Arsène Wenger termina contrato com o Arsenal no final da época e foi alimentando dúvidas sobre o futuro. Agora, a meio da época que vê os Gunners na frente da Premier League, o líder do clube, Ivan Gazidis, anunciou que o francês vai mesmo renovar. O treinador mais antigo do campeonato inglês e do futebol europeu de topo continuará a sobreviver no banco a Alex Ferguson. 17 anos e meio, e a contar.

O futebol inglês vai manter a sua segunda grande referência das últimas duas décadas no banco. Um e outro são casos raros de longevidade. Mesmo em Inglaterra. Como nota Luís Boa Morte, que foi treinado por Wenger nos primeiros anos do francês no Arsenal, continua a viver em Inglaterra e acompanha desde o início a carreira do francês, em conversa com o Maisfutebol: «Fiz essa análise recentemente e a média de duração de um treinador em Inglaterra é um ano e sete meses, um ano e oito meses. O Wenger e o Ferguson são outsiders, são exceções.»

Wenger é uma personalidade forte, que divide opiniões. A imagem sisuda e formal do francês acompanha há anos quem acompanha futebol. Mas Boa Morte fala de outro Arsène Wenger: «Essa é a imagem que as pessoas veem, mas não tem nada a ver com o seu perfil. Com os jogadores é completamente diferente, é muito comunicativo. A relação com os jogadores é muito próxima, é de preocupação com os jogadores.»

A escolher uma qualidade de Wenger, Boa Morte destaca a persistência. «É um treinador que, independentemente de as coisas não estarem a correr bem, acredita sempre que pode dar a volta», analisa: «É um treinador que acredita nos seus. E não tem qualquer problema em enfrentar um desafio.»

E resiste. Desde 2005 que o Arsenal não ganha qualquer título. No verão passado Wenger tinha admitido dúvidas sobre a sua continuidade, dizendo que tinha de decidir se ainda era a pessoa certa para fazer o clube avançar e assumindo algum desgaste ao fim de tantos anos, e de tantos anos sem ganhar. Mas, depois de reforçar a equipa com Mesut Ozil, com o Arsenal de novo a encantar e a ganhar, as dúvidas parecem ter-se dissipado. Gazidis deu a renovação como garantida e acrescentou que será formalizada «na altura certa». 

Wenger chegou a Londres a 30 de setembro de 1996. Foi assim:



O Arsenal tinha despedido Bruce Rioch e foi buscar o francês que tinha sido campeão no seu país com o Mónaco, em 1987/88, passara o último ano e meio no Japão, a treinar o Nagoya Grampus, e era virtualmente um desconhecido para os ingleses. O primeiro técnico não britânico da história dos Gunners não foi recebido sem desconfiança. «Arsène Who?», questionava a manchete do jornal «Evening Standard». Tony Adams, o capitão dos Gunners, só tinha dúvidas: «No início pensei: o que sabe este francês sobre futebol? Usa óculos e parece um professor.»

O escritor e argumentista Nick Hornby, autor do clássico «Fever Pitch» e um adepto indefectível do Arsenal, resumia assim a desconfiança, recordava há tempos o «Guardian»: «Lembro-me que quando o Bruce Rioch foi despedido os jornais tinham três ou quatro nomes. Terry Venables, Johan Cruijff e, no fim, Arsène Wenger. Lembro-me de pensar, como adepto: «Vai ser o raio do Arsène Wenger, porque nunca ouvi falar dele e ouvi falar dos outros dois.»

Wenger mudou muita coisa no Arsenal e levou para Inglaterra conceitos que ainda eram estranhos ao futebol britânico. Dos treinos à organização do futebol no clube, passando pela nutrição. E o início não foi fácil. «Lembro-me que nos primeiros dias no Arsenal estávamos a viajar para Blackburn e os jogadores no fundo de autocarro cantavam «Queremos as nossas barras de Mars!», contou um dia o próprio Wenger à revista «Four Four Two».

Na sua primeira época o Arsenal terminou em terceiro. Na época seguinte, entre outros reforços, Wenger foi buscar um jovem da formação do Sporting, Luís Boa Morte. Que recorda aqui esses tempos: «Recebeu-me bem, tanto ele como os outros jogadores, mesmo sendo um miúdo que vinha do estrangeiro e tinha pouca experiência.» 

Nessa época o Arsenal foi campeão e também ganhou a Taça de Inglaterra.

