Texto de Afonso de Melo, jornalista, publicado originalmente a 6 de janeiro de 2014

«Eusébio.


Há nomes assim: esse ponto final parágrafo aí em cima poderia ser um ponto absolutamente final. Ou seja: o livro estaria pronto, concluído, perfeito. Porque a Eusébio nada se acrescenta.

Exagero subjectivo!, exclamarão alguns. Estão no seu direito. E para eles, desde já acrescento: não leiam mais, então, não vale a pena. Esta será, de início ao fim, uma prosa subjectiva. Terá factos, terá números, terá estatísticas, se calhar, matérias portanto objectivas. Mas a visão redonda deste planeta achatado nos pólos é minha e dela não prescindo.
 
Convenhamos: Eusébio escreveu-se a si próprio.
 
Agora vou falar de outro nome fundamental: Nelson Rodrigues. A ele se devem as mais belas páginas escritas em português sobre futebol. E, ao contrário do que possam pensar, futebol e literatura têm muito em comum. Têm muitíssimo em comum.
 
Nelson Rodrigues: «Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural». Era aqui que queria chegar: Eusébio é demasiado complexo para ser objectivo.
 
Revejam o filme do primeiro golo de Eusébio contra o Brasil, em 1966, no Campeonato do Mundo de Inglaterra. Ou melhor, revejam-no depois do golo. Ele corre, de braço no ar. A cabeça está erguida, imperial, reparem bem: há no seu olhar, que abarca todo o estádio de Goodison Park, em Liverpool, a consciência de que a história está a passar por ele, pela sua passada elástica, veloz, o redor move-se em câmara lenta, só ele tem vida para além da vida corriqueira, insignificante, só ele ganha luz para além dessa vidinha de que falava Alexandre O’Neill e que acabrunhava o país triste. Corre, corre, corre, Eusébio corre. Está apenas a comemorar um golo, mas até disso dir-se-ia depender a sua própria existência. Aquela corrida parece durar horas e horas. Aquela corrida merecia durar horas e horas.
 
Prestem bem atenção, agora: ele eleva-se no ar como se tivesse as asas nos pés de um Mercúrio negro. O seu braço erguido estende-se para lá do estádio, quase tocando o céu num soco vigoroso, vibrante. Não tirem os olhos dele: deixem-no ficar assim para sempre na parede lisa da vossa memória. Dificilmente Eusébio poderá ser tão Eusébio.
 
Eusébio voou. Como o vento. Para lá das nossas janelas. Até da vida.
 
Desmond Hackett, jornalista inglês, chamou-lhe um dia «Black Panther».
 
A «Pantera Negra»: o nome pegou. Nenhum outro, aliás, lhe ficaria tão bem. Vejam as fotos: os seus movimentos plásticos, elegantes, intuitivos. Uma «Pantera Negra» que persegue a bola e à qual a bola não foge nunca.
 
Eusébio: talvez não seja um nome e sim um adjectivo.
 
Eusébio da Silva Ferreira.
 
O seu nome tornou-se tão grande que merecia ocupar mais espaço do que o de um parágrafo.
 
Mas Eusébio não é apenas Eusébio: é tudo aquilo que viveu, todos aqueles com quem viveu, todos os lugares em que viveu. Por isso, em redor de Eusébio, viaja-se. No mesmo perpétuo movimento de que falava António Gedeão na «Pedra Filosofal».
 
Eusébio-de-toda-a-parte.
 
Eusébio: da Mafalala a Benfica. E ao Tojal, e à Casquinha e a Pedralvas.
 
Eusébio: da Mafalala à Luz.
 
Eusébio: entre Lourenço Marques e Lisboa. Perdido no meio de dois mundos. E a qual dos mundos pertence Eusébio?
 
Quando D. Elisa Anissabana morreu, Eusébio não pode ir a Lourenço Marques, entretanto já Maputo: o governo moçambicano não lhe deu o visto.
 
Eusébio: O MAIOR NEGRO DA HISTÓRIA DE PORTUGAL. Côr num Portugal-a-preto-e-branco.
 
Nelson Rodrigues: «Sou dos que crêem que o homem é, sobretudo, passado. O presente pouco importa e o futuro menos ainda. As coisas só tomam o seu exacto valor quando evocadas. É a memória que potencializa todas as nossas experiências de vida e de futebol».
 
A evocação de Eusébio.
 
A memória de Eusébio.
 
A falta foi minha: Eusébio não teve a culpa.
 
Já disse e já repeti: não é fácil escrever um livro sobre Eusébio.
 
Pior ainda: não é fácil acabar um livro sobre Eusébio.
 
Poderia ficar aqui a escrever durante meses e meses e meses. Mais: poderia ficar aqui a escrever durante anos e anos e anos. Poderia ficar aqui a escrever uma vida a fio.
 
Às vezes a gente procura e procura a palavra certa para acabar um livro. E eu nem sei bem se isto foi um livro…
 
Acabo como comecei:
 
Eusébio,
e ponto final.
 
Parágrafo.

Afonso de Melo
Textos retirados do livro «Viagem em Redor do Planeta Eusébio»