Valha-nos San Lorenzo para ajudar a acabar com o Inferno
Geraldinos e Arquibaldos V
O melhor dos presentes para o San Lorenzo de Almagro chegou na véspera de Natal: o acordo com o Carrefour para readquirir os terrenos do Gasómetro e regressar ao bairro de Boedo. Quando em 1979 a ditadura militar de Videla expropriou os terrenos, mais tarde vendidos à cadeia francesa de supermercados, o clube foi desterrado e começou uma longa travessia do deserto que só agora parece ter fim à vista. O bairro porteño de operários da classe média, da génese da literatura social argentina, onde ecoa o tango, mas sobretudo a murga carnavalesca ficou órfão do seu emblema e Buenos Aires perdeu um pedaço da sua alma. Para atenuar a saudade, nos últimos anos o Grupo Artístico de Boedo coloriu quarteirões com quase uma centena de murais sobre os feitos do clube em mais de um século de história. Nas paredes sobressaem entre a tinta azul e vermelha desde o padre salesiano Lorenzo Massa, que em 1908 incentivou um grupo de estudantes que jogavam futebol na rua a virem para dentro do colégio e criarem o próprio clube, até ao Papa Francisco, o mais ilustre adepto do Ciclón. Há também murais sobre heróis recentes, como o ex-sportinguista Beto Acosta, ou de outras eras, como Farro, Martino e Pontoni, o Terceto de Oro que encantou Portugal numa digressão do clube nos primeiros meses de 1947. «Por cá ainda só se usavam botas com travessas de madeira. Eles traziam umas chuteiras de lona e jogavam a bola de pé para pé», contou-me o meu avô que viu no Estádio do Lima, hoje em ruínas, o San Lorenzo golear o FC Porto (9-4), três dias antes de fazer o mesmo à seleção composta por jogadores de Benfica, Sporting e Belenenses (10-4). Mas voltemos a Boedo, que graças à lei da restituição histórica, aprovada em 2012, vai resgatar as memórias do velho Gasómetro, um espaço sócio-cultural de referência onde havia até biblioteca e sala de espetáculos com três mil lugares. O novo recinto Papa Francisco, que ocupará o lugar do velho Gasómetro no número 1700 da Avenida La Plata, será uma realidade graças à mobilização dos adeptos. Durante anos eles manifestaram-se aos milhares pressionando as autoridades a aprovarem uma lei que permitisse o regresso do clube ao bairro que o viu nascer. Agora, eles garantiram metade dos 100 milhões de pesos (quase sete milhões de euros) necessários para indemnizar o Carrefour através da campanha «compra o teu metro quadrado», que convenceu até adversários, como o presidente do modesto Temperley, que se fez sócio-refundador e doou mil euros. 37 anos depois, está prestes a acabar o Inferno do San Lorenzo. Há semanas, numa exposição em Serralves do coletivo argentino Etcétera sobre a obra do malogrado artista plástico León Ferrari (que ainda pode ser vista até ao próximo domingo) assinei uma petição para acabar com o Inferno. Uma espécie sátira e homenagem a Ferrari (1920-2013), que em 2004 enfrentou acusações de blasfémia do então cardeal de Buenos Aires. Jorge Bergoglio pediu o encerramento de uma exposição no Centro Cultural Recoletas, um antigo convento, por misturar guerra e religião e, sem querer, projetou a arte de León para a fama. Bergoglio é agora o Papa Francisco e trocou Buenos Aires pelo Vaticano, onde os Etcétera querem entregar as quase 20 mil assinaturas recolhidas junto do público na Bienal de São Paulo e em Serralves.
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