O miúdo que a guerra obrigou a crescer depressa regressa a um dos palcos onde tudo começou
Trubin era um adolescente feliz em Donetsk, jogava no Shakhtar e sonhava viver uma noite de Champions na Donbass Arena, quando em 2014 a invasão russa obrigou o clube a fugir das bombas. Aos 13 anos foi então levado para longe e tornou-se adulto rapidamente. Sem ligação ao pai, idolatra a mãe e só descansou quando assinou o primeiro contrato, que lhe permitiu levá-la para junto dele em Kiev. A partir daí, ganhou asas e nunca mais parou... até Courtois se tornou admirador.
A história de Anatoliy Trubin dava um livro.
O ucraniano cumpriu há pouco 22 anos, ainda é muito novo, portanto, mas já passou por obstáculos e sacrifícios que permitiriam escrever vários capítulos de uma obra de resiliência.
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Natural do Donbass, viveu os primeiros anos na aldeia de Spartak, a quinze quilómetros de Donetsk e ao lado do aeroporto entretanto destruído pela guerra. Aos oito anos mudou-se com a mãe e a irmã para casa dos avós, mesmo no centro da cidade.
Nessa altura gostava de jogar com os amigos no parque Shcherbakova e passear pela avenida Pushkin. Donetsk era a sua casa e era por ali que sonhava com grandes conquistas. Nas férias viajava com a família para Mariupol, que se tornaria a sua segunda cidade.
Pelo meio começou a jogar futebol no pequeno Azovstal, onde foi levado pela mãe.
Já era mais alto do que a maior parte dos colegas, mas era rechonchudo e o treinador logo no primeiro treino mandou-o para a baliza.
«Nunca experimentei outro desporto, nem sequer tive vontade disso. Mas até aos 12 ou 13 anos fui gordinho. É uma coisa de família para nós. Depois disso, sem nunca ter feito dieta, comecei a esticar muito e de repente fiquei magro», contou numa entrevista.
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O que é certo é que o destino dele já estava traçado. Apaixonou-se por aquela posição que mais nenhum miúdo queria e tornou-se guarda-redes. Um dos grandes, de resto.
A passagem pelo Azovstal foi muito curta e Trubin rapidamente deu o salto para o Shakhtar. Era tudo o que sonhava. Ele e os amigos, como recentemente partilhou nas redes sociais.
«Donetsk é a minha casa. Foi lá que dei os meus primeiros passos, que sonhei, estudei e errei. Nessa altura, eu e os meus amigos sonhávamos com a Liga dos Campeões, Bolas de Ouro e grandes clubes europeus. Ninguém pensava que algum dia o sonho seria apenas voltar àquele lugar e não saber o que é a guerra. Um dia esse sonho será realidade.»
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A verdade é que, apesar de ter feito praticamente toda a formação no Shakhtar, Trubin nunca treinou por exemplo na academia do clube.
«Eu adorava o Estádio Olímpico, mas quando em 2009 o Shakhtar se mudou para o novíssimo Donbass Arena apaixonei-me de imediato. Infelizmente em 2014, com a invasão russa, a academia do Shakhtar foi transferida para Schastlyvoe, perto de Kiev, e eu tive de ir também. O mais lamentável é que sou de Donetsk, estou no Shakhtar desde os seis anos e nunca estive no Kischa Training Center. A minha idade de treinar lá haveria de chegar, mas a guerra começou...»
Trubin tinha na altura 13 anos e foi obrigado a viajar, como todos os jovens com mais de 12 anos do clube, para perto de Kiev. Para onde o clube se mudou.
«Foi um período extremamente difícil. A minha mãe teve dificuldades em sair de Donetsk e apenas em dezembro de 2020 consegui que ela e minha irmã fossem viver comigo para Kiev. Não foi fácil. Avó, avô, tios, tias e o irmão mais novo permaneceram em Donetsk. Éramos uma família que tinha vivido sempre junta e a guerra separou-nos.»
