma boa gestão dos dinheiros públicos.

Foi por causa da importância sentimental do desporto que se tornou presidente do Boavista de Timor Leste?

Eu sou presidente honorário. Fui convidado pelo proprietário do clube, o Carl Gusmão, que é sobrinho do Xanana e meu vizinho, mora na casa em frente à minha. O meu papel no Boavista é mais de moral e político. Sempre que posso, vou ver os jogos.

O Xanana Gusmão nunca lhe disse para virem a Portugal ver um Sporting-Benfica?

O Xanana Gusmão sim, é fervoroso adepto do Benfica e também é presidente de um clube, o Benfica de Laurara. Nunca fui a Portugal ver um jogo com ele, mas da última vez que estive aí, em 2019, a convite da Câmara Municipal de Gaia, o pessoal do Boavista viu-me no hotel e convidou-me para ir ver um jogo. Eu fui. Mas confesso que gosto mais de olhar para as bancadas do que para o relvado. Gosto de ver o comportamento das pessoas.

É o ser humano na sua expressão mais pura, não é?

É. Vê-se de tudo nas pessoas. Gosto particularmente daqueles que dão instruções com gestos para a equipa, a tentar empurrá-la para a frente. Eu divirto-me mais a olhar para as bancadas.

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