Imagem de março de 1998, Boa Morte com Overmars depois de uma vitória em Old Trafford

Boa Morte deixou o Arsenal em 1999 e foi para o Southampton. Mas Wenger não o perdeu de vista. «Quando saí do Southampton e fui para o Fulham quem me ajudou foi o Wenger, ajudou-me a chegar ao Tigana e a conseguir que fosse treinar com o Fulham. A minha mudança teve mão do Wenger. Mesmo não sendo jogador dele há um ano ele ajudou-me. Depois fomos promovidos, passou a ser meu adversário, mas mantivemos sempre uma relação leal.»

Mantém-se até hoje, quando Boa Morte dá os primeiros passos na formação como treinador, nas camadas jovens do Fulham: «Até agora mantemos uma boa relação. Ele diz-me que se eu precisar de alguma coisa, ao nível do treino ou de informações, tenho a porta aberta no Arsenal.»

Depois da dobradinha de 1998, Wenger e o Arsenal foram por mais duas vezes campeões ingleses: em 2000/01 e em 2003/04, nessa época sem qualquer derrota sofrida ao longo de todo o campeonato. E ganharam quatro Taças de Inglaterra, a última das quais em 2004/05. Desde então, nada.

Esse é um ângulo, há vários outros para analisar aquele que é, depois do adeus de Alex Ferguson, o senador dos treinadores europeus: Wenger, 64 anos, tem 660 jogos na Premier League, só perde para Ferguson e os seus 810 jogos, em quase mil jogos pelo Arsenal tem média de 57 por cento de vitórias. Com Wenger, o Arsenal nunca ficou abaixo do quarto lugar na Premier League e nunca falhou uma presença na Liga dos Campeões, onde o melhor que fez foi a presença na final em 2006.

Ao longo destes anos o Arsenal tem-se mantido consistentemente entre os clubes com maior capacidade financeira da Europa – este ano é oitavo no ranking da Deloitte que mede a capacidade de gerar receitas -, e é um clube estável do ponto de vista financeiro. O anúncio de Gazidis sobre a renovação de Wenger foi feito aliás na cerimónia em que foi anunciada a mudança de patrocinador do equipamento dos Gunners, um contrato com a Puma que renderá ao clube 180 milhões de euros. Foi nesse cenário que o dirigente reforçou a ideia de que Wenger «é a pessoa certa para fazer o Arsenal progredir».

Mas Wenger não ganha há muito tempo. Os críticos veem-no como um perdedor que tenta disfarçar o fracasso com o argumento de que prefere jogar bonito e está sempre a construir algo para o futuro. Entre eles José Mourinho, que raramente perde uma oportunidade para embirrar com Wenger – nesta segunda passagem pelo Chelsea a relação entre ambos parecia mais cordial, mas nos últimos dias voltou a azedar. O português chegou a dizer isto mesmo assim, quando estava em Madrid, entre as duas passagens pelo Chelsea: «Há um treinador cujas equipas andam a jogar de forma fantástica há 10 anos e os seus jogadores são sempre jovens. Uma equipa jovem que nunca ganha nada.»

«Se calhar noutro país não tinha hipóteses de estar assim tanto tempo sem ganhar. Mas estamos num futebol diferente, em que as pessoas pensam de maneira diferente», analisa Boa Morte, que recorre ao passado para valorizar o trabalho de Wenger: «O Ferguson ganhou muito, mas esteve sete ou oito anos sem ganhar quando chegou. O Wenger na época a seguir a chegar, em 1997/98, acabou a vencer o campeonato. E conseguiu uma coisa notável, que foi estar uma época inteira sem perder um único jogo. Claro que o primeiro objetivo de qualquer treinador em Inglaterra é ser campeão, mas é obviamente um título muito difícil de alcançar.»

Boa Morte valoriza precisamente aquilo que fez a aura de Wenger em Inglaterra. «Ele trouxe ao futebol inglês uma lógica de aposta em jogadores jovens, de acreditar que o futuro está nos jovens. Nas equipas mais jovens do Arsenal há sempre jogadores estrangeiros, que ele acompanha regularmente. É um trabalho profundo, nunca se esgota», diz.

«Há oito anos que não ganha nada, mas está a mostrar agora que andou a construir alguma coisa», defende Boa Morte, ele que admite ter uma costela «Gunner», embora note que o seu clube é o Fulham, aquele que, como diz, lhe deu «oportunidade de prosseguir a vida em Inglaterra».