«A realidade económica do país mudou. Estamos a voltar outra vez à formação e à procura das Divisões inferiores.»

A frase foi proferida por Paulo Alves, atual treinador do União da Madeira, em entrevista ao Maisfutebol, em 2013, altura em que tinha deixado o cargo de selecionador nacional de sub-20.

Ora, com o mercado fechado e volvidos apenas quatro anos desde estas declarações de Paulo Alves, o nosso jornal decidiu olhar para os plantéis dos clubes da I Liga e tentou perceber se a mudança de paradigma preconizada pelo treinador se concretizou. Se a aposta na formação não suscita grandes dúvidas, a contratação de jogadores a equipas semiprofissionais ou amadoras portuguesas ainda é uma incógnita, sobretudo pelos riscos que acarretam.

Contudo, convém realçar que o talento nem sempre escolhe o espaço e as condições ideais para crescer. Ainda assim, há quem contrarie essa ideia e consiga chamar a si a atenção dos clubes do principal escalão.

Antes de embarcar neste percurso pelos plantéis da Liga à procura de jogadores descobertos, tanto no Campeonato de Portugal como nos Distritais, importa salientar que o passado já provou que existem jogadores capazes de se afirmarem entre os grandes. Entre muitas apostas falhadas, houve alguns que conseguiram cimentar-se no principal escalão e até quem tenha conseguido sagrar-se campeão nacional.  

Ao todo, são 13 os jogadores que os clubes da liga principal contrataram a emblemas do Campeonato de Portugal ou de divisões amadoras, sendo o Vitória de Setúbal, com cinco, o principal dominador.

Seguem-se Estoril, Tondela e Moreirense cada um deles com dois jogadores recrutados a formações de divisões inferiores. Por último, Desportivo das Aves e Feirense incluíram nos seus quadros, cada um deles, um futebolista oriundo de escalões inferiores.

Exemplo sadino estende-se a outros cinco emblemas

O Vitória de Setúbal, nos últimos anos, tem sido um clube que tem apostado em jogadores provenientes de divisões inferiores. João Amaral, contratado ao Pedras Rubras no início da última época, é porventura o melhor exemplo de apostas certeiras dos sadinos.

Para o ataque à nova época, José Couceiro tem à sua disposição o guarda-redes Miguel Lázaro (ex-Benfica de Castelo Branco), Rafinha (ex-Amarante), Allef (ex-Real Massamá) e Jacob Adebanjo (ex-AD Oliveirense). Para além destes jogadores, destaque para Diogo Sousa, um lateral direito de 24 anos que saltou do Infesta, da Divisão de Honra da AF Porto, diretamente para o emblema da cidade de Setúbal. Algo assinalável, sublinhe-se.

Moreirense, Tondela e Estoril decidiram repetir a política de recrutamento do Vitória de Setúbal e também optaram por contratar jogadores a equipas de escalões inferiores. Algo que, saliente-se, não é inédito nestes clubes.

João Amaral: um dos jogadores que se afirmou entre os grandes depois de ter sido contratado a um clube do CP
João Amaral é um exemplo de um jogador que chegou do CP e que se afirmou entre os grandes.








 

 

Os cónegos incluíram no plantel para a temporada 2017/18, Elsinho Tavares, médio que chegou do Recreativo Águias Musgueira, clube no qual Renato Sanches deu os primeiros passos e Alfa Semedo, luso-guineense procedente do Vilafranquense.

Por sua vez, João Vasco (ex-Mortágua) e Júnior Pius (ex-Sanjoanense) estão às ordens de Pepa no Tondela. O Estoril, depois de ter contratado Joel Ferreira ao Mafra há duas épocas, voltou a incluir jogadores oriundos do Campeonato de Portugal. João Gurgel antigo jogador do 1.º de Dezembro e o ex-Salgueiros 08, Aylton Boa Morte.

O Feirense com a contratação de Zé Pedro, antigo avançado da AD Sanjoanense, acaba incluído nesta lista, tal como o Desportivo das Aves que ofereceu contrato profissional a Youssouf Sow.

