Ainda ouço vinil. Quando me lembro, coisa rara. Deixo a agulha cair, que nem arado ruidoso, na versão de Compay Segundo. Tantas vezes tocada que o refrão ficou para sempre, levantado no ar pelo queixo esticado e pelo movimento das ancas, à vez. Cha-cha-cha.


Se sabemos, se pressentimos, que algo vai acontecer, protegemo-nos. Não o fazemos como rotina. Fazemo-lo para que o momento não nos apanhe desprevenidos. Queremos ficar seguros, pôr em papel a equação que a nossa mente já resolveu e usar o nosso direito, num último acto de livre-arbítrio, para o que der e vier. Pegamos na caneta, escrevinhamos, sublinhamos. E, solenemente, assinamos. O que queremos, para nós e para os outros. Por esta ou outra ordem. Depois, enfiamos as folhas no cofre atrás do quadro de naturezas mortas e esperamos até que alguém rode a combinação e acerte.


A humanidade, por cúmulo, também veio com defeito. De fabrico, irreparáveis, mas que não afectam a nossa sobrevivência. Mal ou bem, conseguimos viver connosco, nesta embalagem não reciclável com algo dentro a que chamam alma. De vez em quando, esperamos um daqueles avisos no rádio, em que uma marca de automóveis ou smartphones reclame a nossa patente e peça que voltemos à fábrica para sermos corrigidos.


A Apple recomenda a todas as pessoas nascidas em 1974 que passem nas suas instalações a fim de receberem um upgrade.


Mas não. Temos de viver com isto. Este defeito que nos reduz. O ser humano é incapaz de dizer, pelo menos as vezes suficientes, o quanto gosta de outro. Por isso, vou dizer-te isto antes que vás, Jackson!


Penitencio-me, tenho sido injusto. Achei que não era preciso dizer-lhe, que ele sabia. Mas se o sabe, a verdade é que o tímido «El Mudo» de Medellín nunca o confirmou. Mudo, uma vez e sempre.


Lembro-me de Lobo Antunes. Uma frase a pairar sobre uma entrevista. O talento, o seu, afinal não o era. O génio não existia, apenas trabalho. Muito trabalho. Entendo-o. Acho. Cada frase tinha uma vida própria. Cada palavra era recortada, ao jeito de uma criança que morde a língua num dos cantos da boca. Repensada. Apagada. Riscada. Reescrita. O escritor derrotava a banalidade pelo cansaço. Mas não me engana. O seu génio era apenas mais preguiçoso que o dos outros. Molengão. E ele precisava de exercitá-lo, desentorpecê-lo, não entrar depressa numa noite escura.


O que mais surpreende em Jackson é a leveza. A elegância. Tudo é natural. Não precisa de apagar e reescrever. De voltar atrás e começar os movimentos todos do início. Os sprints não deixam rasto. O corpo vira sobre si mesmo para cair de pé, graças a esqueleto e musculatura felina. Salta, dispara. Cabeça. Pé esquerdo. Direito. Tudo nele existe com um fim: ser o máximo predador em cima da cancha.


A elasticidade tê-la-á desenvolvido em criança, enquanto os pais se decidiam pelo seu nome, e treinava o Moonwalk de Michael... Jackson. Não quis continuar bailarino, mas quando marca, e ainda que falte o sorriso exuberante e o fato de folhos, bem que parece fazer saltar os ossos das ancas como punchline do feito. Cha-cha-cha.


Ya nadie la mira

ya nadie suspira

Ya sus almohaditas nadie las quiere apreciar.




Cha cha cha es un baile sinigual

Cha cha cha es un baile sinigual

Cha cha cha es un baile sinigual

Cha cha cha es un baile sinigual

Cha cha cha es un baile sinigual

Cha cha cha es un baile sinigual

Cha cha cha



«La Engañadora» esgota-se no gira-discos. E vou dizer isto antes que também ela se vá. Foi bom ter-te por cá, «Mudo». Fica o tempo que quiseres!



«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol. Pode segui-lo no FACEBOOK e no TWITTER. O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.