A História de Um Jogo é uma rubrica do Maisfutebol. Escolhemos um dos encontros do fim de semana e partimos em busca de histórias e heróis de campeonatos passados. Às quinta-feiras, de 15 em 15 dias.
Esta é uma história de duas cidades, não apenas de um jogo. O Vitória-Sp. Braga deste sábado [nota: este artigo foi escrito em fevereiro de 2022] é apenas mais uma manifestação, grande, é verdade, de uma divisão que remonta ao início dos tempos, se assim os entendermos desde a fundação do país, e tem vários motivos. Religiosos, políticos e o que nos traz aqui: desportivo.
O dérbi minhoto conhece novo episódio. Portanto, esta é a oportunidade perfeita para se perceber como a paixão vivida num estádio em que jogam Vitória de Guimarães e Sporting de Braga ao mesmo tempo tem atrás de si um passado que, provavelmente, alguns dos que torcem pelas duas equipas desconhecerão.
No fundo, mesmo que não o saibam, é por tudo isto que eles querem superar o vizinho, numa rivalidade que até já teve freiras de facas na mão, já tentou unir Guimarães ao Porto, mas que, bem vistas as coisas, até já trouxe benefícios às duas localidades minhotas.
A primeira coisa a saber é que a rivalidade teve, sobretudo, duas motivações: religiosa primeiro e política depois.
«Primeiro, tinha a ver com a dimensão. Em Guimarães houve sempre um problema em aceitar o poder do Arcebispo de Braga. Guimarães era maior, tinha mais gente, portanto, houve esse problema na Idade Média», diz ao Maisfutebol o historiador António Amaro das Neves, que descobrimos através de um artigo da Rádio Universitária do Minho, sobre o tema.
«Há dois momentos de maior confrontação em relação a esse período. Uma quando o Arcebispo quis tomar conta de São Torcato, quis ter a sua autoridade sobre São Torcato e inclusive levá-lo para Braga. Depois, mais forte, que se prolongou foi a resistência de alguns conventos, mas sobretudo a Colegiada de Oliveira que não aceitava a jurisdição do Arcebispo», acrescenta.
O exagero das tortas de Guimarães
Antes que a história fique demasiado pesada é preciso especificar quem era quem e como o corte no açúcar levou, então, que as freiras empunhassem armas.
Portanto, em Braga, vivia o Arcebispo, figura maior da Igreja, em Guimarães, os membros da Colegiada «uma instituição religiosa, cujos integrantes viviam nas suas casas e eram pessoas muito poderosas» na altura.
«Nunca aceitaram a autoridade do Arcebispo sobre a sua ação. Tinham de responder jurisdicionalmente, havia inquéritos e os cónegos de Guimarães achavam que tinham uma posição em que não estavam debaixo da autoridade de ninguém. Isto teve muitos episódios ao longo dos anos. Uns rocambolescos, outros grotescos», António Amaro das Neves
O enquadramento da época, diz-nos Amaro das Neves, é o de que Guimarães tinha um importante convento de Santa Clara e que as freiras que ali habitavam «eram normalmente filhas de famílias nobres ainda sem bons casamentos».
Para manter estatuto social iam para um convento. «Então, tinham comportamentos muito pouco religiosos, namoros descarados, por exemplo, mas uma coisa que faziam eram doces para vender, vendiam tortas de Guimarães, que são um ex libris da cidade», conta Amaro das Neves.
É aqui que entra o açúcar. Ou, por outro lado, ele sai. «Vendiam em quantidades que o Arcebispo achou serem um exagero e, vai daí, cortou-lhes na dose de açúcar a que tinham direito. Isto está escrito em inquéritos judiciais feitos pela própria igreja», acrescentou. Portanto, quando os emissários do Arcebispo lá chegaram, «as freiras receberam-nos de facas na mão» e correram com os homens.
Diz o nosso interlocutor que o «dérbi» Guimarães-Braga «ganhou foros maiores no século XIX, quando houve uma reorganização do território e foram criados os distritos».
A ideia de união ao Porto
Toda a gente sabe, a capital do distrito é Braga, o que foi difícil de aceitar em Guimarães.