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Trubin raramente fala do pai, embora continue a saber dele. No entanto, e desde que o progenitor se separou da mãe, começou outra família e teve muito pouco contacto com o jovem. Foi a mãe, que o guarda-redes idolatra, que foi tudo na vida do jovem.
António Ferreira foi o treinador de guarda-redes que promoveu Trubin ao plantel principal do Shakhtar, quando era adjunto de Paulo Fonseca. O que lhe permitiu desenvolver com ele uma grande cumplicidade e perceber que a importância da família era evidente.
«Ele não tem a presença do pai na vida dele e por isso sempre foi o homem lá de casa. Foi obrigado a isso. Falávamos com ele quando tinha 17 anos e parecia que estávamos a falar com um homem. Havia jogadores mais velhos que não tinham aquela maturidade», conta.
«Recordo-me que só conseguiu levar a família quando assinou o primeiro contrato. Nessa altura começou a ganhar qualquer coisa e as preocupações foram apenas duas: comprar um carro, perfeitamente normal, e comprar um apartamento para trazer a mãe e a irmã para Kiev. Ele cuida muito delas. Ainda outro dia lhe perguntei se as ia levar para Lisboa. Ele disse que para já ficam em Kiev, o que eu percebo, porque é o país delas, no futuro logo se verá.»
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Nuno Campos foi adjunto de Paulo Fonseca nesse Shakhtar, que estreou um então muito jovem Trubin, e garante que a proximidade à família ajudou a moldar o guarda-redes.
«Não tenho dúvidas que as dificuldades acrescidas pela situação de guerra no Donbass fazem com que a maturidade destes miúdos cresça muito rapidamente», referiu.
«Eles lutam com todas as forças para fazer uma carreira no futebol e conseguirem dar uma vida mais segura à família. É um pouco aquele exemplo dos miúdos que têm uma necessidade extrema de singrar no futebol, o que lhes traz uma resiliência enorme.»
O que é sublinhado por Pedro Moreira, que também foi adjunto de Paulo Fonseca no Shakhtar, e mais tarde na Roma.
«Muitas destas pessoas fugiram do Donbass sozinhas e só isso já é um compromisso muito grande com o futebol. Todos eles viviam aquilo de forma muito intensa», refere.
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«Mas é complicado. Eles tiveram de sair à pressa e ir viver sozinhos, depois os pais não querem ir, ou os avós não aceitam deixar a casa de toda a vida e por causa disso os pais também não vão. São situações sociais que nós não imaginamos. Estamos a falar de um miúdo que cresceu muito depressa em todos os patamares da vida: social, desportivo, todos. Ele já é um adulto há muito tempo.»
António Ferreira conta até um pormenor curioso.
«Ele era meu vizinho, vivíamos no mesmo edifício e eu é que lhe dava boleia no regresso a casa. De manhã ia sempre com algum colega, mas no regresso após o treino, como ele ficava sempre até mais tarde a trabalhar e os colegas iam embora, vinha comigo para casa. Isto demonstra bem o nível de compromisso dele.»
Trubin queria sempre mais, e mais, e mais. Mas atenção: António Ferreira garante que não é treinar mais apenas por treinar. Pelo contrário, o jovem sabia muito bem o que procurava.
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«Se há coisa que ele gosta de fazer é de evoluir: Não é treinar muito, é evoluir muito. Preparar-se para fazer bem as coisas e fazê-las cada vez melhor.»
Mais uma vez, Pedro Moreira assina por baixo.
«Ele era aquele guarda-redes que ficava para o fim, a levar aquelas boladas no final do treino dos especialistas em bolas paradas. Era muito competitivo, não se importava nada de fazer aquele trabalho e tentava fazê-lo o melhor possível. Não queria nada sofrer golos. Era muito aplicado e tinha uma ambição muito grande de construir uma carreira fora da Ucrânia», diz.
«Lembro-me de várias fotos dele, com outros miúdos que na altura jogavam no Shakhtar, em frente à Donbass Arena. Portanto, são miúdos que vivem muito o clube e a profissão.»
O antigo adjunto de Paulo Fonseca, que na última temporada treinou o Torreense e agora aguarda por um novo projeto, vai até mais longe ao recordar Trubin.
