Passaram 20 anos desde o início do Euro 2004, o mês que Portugal viveu em festa, de braços abertos e bandeiras nas janelas. Entre aquela tarde de 12 de junho no Estádio do Dragão e a final de 4 de julho na Luz que consagrou o campeão mais improvável, entre as duas derrotas de Portugal frente à Grécia que balizam aquele Campeonato da Europa, ficam memórias para sempre.

O Euro 2004, que teve como mascote um boneco simpático chamado Kinas, começou na verdade bem antes. Começou na candidatura, uma aposta institucional forte que em outubro de 1999 venceu a corrida à Espanha e a uma proposta conjunta da Áustria e Hungria. A partir daí, o país lançou-se na organização e num frenesim de construção. Um processo conturbado, que teve muitas derrapagens e deixou uma fatura pesada. Em 2005 o Tribunal de Contas estimava em mil milhões de euros os custos para o Estado, compreendendo as despesas diretas com a remodelação ou construção dos estádios, mais acessibilidades e todos os gastos de organização.

Foram quatro estádios propriedade de clubes – Luz, Dragão, Alvalade e Bessa – mais seis suportados por investimento público – Braga, Guimarães, Aveiro, Coimbra, Leiria e Algarve -, com encargos que ainda perduram. Vinte anos depois, segundo noticiou recentemente o Jornal de Notícias, as autarquias ainda têm dívidas de 22 milhões de euros, além das despesas de funcionamento e manutenção dos recintos, alguns com acordos de utilização que pesam nos municípios e outros sem utilização regular em campeonatos profissionais.

Pouco se falou sobre a fatura naquele mês em que Portugal foi o centro da Europa do futebol, casa de 16 seleções, cenário de 31 jogos e de um ambiente irrepetível. As ruas e praças coloridas pelos adeptos que, a cada jogo, chegavam aos milhares para fazer parte da festa, ecrãs gigantes a juntar gente e mais gente para partilhar aqueles momentos, a ilusão portuguesa a crescer.

Um país feito casa das estrelas do futebol europeu, de norte a sul. A França montou quartel-general em Santo Tirso, a Espanha em Braga, a Grécia em Vila do Conde. A Itália treinava no Restelo, a Inglaterra no Jamor, a Suécia ficou em Cascais, a Croácia em Coruche, a Alemanha em Almancil, no Algarve, tal como os Países Baixos. E Portugal fez sede de Alcochete, a então nova academia do Sporting.

As expectativas eram altas desde o início. Ao comando estava Luiz Felipe Scolari, que chegou com o estatuto de campeão do mundo para liderar a seleção depois do falhanço do Mundial 2002, a última grande oportunidade perdida daquela a que chamaram geração de ouro.

Sem ter de se qualificar, Portugal foi-se preparando com jogos em série, numa espécie de digressão a estrear os estádios do Euro. Scolari aproveitou para lançar novos nomes e prosseguir a renovação de gerações, num percurso que nem sempre foi animador. Ficou, por exemplo, marcado por uma derrota pesada com a Espanha, 0-3.

Mas a qualidade estava lá e a ambição também, bem como o jeito de Scolari para, apesar de decisões polémicas como a não convocação de Vítor Baía, cultivar a ideia do grupo como uma família e mobilizar o país, que aderiu em peso à sua sugestão das bandeiras à janela.

20 anos mais tarde, o Maisfutebol percorre os momentos mais altos daqueles dias, numa memória visual que começa na cerimónia de abertura. Numa tarde de muito calor do Porto, no Estádio do Dragão com um relvado feito mar, a evocar os Descobrimentos

Em campo, o primeiro choque chegou cedo, no golo do futuro benfiquista Karagounis que deixava a Grécia em vantagem. No início da segunda parte, Basinas fez o segundo, a converter um penálti cometido pelo então adolescente Cristiano Ronaldo, que tinha saído do banco ao intervalo.

Cristiano começou ali a escrever a lenda. Já nos descontos, subiu na área, depois de um canto batido por Figo, e cabeceou para o primeiro dos seus inacreditáveis 130 golos pela seleção. Os últimos dois assinados nesta terça-feira, frente à Irlanda. 20 anos depois, em vésperas do seu sexto (sim, sexto) Europeu.

Naquela tarde, não foi suficiente e a Grécia saiu mesmo do Dragão a festejar a sua primeira vitória de sempre num Campeonato da Europa. Mal sabíamos o que mais havia de vir.

Recorde aqui como o Maisfutebol relatou a abertura do Euro 2004

O Europeu português prometia. E um dos jogos cabeça de cartaz aconteceu logo na primeira jornada, a 13 de junho. França-Inglaterra, uma rivalidade histórica alimentada pelo perfil dos protagonistas. De um lado os campeões do mundo e da Europa em título, liderados por Zidane, do outro a Inglaterra rodeada de expectativa, com David Beckham e um jovem Wayne Rooney e um enorme circo mediático a fazer as delícias dos tablóides britânicos, do hotel de Linda a Velha que servia de quartel-general à seleção orientada por Sven-Goran Eriksson ao estádio.

Num ambiente fantástico no Estádio da Luz, o clássico teve a Inglaterra na frente, teve um penálti batido por Beckham e defendido por Barthez e depois teve Zidane a decidir, primeiro de livre e por fim num penálti já nos descontos. 2-1, vitória dos Bleus. No fim, passaram ambas as seleções no Grupo B, que deixou Croácia e Suíça pelo caminho.