«Porque até aí, o país estava dividido em comarcas e províncias e Guimarães era capital de uma grande comarca, uma das maiores dos países. A divisão de comarca desapareceu do ponto de vista administrativo, e Guimarães de repente deixou de ser cabeça de nada e passou a ser de Braga. Guimarães do ponto de vista económico e populacional era maior do que Braga e os episódios aumentaram»
Amaro das Neves indica o dia 25 de novembro de 1885, quando «os representantes de Guimarães foram a Braga onde ia ser discutida uma proposta de criação do curso de Ciências para o Liceu de Braga» como um dos momentos mais tensos.
Chegou à cidade dos Arcebispos que os vimaranenses iam votar contra. Aqui, o historiador faz uma pausa: «As pessoas de Guimarães tinham poder político, eram próximas do rei como o Conde Margaride.» Mas as nobres gentes vimaranenses «foram corridas de Braga à pedrada». Infelizmente, gestos que já foram vistos entre adeptos de Vitória e Sp. Braga no plano futebolístico.
«Quando a notícia chega a Guimarães, ainda nem os enviados tinham regressado de Braga. A cidade levantou-se em polvorosa, com manifestações, comícios. O período de 1885/86 é de grande convulsão em Guimarães e havia o apelo de juntar Guimarães ao distrito do Porto», explica-nos Amaro das Neves.
«Seria a maior asneira!», completa com opinião, pois se a luta com Braga era de duas cidades de tamanho igual, o Porto era significativamente maior e Guimarães sairia a perder. O conflito é tão grande que hoje, no Largo da Misericórdia, existe o monumento a João Franco, o deputado da cidade que tanto advogou a favor da causa vimaranense nessa altura.
José Sócrates, o futebol e alguns momentos de ternura
O motivo político na rivalidade manteve-se sempre, com episódios que se repetem como veremos mais à frente. «Quando começa o futebol isto foi muito complicado. Entre o início dos anos de 1920 [fundação dos dois clubes] e 1933/34 houve um claro domínio do Sp. Braga, que até partilhava sede com a Associação de Futebol. Mas a partir do meio dos anos de 1930, o Vitória passou a ter uma boa equipa e passa a ser a potência. É o primeiro clube fora dos grandes centros a ir para a I Divisão, é o primeiro representante do Minho», diz António Amaro das Neves.
Há, porém, uma altura em que «o Sp. Braga passa por uma crise longa» e aí até há «momentos carinhosos». Nos anos 1950, estiveram ambas prestes a descer de divisão e os rivais «apoiaram-se, ainda que sejam episódios curtos» na vida de Vitória e Sp. Braga, de vimaranenses e bracarenses.
Já nos anos 2000, a história das duas cidades conheceu novos acontecimentos.
No início do século XXI foi criado o Instituto Ibérico de Nanotecnologia «e estava para ser em Guimarães». Eis que de acordo com Amaro das Neves, uma gaffe política muda tudo.
«Quando é anunciado, José Sócrates [então primeiro-ministro] diz que o Instituto Ibérico vai ser na Universidade de Braga, que é algo que não existe, pois é Universidade do Minho», frisa o historiador.
«O Mesquita Machado [autarca bracarense] nunca mais o largou e aquilo foi para Braga», contou. Ato seguinte, Guimarães foi Capital Europeia da Cultura e «toda a gente percebeu que aquilo foi uma compensação e, nesse aspeto de desenvolvimento, esta não é uma rivalidade má», pois quando uma cidade beneficia, a outra exige e tem.
Nesta sábado, o Vitória recebe o Sp. Braga no D. Afonso Henriques e houve já uma polémica. Agora foram os bilhetes a dividir os dois clubes minhotos, que ao peito trazem identificados os símbolos das cidades. O rei que foi dando privilégios às gentes de Guimarães e os motivos religiosos que estão no emblema contrário e que é quase cópia do brasão de Braga. É um dérbi, sim, mas é muito mais do que um jogo de futebol aquilo que representa o Vitória de Guimarães-Sp. Braga deste sábado.