À sombra do bigode de Charles Miller
120 anos de história no Museu do Futebol
*Enviado-especial ao Brasil
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A memória afetiva dos adeptos, nostálgicos e fetichistas por natureza, estava há décadas a implorar por uma indústria cultural paralela que a alimentasse. Ela aí está, a cada dia mais forte, das camisolas retro à reedição de jogos míticos, passando pelos museus que puxam o lustro ao passado com ajuda da tecnologia.
A transição de piso é feita por um espaço de louvor às torcidas, onde são projectadas nas paredes, com um ruído de fundo ensurdecor, excertos de coreografias das torcidas de 29 dos principais clubes brasileiros – mais à frente, noutro espaço, haverá placares gigantes para contar a história resumida dos 120 maiores clubes do Brasil. A evocação cronológica faz-se com um fantástico acervo fotográfico, que vai contando a história do Brasil em paralelo com a história dos seus golos. Começa-se no louvor da pelada («o futebol jogado apesar do chão», na definição de Chico Buarque), avança-se pelo início do século, até à década de 40. Depois o percurso desemboca numa sala fechada, onde se ouve a voz de Arnaldo Antunes narrar, em tom sombrio, um texto chamado «silêncio». É o Maracanazo, claro, contado num curto filme a preto e branco pontuados por silêncios, e concluído, num ecrã negro, com a frase premonitória de Vinicius de Moraes: «Da morte apenas nascemos, imensamente».
É a partir daí que o museu renasce, e o Brasil com ele: as cinco conquistas de 58 a 2002, são enquadradas por fotos de época, Elvis Presley tabela com Garrincha, Kennedy lança Amarildo, Janis Joplin abre para Jairzinho, Gorbachov toca para Senna e Romário conclui. Tudo é memória, tudo é cultura, tudo é património afetivo – mesmo o salão das curiosidades estatísticas, que nos confronta com o 1,54 metros do ponta esquerda Babá, do Flamengo, o jogador mais baixo das competições oficiais no Brasil, ou os 55 bilhetes vendidos num Juventude-Portuguesa de 1997, o recorde negativo de assistências no campeonato brasileiro.
No fim de três espaços com vídeo dedicados a guarda-redes, dribles e golos (onde, por um breve frame, aparece Cristiano Ronaldo, única referência portuguesa visível no espaço) há uma biblioteca de pesquisa, a mostrar que todas estas memórias são, simultaneamente, trabalho e alimento espiritual para historiadores e sociólogos.
O museu é composto por 6,9 mil metros quadrados, distribuídos por três pisos, onde estão expostas 1400 fotos de época, mais de seis horas de vídeo e inúmeros objetos históricos. A camisola 10, de Pelé, usada na final do Mundial de 1970, está exposta como o Santo Graal, na zona mais nobre do percurso. Em tempo de Copa, o museu que nasceu ancorado ao bigode de Charles Miller começa por abrigar, no piso térreo, uma exposição temporária, dedicada à trajetória do Brasil nos 20 Mundiais em que participou – e nos 20 Mundiais que ganhou, segundo um «documentário» que brinca com a História, manipulando imagens e depoimentos para assegurar que nunca o Brasil perdeu um Mundial, de 1930 para cá. É aqui que aparecem as primeiras relíquias, como a bola da final de 1962 (Brasil-Checoslováquia, 3-1) ou a camisola azul usada por Didi, na final de 1958 – comprada às pressas num armazém sueco pelo chefe da delegação brasileira, dois dias antes da final com a Suécia, que também jogava de amarelo. Sobe-se depois ao primeiro piso, onde somos enquadrados pelos 25 anjos barrocos – ou os 25 nomes, de Bebeto a Zizinho, que ganharam estatuto de imortalidade na memória coletiva dos brasileiros. Mais à frente, alguns dos seus golos mais marcantes são descritos e comentados por personalidades da cultura – ou narrados pela rádio, em homenagem aos dias gloriosos em que o futebol tinha estática.
Depois, à saída, sob as arcadas da delicada arquitectura do Pacaembu, há um bar com ecrãns gigantes, onde dezenas de adeptos fazem render o chope, para poderem assistir aos jogos da Copa. O ciclo do tempo fecha-se aqui, porque os Mundiais são, no fundo, gigantescas máquinas de fazer memórias. Nos relvados brasileiros a máquina está a funcionar com uma energia que há muito não se lhe via. Há Suarez, o génio canibal, há Mondragon, o supremo ancião da tribo, há Balotelli, o assimilado-rejeitado, há Neymar, que aguenta nos ombros a esperança de um país gigantesco, vivendo, na definição de Nelson Rodrigues «à sombra das chuteiras imortais». E depois há Messi. É à sombra, também, mas do bigode de Charles Miller, que vejo o seu pé esquerdo construir mais um pedacinho de lenda, enquanto adeptos nigerianos deitam as mãos à cabeça, argentinos gritam em êxtase e brasileiros aplaudem, contrafeitos. Dentro de uns anos todas estas memórias estarão condensadas numa foto, ou num clip de vídeo, na sala dos Heróis. É aí que se misturam cultura, memória, história e a inevitável nostalgia do presente, o principal motor de todos os adeptos. Messi marca mais um golo, Miller cofia o bigode e tudo continua a fazer sentido.
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