Dossier Bielsa: a história do camponês que perdera tudo

A Argentina vivia o presente sem saber se iria ter futuro. O país tinha mergulhado um ano antes numa crise financeira sem igual: tinha caído na bancarrota. Os noticiários enchiam-se de imagens de violência, pilhagens, manifestações. O caos completo. O colapso financeiro de um país.

Foi neste contexto de desordem que a seleção argentina partiu para o Mundial de 2002. A população foi despedir-se de Marcelo Bielsa ao aeroporto com um slogan que ficou para a história: «Já não somos um país, mas ainda somos uma seleção.» O futebol era a última esperança da Argentina.

No entanto o campeonato que se realizou no Japão e na Coreia foi um desastre desportivo: uma vitória, um empate, uma derrota e a eliminação na primeira fase. Os jogadores choram no relvado, Bielsa não tirou os olhos do chão e as mãos da cabeça. No balneário, dizem, chorou também.

Regressados à Argentina, o selecionador vem devastado. Foge do mundo e isola-se numa casa de campo em Santa Fé. Sem televisão, rádio ou telefone. Ninguém conseguia falar com ele. Durante três meses isolou-se como um monge: corria dez quilómetros, lia e pensava, pensava muito.

«Marcelo, somos teus amigos»

Mais tarde haveria de contar que acabou a reclusão quando percebeu que falava sozinho e respondia a ele próprio. Pelo meio o Olé descobriu-o. Quando viu o jornalista, Bielsa virou-lhe as costas e atirou-lhe um «deixa-me em paz». O jornal fez uma capa histórica: «Marcelo, somos teus amigos».

Nessa altura porém, o treinador não queria falar com ninguém. Mas abriu uma exceção: Sergio Vigil. Era o selecionador argentino de hóquei em patins e Marcelo Bielsa conhecera-o pouco antes do Mundial. Um dia, deixou-lhe uma mensagem no telefone: quero falar contigo, estou em tal sítio.

Sergio Vigil ficou surpreendido. Fez-se ao caminho, andou quilómetros por uma estrada de terra batida e encontrou Bielsa. «Calmo e muito introspetivo». Falaram durante horas. «Foi uma conversa muito enriquecedora que deu origem a outros contatos muito enriquecedores», conta.

Em conversa com o Maisfutebol Sergio Vigil diz que falaram «de futebol, do desporto e da vida». «Analisámos a pressão. Para ele o homem é uma máquina que vai evoluindo como ser humano. Procura a excelência em todos os valores da vida e reflete isso no futebol.»

O camponês que perdera tudo

Pelo caminho recorda uma história que já tinha contado. «Falamos durante horas. A meio pergunta-me se quero comer e diz-me para o seguir», relata. «Andámos, andámos, andámos até chegar à casa de um camponês». Uma casa muito pobre. «O homem não percebia nada de desporto ou futebol.»

«Entrámos e tinha um assado preparador para nós. Continuámos a falar e ele nem abriu a boca. No fim perguntei-lhe quem era o camponês. Era um homem que tinha encontrado a chorar quando andava a correr. A mulher fugira de casa e levara-lhe tudo. Deixou-o sozinho e sem nada em casa.»

Sergio Vigil acrescenta que a partir daí Marcelo Bielsa ia lá almoçar todos os dias.«Dava-lhe trabalho, dinheiro e breves momentos de vida», acrescenta. «A primeira vez que contei esta história, pedi desculpa a Bielsa. Ele respondeu-me que não havia problema. Mas tive de contar o episódio.»

«Foi uma experiência muito forte para mim», adianta-nos o treinador de hóquei em patins. «No mundo do futebol há muita solidariedade. Mas há pouca generosidade. A solidariedade aparece nos jornais, a generosidade não. Marcelo Bielsa é de uma generosidade sublime. Transcende o futebol.»

Depois de três meses isolado, Bielsa voltou à seleção e ganhou o ouro olímpico em 2004. «Ele é uma pessoa cognitivo-emocional. Precisa de alinhar a mente com o espírito. Foi isso que fez durante aqueles três meses.» O outro episódio, porém, ficou para sempre. Para todos.

«Quer fazer uma reportagem sobre Bielsa? Diga que ele é aquilo. Nada mais.»