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Villas-Boas vs. Mourinho: um debate com antepassados ilustres

O dérbi londrino vai retomar uma discussão com décadas, ilustrada há 20 anos por um célebre Tenerife-Sevilha.

Seja qual for o desfecho de sábado, é seguro que o dérbi de Londres entre Tottenham e Chelsea vai alimentar todo o tipo de leituras. Mais do que as divergências pessoais, os percursos de carreira de Villas-Boas e Mourinho e a forma como comunicam as suas ideias fazem com que, para grande parte dos adeptos, os dois técnicos portugueses ocupem os seus lugares em trincheiras opostas. As mesmas que alimentam a discussão ideológica no futebol há várias décadas.

Os confrontos de estilo cristalizam-se aos pares. Zubeldía e Menotti, Bilardo e Valdano, Clough e Don Revie, Liedholm e Trapattoni, Cruijff e Clemente, Mourinho e Guardiola. Os nomes variam com o tempo, os pólos que representam mantém-se inalterados: posse-transição, romantismo-pragmatismo, criatividade-organização, identidade-adaptação e por aí fora. Tudo pode resumir-se à escolha das prioridades: onde uns defendem talento e ordem, os outros privilegiam a ordem e talento. E engana-se quem pensa que as questões semânticas contam pouco no futebol.

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Na teoria e na prática, Villas-Boas escolheu o campo que tem o Barcelona atual como expoente. Fez questão de lembrá-lo, ao invocar a herança de Guardiola no maior triunfo da sua carreira, a Liga Europa de 2011. E isso, por si só, seria suficiente para pô-lo em oposição declarada a José Mourinho, justa ou injustamente transformado em símbolo de uma ideologia chamada eficácia.

Nesse sentido, as leituras sobre o primeiro duelo português na Premier League prometem, em muitos casos, ecoar as que foram feitas há 20 anos, num outro frente a frente de treinadores emigrantes, em lados opostos da barricada. Neste caso, argentinos a trabalhar em Espanha. Os seus nomes: Jorge Valdano e Carlos Bilardo. As equipas: Tenerife e Sevilha.

Antecedentes

Em 1986, Valdano era o ponta de lança da seleção que Maradona transformou em campeã do Mundo. O selecionador era Bilardo, o pragmático, filho espiritual do Estudiantes de Osvaldo Zubeldía, talvez uma das equipas mais violentas de sempre. Apesar do título mundial, Valdano sempre escolheu a trincheira de Menotti, o idealista. Uma opção acentuada pelo facto de Bilardo o deixar fora do Mundial de 1990, depois de Valdano tentar o regresso aos relvados, após uma demorada hepatite.

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O ponta de lança converteu-se em treinador, estreando-se na I divisão nessa temporada 1992/93. A mesma em que Diego Maradona, cumprida uma cura de desintoxicação, decidiu regressar ao ativo, aceitando o apelo de Carlos Bilardo para trocar a pressão insustentável de Nápoles por um Sevilha mais resignado com a sua condição de classe média.

Ainda assim, o Sevilha, com contributo importante de Maradona e Davor Suker, navegava em lugares europeus quando, a 3 de janeiro de 1993, visitou Tenerife. Do outro lado, Valdano superara um início difícil, pontuado por críticas a um «romantismo», muitas vezes interpretado como demagogia pura. Com menos dois pontos do que o Sevilha, a equipa das Canárias começava mesmo a alimentar o sonho de uma inédita qualificação para a Europa.

Na imprensa, e no banco do Sevilha, Bilardo continuava a alimentar polémicas, em especial depois de as câmaras de TV o captarem, por mais do que uma vez, a encorajar elementos da sua equipa a magoar adversários:

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Excelente a jogar o jogo mediático, Jorge Valdano ia consolidando um perfil sedutor, à custa de boas exibições e de repetidas declarações de princípios: «Jogar bem é útil, ajuda a ganhar jogos e títulos» ou «as equipas que tratam bem a bola preocupam-se com os espectadores», dizia.

