Nem de propósito: um dia isto vai correr mal
A Seleção está habituada a resolver à última, mas desta vez podia ter evitado o sofrimento. E deixar para o fim não é estratégia: é necessidade
«Ai, Portugal, Portugal Enquanto ficares à espera Ninguém te pode ajudar» (Jorge Palma)
Pois é, lá vai a Seleção definir uma coisa tão importante como a presença numa fase final de um Campeonato do Mundo num «play-off» em que é mesmo 50-50.
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Ainda não sabemos quem é o adversário, mas já sabemos que não vai ser fácil. Era melhor que fosse a Islândia ou a Roménia, seria bom evitarmos Suécia ou França, mas seja qual for o opositor dos jogos de 15 e 19 de novembro, não será fácil. Podemos passar. Podemos cair. Estamos habituados a resolver à última, mas desta vez podia ter-se mesmo evitado o sofrimento.
Bastava ganhar os dois jogos com Israel, ou cumprir a obrigação em casa com a Irlanda do Norte, desde que se tivesse vencido um dos duelos com os israelitas.
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Esperar que esse «fifty-fifty» venha sempre a correr bem não pode ser estratégia: é apenas necessidade. Até agora, tem corrido bem, mas manda a lei das probabilidades (e o bom senso, já agora) que alguma vez vá correr mal.
«Esperemos que amanhã não seja a véspera desse dia»(os habitantes da irredutível aldeia gaulesa, sobre o receio de que o céu lhes caia em cima da cabeça)
Nem mais. Astérix e Obélix não diriam melhor: esperemos mesmo que ainda não seja desta que o céu vá cair em cima da cabeça da Seleção.
Pior do que nunca se ter alguma coisa é tomar um hábito por adquirido e, de repente, perdê-lo do nosso controlo.
Os adeptos da Seleção estão na fase de correrem esse sério risco: habituaram-se a ver Portugal nos grandes palcos (oito presenças nas últimas nove grandes competições, entre fases finais de euros e mundiais, quase sempre com desempenhos muito positivos) e, mesmo com a tendência dos portugueses para a crítica fácil, encaram a perspetiva de estarmos nas fases finais das grandes competições como uma «obrigação». Algo que já fará parte da mobília.
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Ora, sabemos que não é assim. Está, aliás, bem longe de ser um dado adquirido. Portugal costuma sair-se bem nos «play-off»? Certo. Mas também é preciso ver que a Seleção Nacional não tem a qualidade competitiva dos últimos anos.
Continua a ser uma boa equipa. Continua a ter um leque interessante de grandes talentos individuais (CR7, Nani, Moutinho, Meireles). Mas a diversidade de opções e a experiência internacional das pedras nucleares não são tão grandes como eram no Euro-2004, no Mundial-2006 ou mesmo n o Euro-2008, no Mundial-2010 e no Euro-2012.
Em fase da vida nacional em que estamos fartos de ouvir dos políticos a palavra «ajustamento», também na Seleção fará sentido ajustar expetativas.
Portugal pode festejar o título de campeão do Mundo no próximo dia 13 de julho de 2014? Pode.
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Mas convenhamos que as hipóteses são muito reduzidas. Sabe a pouco responder assim, se nos lembrarmos que a Seleção foi segunda no Euro-2004, quarta no Mundial-2006, ficou nos oito primeiros no Euro-2008, nos 16 primeiros do Mundial-2010 e arranhou a chegada à final no Euro-2012. Sabe a pouco? É a vida.
Ok, acho que já deu para perceber a crítica a este fado português de se deixar para o fim.
Porque é que isto continua a acontecer? As explicações não são as mesmas, apesar do resultado teimar em repetir-se.
O futebol é pródigo em coincidências (daí ter escolhido a expressão «nem de propósito» a esta rubrica, que arranca com este texto). Mas comparar a campanha para o Mundial-2014 com os apuramentos para o Mundial-2010 e o Euro-2012, por exemplo, induzirá mais em erro do que, propriamente, nos ajudaria a tirar conclusões.
Os últimos anos foram dando sinais de alerta em relação ao valor real da Seleção Nacional. Os períodos de transição são sempre complicados.
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A Alemanha -- seleção que somou presenças nas finais de euros e mundiais nos anos 70, 80 e 90 --, sofreu violento final de ciclo em 2000 (lembram-se dos 3-0 de Sérgio Conceição, com um Portugal em gestão de opções, depois das vitórias com Inglaterra e Roménia?).
E a verdade é que, anos depois, sobretudo desde o Mundial-2006, que organizou, a Alemanha voltou a ser seleção de topo e está de novo dominante nos clubes.
Portugal tem um processo de renovação em curso. Já está a dar os seus frutos (Paulo Bento fez estrear na Seleção principal quase duas dezenas de jogadores desde que está no cargo), mas daí até voltar a ter uma seleção candidata a vencer grandes competições vai um grande passo. E exige o seu tempo.
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Se o menos visível é o que Paulo Bento já começou a fazer (e demorará o seu tempo a ter mais frutos), importante, importante, para já, é garantir o objetivo de ir ao Mundial-2014.
Para travar a ideia de que «a Seleção já não é o que era». Para manter o ciclo fantástico de presenças em fases finais (será a nona nas últimas dez, desde o Euro-1996, apenas com a exceção do Mundial-1998). E pela necessidade de arrecadar receitas e valorizar patrocinadores, já agora. Não é coisa pouca.
«Quando/ tu me vires no futebol/ estarei no campo cabeça ao sol/ a avançar pé ante pé/ para uma bola que está à espera dum pontapé/ à espera dum pénalti/que eu vou transformar para ti
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Mais do que sublinhados os perigos dessa tendência de deixar para a última, vamos então olhar para algumas coisas que nos ajudam a perceber este Portugal aos soluços (com algumas boas exibições, mas demasiadas escorregadelas em jogos de dificuldade não muito elevada) nesta fase de apuramento.
Primeira perplexidade: como é que o Portugal de Paulo Bento, que era a seleção que melhor defendia no Euro-2012, passou em poucos meses a defender tão mal?
Segunda perplexidade: como é que o Portugal de Paulo Bento, que foi a única seleção a bater-se de igual para igual com a Espanha no Euro-2012, não conseguiu ganhar a Israel e perdeu dois pontos em casa com a Irlanda do Norte?
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Sem um onze estável ao longo da qualificação (ao contrário do que sucedeu na fase final do Euro-2012), Portugal não conseguiu manter a sua identidade e acusou, sobretudo nos três jogos referidos, a falta de um fio condutor.
Mas nem tudo foram falhas e perplexidades. Na Rússia, a derrota explica-se mais com azar do que incapacidade (o empate seria mais justo e satisfaria as contas para o primeiro lugar). Na Irlanda do Norte, o «hat-trick» de CR7 fez-nos recordar que quem tem Cristiano Ronaldo pode sempre sonhar alto. O jogo em casa com a Rússia, não tendo tido exibição de encher o olho, foi competente.
Em crónica com tantas citações de letras de autores nacionais, esperemos que, daqui a oito meses, a música do Brasil-2014 se toque com tons portugueses.
Ainda é possível. No saldo de virtudes e pecados de tão acidentado apuramento, talvez até seja merecido.
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