A bola, esgotada, não tinha descanso nos pés de Carlitos. Pulava mais veloz a cada vez que esbarrava nele, cansava-se de tanto rolar a velocidades proibitivas, ao ponto de projectar o aconchego das redes no final de um pontapé mais violento: um cruzamento que a deixava mais perto do objectivo de uma longa viagem, ou, em alternativa, para surpresa sua, um remate inesperado, bruto ou artístico, numa espécie de carícia. 

Carlitos regressara de Madrid, vinha por empréstimo. Decompunha defesas à direita, acelerava desumanamente, desenhava as primeiras formas de golo em simulações e arranques, deixando a oposição caída e zonza pelo caminho. Jogava «quase de olhos fechados», gaba-se. Mais um que Álvaro perderia. Havia, contudo, uma cláusula de direito de opção que tranquiliza o treinador. Bastava que o Gil Vicente pagasse por ela cerca de 180 mil contos, uma pequena loucura que João Magalhães, o presidente, esteve quase a cometer. 

O assédio do F.C. Porto já era tema estafado quando João Magalhães percebeu que perderia, inevitavelmente, uma de duas coisas: ou a razão ou Carlitos. Rendeu-se e perdeu o jogador. A cláusula ficou por accionar e, em poucos instantes, Carlitos era do Benfica. «Dei-me bem», certifica-se. Heynckes testou-o aos primeiros pontapés da época. «Correspondi», está seguro. E impor-se-ia com a chegada de Mourinho. Fez uma pausa no relato e preparou a confissão: «Mourinho deu-me uma grande motivação». A adopção de um novo esquema táctico, marcadamente ofensivo, deixa-o à vontade, faz dele o que realmente é: um avançado. 

Preferia deixar por ali as considerações acerca da adaptação à Luz. Queria generalizar e preparava-se para se servir de outros exemplos. Algo o fez parar. Percebeu, desalentado, que só ele é titular. Não, «Guga também é», pensava melhor. Álvaro enganara-se redondamente... Recompôs-se da surpresa e, apressado, cuidou em desdramatizar: «Às vezes nem tudo corre como queremos, mas todos eles têm valor para se impor, mais dia, menos dia». 

Recordar a época passada era o suficiente para entrecortar a conversa com pequenas risadas de orgulho. «Estávamos tão bem entrosados, encaixávamos tão bem uns nos outros, que dava gosto ver-nos jogar. Jogávamos com tanto prazer, que tudo nos parecia mais fácil. Chegávamos a arriscar prognósticos antes do jogo e muitas vezes acertávamos», conta. 

Lamenta, mas não pode dizer o mesmo da equipa actual. O grande problema, parece-lhe fácil de ver, remonta ao final da época, quando sete jogadores, «quase sempre titulares», deixaram Barcelos. Uns reclamados pelos clubes de origem, outros tentados por convites irrecusáveis. «O Álvaro sabe melhor do que ninguém que será difícil fazer igual», esclarece Carlitos, recomendando o plantel a preocupar-se «exclusivamente com a permanência». Mesmo admitindo que a prudência o impede de concluir que o Gil Vicente jamais conseguirá uma época igual. Mais importante do que isso, observa, é a obtenção da primeira vitória: «As coisas começarão a complicar-se, se não a conseguirem depressa». Para seu descanso, as conversas que tem mantido com os amigos que deixou em Barcelos versam, invariavelmente, sobre «tranquilidade». 
 

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