Por outro lado, o novo técnico não se poupava a frases com destinatário. «Ganhar, queremos todos, mas só os medíocres não ambicionam a beleza» ou «há obscuros domadores de talentos que convertem futebolistas em funcionários», acusava. Pareciam um ataque com alvo definido, e eram mesmo: com o aproximar do jogo, Valdano tornou-se mais específico no assumir da inimizade. «Os que passam o dia a falar de luta e garra são os que têm pouco para ensinar», dizia a propósito de Bilardo, que definia como «um hiperrealista incapaz de sonhar algo».

Com mais dois pontos na tabela, e moralizado pela vitória sobre o Real Madrid, na jornada anterior, Bilardo foi contido na resposta, limitando-se a lembrar algumas vitórias «pragmáticas» do adversário para concluir: «quando o jogo aperta, a filosofia pode esperar». Os dados estavam lançados, as acusações também. A palavra passava para o relvado.

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«O inimigo número um do futebol»

Como um duelo ao pôr-do-sol, o Tenerife-Sevilha converteu-se no centro do debate ideológico que, por essa altura, estava ao rubro na Argentina. Muito mais do que um jogo de meio da tabela da Liga espanhola, era o futebol argentino a ficar em suspenso desse desfecho.

Para isso, além de Maradona e dos dois treinadores, muito contribuía o facto de o Tenerife ter como estrela o médio argentino Fernando Redondo, símbolo de uma nova geração, inteligente e agressiva. De certa forma, Redondo e Maradona projetavam em campo, invertendo-a, a oposição de estilos entre Valdano e Bilardo.

Para quem não saiba, o Tenerife ganhou. E ganhou claramente, por 3-0. Mas, no futebol, as coisas nunca são inteiramente a preto e branco: a equipa de Valdano nunca conseguiu impôr a «superioridade moral» que o seu técnico reclamava. Dois penáltis de Pizzi, um deles muito contestado, começaram a definir o sentido do jogo, definitivamente resolvido na segunda parte. Uma entrada muito dura de Redondo sobre Maradona fez com que «La Pelusa» perdesse a cabeça, exagerando nos protestos. Vê o cartão vermelho e Redondo fica em campo. O Sevilha acaba com nove, o Tenerife com dez, e Valdano ganha o jogo, mas sem provar o que pretendia.

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No final, os técnicos lançaram gasolina na fogueira: Bilardo fala em «ladrões de luva branca», revoltado com a imagem de «gentleman» cultivada por Valdano. Este responde, definindo o seu adversário como «inimigo público número um do futebol». Na Argentina, os ecos do jogo estenderam-se ao diário Clarín, que tenta encerrar três décadas de debate aceso com uma manchete definitiva: «3-0 e a acabou a discussão».

Epílogo

Claro que a discussão não acabou. Nem aí, nem nunca. Nesse ano, na segunda volta, um Sevilha muito ofensivo, mesmo sem Maradona, bateu um irreconhecível Tenerife. Mas Valdano acabou à frente de Bilardo, por um único ponto e, na estreia como treinador, deu à equipa canária uma inédita qualificação para a Taça UEFA.

Futuro treinador e dirigente do Real Madrid, Valdano continuou a ser um dos principais rostos desse combate ideológico, com frases de grande efeito que nem sempre conseguiu levar à prática. Bilardo, braço direito de um improvável selecionador Maradona, ainda ajudou a construir uma Argentina inesperadamente sedutora, que, no Mundial 2010, acabou destroçada pela Alemanha, num jogo em que mostrou tudo menos o hiperrealismo associado ao seu ideólogo.

Mais um sintoma de que nada é inteiramente preto, ou branco. Ou que, citando outro dos aforismos de Valdano, «ter razão no futebol é só uma questão de tempo». Aconteça o que acontecer em White Hart Lane, este sábado, uma coisa é certa: a discussão não acaba aqui.

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