«Há muita qualidade nos campeonatos nacionais»

João Vasco, atualmente no Tondela, é um dos exemplos de jogadores que saltaram diretamente do Campeonato de Portugal para a I Liga. As diferenças entre os dois patamares, o acumular de funções e a persistência na luta por um sonho, contadas na primeira pessoa.

«A minha rotina? Era acordar às 7h00 da manhã, treinar sozinho às 7h30 e depois ir para as aulas. A seguir, tinha de arranjar um tempinho para estudar antes de ir ao treino à noite. Chegava a casa às 23h00 e despachava-me a jantar para descansar o máximo de tempo possível».

A rotina de João Vasco durante a época passada era esta. Num ápice tudo mudou.

Apesar da dureza que se consegue adivinhar, o avançado ex-Mortágua concluiu o primeiro ano do Mestrado em Ciências do Desporto e Educação Física, na Universidade de Coimbra, e deu nas vistas com os 12 golos que apontou em 34 jogos pela equipa do distrito de Viseu, que disputou a Série D do Campeonato de Portugal. De tal forma, que o Tondela reparou nas qualidades de um menino de 22 anos, que vai fazer este ano a sua primeira época no escalão máximo do futebol nacional.

«Agora, o futebol é o meu trabalho, já não é só um part-time», assume, ainda que confidenciando que vai tentar concluir o Mestrado, do qual falta escrever uma tese em que vai comparar a composição óssea de atletas de alto rendimento com a de pessoas ativas. 

Ora, alto rendimento, passou a ser a sua vida, neste Verão, quando chegou ao profissionalismo. «Aqui, temos de nos concentrar em tudo, não só no treino, mas na alimentação, no descanso e em algum trabalho psicológico. Para além disso, há grandes diferenças nas relações que temos com os colegas, com os treinadores e com a direção», aponta.

Estas são algumas das mudanças que João Vasco já conseguiu identificar ao chegar ao patamar mais alto do futebol português, naquilo que assume ter sido o seu sonho desde que começou a dar pontapés na bola em Darque, uma freguesia do concelho de Viana do Castelo.

Há mais diferenças, claro, mas essas o camisola 21 do Tondela já esperava. «Na pré-época senti diferenças a vários níveis: desde os aspetos táticos, à intensidade e a importância dos timings nas jogadas, saber o que vou fazer à bola antes de a receber. Determinados pormenores que um jogador, ao chegar a este nível, tem de se adaptar o mais rápido possível para não perder a carruagem».

As três épocas que jogou no Mortágua também serviram para João Vasco se ir mentalizando que, se era o profissionalismo que pretendia, tinha de estar preparado para «dar o salto», quando a oportunidade chegasse. Assim, quando o Tondela lhe abriu as portas da Liga, mais do que receio de estar a dar um passo demasiado grande, o jovem avançado garante que apenas sentiu a ansiedade de quem está prestes a cumprir um sonho.

«Quem faz a formação desde pequeno e leva o futebol a sério tem sempre o sonho de chegar ao mais alto nível. Como este era o meu sonho, quando surgiu, fiquei ansioso para começar e para descobrir como era este mundo», descreve.

Por último, João Vasco considera que os clubes da Liga têm obrigação de olhar para os jogadores das divisões inferiores, dada a qualidade existente nesses patamares. Aliás, há competência mais do que suficiente para atuarem ao mais alto nível, apenas precisam do contexto ideal para desenvolver o «enorme potencial» que possuem.

«Joguei três épocas no CPP, durante os quais defrontei equipas do Norte, Centro e Sul e joguei com muitos jogadores de enorme potencial. Claro que tinham de ser trabalhados e ter uma oportunidade mas, na minha ótica, há muita qualidade nos campeonatos nacionais», conclui.

Durante anos os clubes da Liga olhavam para os escalões inferiores à procura de possíveis jogadores com capacidade para integrarem os seus quadros e atuarem no patamar mais alto do futebol português. De seguida, abriram-se fronteiras e a principal área de recrutamento voltou a ser o estrangeiro: América do Sul e anteriormente países do leste europeu. Agora, face à conjuntura económica atual e à «loucura» em que vive o mercado de transferências, quiçá os exemplos destes pequenos clubes deixem de ser exceção e passem a ser regra.

Em suma, quando os astros aparentemente se alinham, os sonhos deixam de ter limites.