O «baldas» na escola que era outro João no futebol
João Amaral saltou diretamente do Campeonato de Portugal para a Liga quase aos 25 anos e teve a estreia num jogo contra o Benfica no Estádio da Luz. O percurso de quem chegou a trabalhar numa fábrica de rótulos para garrafas de vinho
«Liga a pulso» é um espaço do Maisfutebol com relatos na primeira pessoa de jogadores que chegaram ao principal escalão do futebol português depois de terem passado por clubes semiprofissionais e/ou amadores. São histórias de vida de quem nunca desistiu de um sonho mesmo quando as portas pareciam fechar-se. (sugestões e críticas para david.j.marques@gmail.com)
João Amaral, 25 anos (jogador do V. Setúbal)
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«Qualquer bola servia. Podia ser de vólei, mais fraquinha, pequenina, de praia. O que interessava era jogar futebol com aquele sentimento de que nada mais interessava do que correr atrás de uma bola.
Desde que comecei a jogar, no Vilanovense aos 12 anos como infantil de segundo ano, que tinha o sonho de ser futebolista, de chegar um dia aos palcos onde andavam jogadores como o Luís Figo e o Rui Costa.
Houve uma fase da minha adolescência em que não tinha boas notas, não estudava e até faltava às aulas para ir jogar à bola. Lembro-me que era muito irrequieto, respondia aos professores e até cheguei a ser suspenso da escola durante três dias.
Depois atinei um bocadinho, mas no futebol sempre fui outro João. Responsável, educado, trabalhador e focado.
Quando tinha 17 anos decidi interromper os estudos por um ano e ir trabalhar para ajudar a minha mãe. A ideia era também arranjar um emprego que me permitisse continuar a jogar futebol. Fui trabalhar para uma fábrica de rótulos de garrafas de vinho no concelho de Gaia. Foram seis meses cansativos, de correria. Saía de casa às 7 da manhã, trabalhava até às 7 da noite. Depois, a minha mãe ia buscar-me e deixava-me no treino por volta das 8. Às vezes até me equipava no caminho.
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Chegava sempre meia hora atrasado aos treinos, mas o meu treinador compreendeu a situação e nessa época até fui capitão de equipa. Mesmo que estivesse cansado depois de um dia inteiro de trabalho, treinava-me sempre com toda a vontade do mundo.
Os meus primeiros dois anos no futebol sénior foram no Candal. Na primeira época estivemos na 3.ª divisão, mas acabámos por descer. Em 2012/13 fui para o Padroense, da antiga II B. De lá saí para o Mirandela. Aí soube pela primeira vez o que era estar longe da família, namorada e amigos. Escolhi o Mirandela porque sabia que era um clube que lutava para ir à fase de subida de divisão e que podia dar-me visibilidade. No ano anterior, dois ou três jogadores da equipa tinham conseguido projetar-se e sair para campeonatos profissionais.
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Durante essa época vivi numa casa com uns 12 colegas, tudo gente de fora. Dormia num quarto duplo com um colega que foi comigo do Padroense, o Nuno Paulo, uma pessoa com quem continuo a falar com regularidade. Mostrei-me e no ano a seguir tive a oportunidade de ir para o Pedras Rubras. Voltei para perto de casa e fiz metade da época lá e a outra metade na AD Oliveirense, onde terminei bem o campeonato e esperava que pudesse finalmente surgir uma oportunidade numa equipa dos escalões profissionais.
Não surgiu e voltei ao Pedras Rubras em 2015. Comecei a época algo adormecido, desmotivado. Talvez me sentisse inicialmente um pouco injustiçado por não ter tido a oportunidade que achava que tinha feito por merecer. Mas depois voltei a focar-me nos objetivos e melhorei.