«Aquilo que eu me recordo é que era um miúdo com uma ambição muito grande. Ele já procurava falar inglês, por exemplo.»
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O que até pode ser comprovado em várias publicações nas redes sociais em surge a estudar a língua e incentiva outros jovens, como ele, a aprender inglês para poderem evoluir.
«Já tinha ideias de desenvolver-se e uma vontade enorme de trabalhar. Nós na altura tínhamos o Pyatov, que era a grande referência da Ucrânia, e era também a época do Lunin, que saiu do Dínamo Kiev para o Real Madrid, mas nunca duvidámos que ele podia chegar longe.»
Mas como surge afinal Anatoliy Trubin?
«Isto foi obra do António Ferreira, que era o treinador de guarda-redes. Ele depois não nos acompanhou para a Roma, ficou no Shaktar com o Luís Castro, mas agora voltou a juntar-se ao Paulo Fonseca no Lille», responde Pedro Moreira.
O que obriga, claro, a passar a palavra a António Ferreira.
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«Nestes países há a paragem de inverno, tínhamos aí umas cinco semanas de férias e eu aproveitava para ver os jogos da equipa B. A deslocação de Donetsk para Kiev criou um hiato de quatro anos, mais ou menos duas gerações, sem grandes talentos para a baliza na formação. Por isso comecei a ver os sub-19 e sub-17», conta.
«Vi o Trubin e ele chamou-me de imediato a atenção. Fui pesquisar a história dele, confirmando que tinha sido capitão em todas as equipas. Estava no Shakhtar desde os seis anos e tinha uma maturidade que não era normal para a idade. Então pedi ao Paulo Fonseca para ele ir connosco para estágio na Turquia, de preparação da segunda metade da época. Nessa altura tínhamos muitos jogos de pré-temporada e decidimos colocá-lo frente ao Partizan. No final do jogo ficamos todos com água na boca. Colocámo-lo mais 45 minutos noutro jogo e gostámos da maturidade dele.»
António Ferreira diz que «havia coisas técnicas para aperfeiçoar», mas que todos ficaram «muito agradados com a postura dele nos treinos e com a maturidade».
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«Recordo-me de dizer ao Vitalyi, que era o diretor desportivo, para informar o departamento de formação que o Trubin não voltava para lá. Tanto assim que ele praticamente não jogou na equipa B: passou dos sub-19 para os séniores. No final da época fez um jogo, foi a estreia, na penúltima jornada do campeonato. Portou-se bem e até pensámos colocá-lo novamente na última jornada, mas havia a situação do outro guarda-redes que ainda não era campeão.»
Trubin tinha nessa altura 17 anos. Entretanto sai Paulo Fonseca, entra Luís Castro e António Ferreira continua a comandar o treino dos guarda-redes. Na primeira época de Luís Castro, Trubin faz sete jogos, na temporada seguinte, com 19 anos, torna-se titular absoluto.
«Ele faz uma Liga dos Campeões fantástica, sobretudo contra o Inter Milão e o Real Madrid. A estreia dele na Champions foi em Madrid, num jogo que ganhámos. Estrear-se na Liga dos Campeões com uma vitória em Madrid, frente ao Real Madrid, não é para todos.»
Essa vitória por 3-2 em Madrid ficou na história de Trubin, aliás. Como o próprio reconheceu mais tarde. O Shakhtar acabou a primeira parte a ganhar por 3-0, no segundo tempo sofreu dois golos, mas o jovem guarda-redes aguentou a vantagem até ao fim.
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«Honestamente, foi muito assustador. Só queria que o jogo acabasse o mais rápido possível. Queria muito não perder na minha estreia, mas sobretudo quando sofri os dois golos no segundo tempo tudo que eu queria era que aquilo terminasse o mais rápido possível», referiu Trubin.
Pouco tempo depois, veio o Inter Milão. Em San Siro, o Shakhtar conseguiu segurar um empate sem golos e Trubin foi eleito pela generalidade da imprensa o melhor em campo.