Percurso
Vilanovense: desde o segundo ano de infantis até aos juniores
2010-2012: CD Candal
2012/13: Padroense
2013/14: Mirandela
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2014/15: Pedras Rubras e AD Oliveirense
2015/16: Pedras Rubras
2016-…: V. Setúbal
Em dezembro desse ano comecei a ser acompanhado pela minha atual empresa de agenciamento, a Team of Future. Fizeram-me acreditar que, com trabalho, eu ainda conseguiria chegar onde queria e têm-me ajudado muito. Para mim, os empresários não devem servir só para nos arranjarem contratos no final da época ou em dezembro. É importante que mostrem preocupação para connosco e que nos ajudem a ter estabilidade psicológica.
Pela primeira vez na história, o Pedras Rubras conseguiu ir à fase de subida, o que acabou por dar-nos mais visibilidade. Com 24 anos, sentia que já não teria muitas mais possibilidades de dar o salto. Até já tinha determinado um prazo limite para continuar a tentar chegar pelo menos a uma equipa da II Liga: no máximo, este seria o meu último ano. Não que sentisse que não tinha qualidade suficiente, mas porque o interesse da parte de clubes profissionais num jogador com 25/26 anos já não é muito: ele ainda pode evoluir, mas não lhe identificam muita margem de progressão. O futebol é como é…
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Mas nunca deixaria o futebol. Continuaria a jogar por gosto, mas teria de arranjar outro trabalho para ter a minha independência, a minha vida.
Se me perguntassem há um ano onde gostava de estar a jogar nesta época, responderia que já ficaria completamente feliz se com um contrato profissional num clube da II Liga. Isso já era o concretizar de um sonho.
Felizmente, esse sonho foi ainda melhor. Soube da parte dos meus empresário que havia gente atenta, mas nunca imaginei saltar do Campeonato de Portugal para a Liga. Até que apareceu o Vitória.
Lembro-me perfeitamente do dia em que assinei contrato. Estava de férias, na praia com a minha namorada, e o meu empresário ligou-me a pedir-me para ir rapidamente ao escritório para assinar contrato.
Troquei um contrato de palavra e com um ordenado mínimo por um profissional. Foi um dos momentos mais felizes da minha vida.
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Se a Liga é muito diferente do Campeonato de Portugal? Há diferenças grandes, sim. O futebol é muito mais intenso, mais organizado. Parece que temos mas espaço para jogar, mas é mais difícil fazer a diferença nos confrontos diretos. Temos de ser mais rápidos a pensar e a executar.
Na primeira jornada do campeonato fiquei no banco. Na segunda parte estávamos a ganhar 2-0 ao Belenenses e eles tiveram um jogador expulso. Pensava que era o contexto ideal para ser lançado, que o mister ia dar-me alguns minutos para me adaptar ao campeonato, mas isso não aconteceu.
Talvez por isso nunca pensei que pudesse ser titular na segunda jornada, e logo contra o Benfica, no primeiro jogo da época no Estádio da Luz e com 60 mil pessoas a ver. Não nego que fiquei surpreendido quando o mister disse o meu nome. Foi ali, na casa de um dos três grandes de Portugal, que tive meus primeiros minutos na Liga.
Durante anos senti que o tempo estava a passar depressa e que as coisas não estavam a acontecer. E, de repente, via-me a participar nos jogos que antes só via pela televisão. Era a vida real.
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Faço um balanço muito positivo destes primeiros meses no Vitória. Pelos resultados que temos alcançado, pelas pessoas que encontrei no balneário e pela confiança do mister Couceiro, que não teve medo de apostar num jogador que tinha acabado de chegar do Campeonato de Portugal. Não esperava jogar tantos minutos e até já fiz quatro golos, o primeiro deles contra o Arouca, que foi um momento inesquecível.
A minha vida mudou, sim, mas não deixei de ser a mesma pessoa que há seis meses via jogos de equipas da Liga pela televisão. Aquela pessoa que fez dois amigos para a vida na Escola Infante D. Henrique, no Porto, e que ainda tem um sonho por concretizar: jogar pela nossa seleção. Pode ser com 26, 28, 31 ou 35 anos. Seria o maior orgulho da minha vida.»
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