«Ele em Milão fez um jogo memorável. Conseguimos empatar muito devido a ele. Levou com muitos cruzamentos, com Lukakus e outros armários, e portou-se muito bem. A partir daí ficou feita a apresentação do Trubin para toda a Europa. Acho que a partir daí o futebol europeu ficou de olho nele», refere António Ferreira.
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António Ferreira regressa, de resto, ao jogo de Madrid para recordar uma história curiosa.
«Eu no início comparava-o com o Courtois e muitos jogadores chamavam-lhe Courtois. Sobretudo o Taison. Curiosamente no fim do jogo em Madrid, o Courtois esperou por ele e trocaram a camisola. No jogo seguinte, na Ucrânia, defrontámos um adversário mais fraco e perdemos. Ele ficou todos chateado e saiu logo a correr para o balneário», recorda.
«No primeiro dia da semana víamos um vídeo das intervenções dele no jogo. Eu mostrei a imagem dele a sair para o balneário e perguntei-lhe porque não tinha ficado à espera do guarda-redes adversário. O Courtois esteve imenso tempo à tua espera à entrada no túnel, até porque passámos muito tempo a festejar, no final da partida até veio chamar-te para te dar a camisola e tu agora fazes isto? Quando perdemos custa-nos muito, mas temos de estar sempre uns ao lado dos outros, porque os guarda-redes são muito atacados. A partir daí ele fazia sempre questão de, fosse qual fosse o resultado, ir cumprimentar o outro guarda-redes.»
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Trubin parece ter encaixado bem as críticas de António Ferreira. Pelo menos a avaliar por uma entrevista que deu há tempos à imprensa ucraniana, na qual elogia o português.
«Trabalhou comigo de acordo como um guarda-redes do Shakhtar deve atuar: controlar o espaço, orientar os defesas, jogar bem nas saídas dos postes e controlar a profundidade. Além disso, o António como pessoa é simpático, positivo e fala tudo na cara. Criou um ambiente familiar e harmonioso entre os guarda-redes e acho que deveria ser sempre assim», referiu.
Já Courtois continuou a ser um admirador do ucraniano, a quem fez questão de enviar um vídeo quando este foi suturado com vinte pontos na cabeça após um choque com Rudiger.
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Agora, que Trubin se prepara para regressar a Milão, onde foi tão feliz, para defrontar um clube que não há muito tempo estava fortemente interessado nele, a pergunta que se coloca é: estará o guarda-redes pronto para os exigentes desafios do Benfica?
Nuno Campos não tem dúvidas de que sim.
«Temos de ter em consideração de duas coisas. A capacidade individual e de talento, a maturidade que foi demonstrando e que fez o Benfica interessar-se por ele. Ainda é muito novo, mas já demonstra uma personalidade muito forte. Mas, por outro lado, é um jovem que vai jogar na maior competição de clubes da Europa, o que pode dar origem a um ou outro contratempo. Mas não será nunca por falta de talento», referiu.
«Ele vai seguramente ter um grande futuro pela frente. Neste momento já tem a capacidade de ser titular do Benfica, ainda agora esteve muito bem num clássico. Lá está, a idade pode provocar um ou outro contratempo, mas já se percebeu que é um grande talento.»
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António Ferreira aproveita para lembrar as viagens que fazia com ele, e que lhe permitiam ver como o miúdo era calado, mas muito seguro de si.
Um miúdo que experimentou uma vez golfe e não gostou, mas que pratica boxe para se manter em forma e trabalhar alguns movimentos de pernas que o ajudam em campo. Um miúdo, ainda, que sente muito a Guerra na Ucrânia, está sempre a unir-se a todas as iniciativas pela paz e que apoia até organizações que ajudam animais abandonados pelo conflito.
«A voz dele é muito respeitada. Ele sabe quando e como deve falar. Tem aquele aspeto sério, parece que nunca ri, demonstra a felicidade de uma forma recatada, mas é um miúdo que toda a gente adora. É impossível não nos sentimos ligados a uma pessoa assim, que se dedica tanto ao trabalho. Quase somos obrigados a adotá-lo como nosso.»
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