Quanto a Portugal, já jogava tudo ao segundo jogo, frente à Rússia. Depois do desaire com a Grécia, Scolari mudou. Deu a titularidade a Deco em detrimento de Rui Costa, assumindo o meio-campo campeão da Europa com o FC Porto, a que juntou os também dragões Ricardo Carvalho e Nuno Valente, além de Miguel em vez de Paulo Ferreira na lateral direita. E Portugal venceu, um triunfo construído num primeiro golo de Maniche e confirmado por Rui Costa, saído do banco.

Foi assim o Portugal-Rússia

A 19 de junho, Aveiro assistiu a um dos grandes jogos do Euro 2004, ainda na primeira fase. Era a segunda jornada do Grupo D, de um lado estava a Holanda e do outro a República Checa, ainda lhes chamávamos assim. A Laranja vencia por 2-0 aos vinte minutos, mas depois ficou à mercê de uma reviravolta épica de uma seleção checa repleta de craques, talvez a equipa mais entusiasmante desse Europeu. O gigante Koller reduziu ainda antes da meia-hora e na segunda parte Baros e Smicer consumaram a vitória, no grupo que mandou a Alemanha mais cedo para casa, depois de dois empates e de uma derrota com os checos na última jornada.

Quando chegou o jogo com a Espanha, decisivo para o apuramento de Portugal, já o país embalava numa onda de entusiasmo, bandeiras desfraldadas nas janelas, varandas ou automóveis. Em Alvalade, Portugal apresentou-se com mais uma novidade no onze. Cristiano Ronaldo dava o passo decisivo para a afirmação. Mas veio de novo do banco, a alimentar a lenda da estrelinha de Scolari, o golo que resolveu o assunto num lance memorável, a finalização de Nuno Gomes e o passe de calcanhar de Figo a selarem o triunfo e a seduzirem os mais descrentes. O ânimo em torno da seleção crescia.

O Portugal-Espanha visto pelo Maisfutebol

Aconteceu no Grupo C, em dois palcos, a mais dramática decisão da primeira fase. À entrada para a última jornada, Dinamarca e Suécia só precisavam de um empate a dois golos para se apurarem, deixando de fora a Itália, que tinha empatado os dois primeiros jogos. No meio de muita especulação sobre uma eventual combinação nórdica, o dia da decisão chegou e, a aproximarem-se os minutos finais, a Dinamarca ia vencendo a Suécia no Bessa, enquanto em Guimarães a Itália pressionava em busca do golo da vitória. Cassano marcou mesmo no último suspiro e correu para o banco, para passar da euforia ao desespero quando soube que a Suécia tinha acabado de marcar o golo do empate. A imagem de absoluto desalento de Cassano no final, consolado pelo árbitro, ficará para sempre na memória do Europeu português.

24 de junho, o dia daquele Portugal-Inglaterra de guião perfeito, um clássico instantâneo. Do grande ambiente nas bancadas, num Estádio da Luz com maioria de adeptos britânicos, ao enorme jogo, 120 minutos frenéticos mais os penáltis para a história. O golo madrugador de Owen, o empate de Postiga, saído do banco para forçar o prolongamento. Depois o enorme golo de Rui Costa, antes de Lampard evitar que Portugal fizesse desde logo a festa. E por fim os penáltis. A primeira decisão nas grandes penalidades da história da seleção em grandes competições foi épica. Dos falhanços de Beckham e Rui Costa ao Panenka de Postiga, antes de Ricardo tirar as luvas e vestir a capa de herói, a defender o remate de Vassell e a fechar marcando ele próprio o penálti decisivo. Eterno.

Recorde aqui tudo sobre o Portugal-Inglaterra

A super favorita França também não foi capaz de sair do labirinto grego. Caiu nos quartos de final. Nesse duelo dos quartos de final em Alvalade, como em todos os jogos da Grécia até à conquista final, bastou um golo. Marcou-o Charisteas, ele mesmo. Em vez do reencontro com os Bleus depois do Euro 2000, a que já muitos faziam contas, começava a desenhar-se para Portugal novo frente a frente com a outsider Grécia. Ele aconteceria mesmo, depois de um golo de Dellas ter sido suficiente para a seleção comandada por Otto Rehaggel eliminar na meia-final outra das favoritas. Saía também de cena a República Checa, que teve em Milan Baros, com cinco golos, o melhor marcador do torneio.

Alvalade voltou a receber a seleção para a meia-final frente aos Países Baixos, que tinham eliminado a Suécia nos penáltis. Portugal era uma equipa em estado de graça e Cristiano Ronaldo começou a desenhar a vitória ainda antes da meia hora, com o seu segundo golo pela seleção. Depois, foi Maniche a selar com chave de ouro a vitória, num grande golo que a televisão não mostrou em direto, porque estava a passar uma repetição. O autogolo de Jorge Andrade fixou o resultado que levou Portugal à primeira final da sua história.

A meia-final entre Portugal e Países Baixos no Maisfutebol

Por fim, 4 de julho. A ilusão portuguesa expressa desde as primeiras horas daquele domingo no apoio esmagador à seleção. De Alcochete ao Estádio da Luz, milhares e milhares num cordão humano verde e vermelho e naquela arrepiante escolta que em cada metro do caminho transformou a viagem do autocarro num lento cortejo. A pé, a cavalo, de bicicleta, de mota, por terra, pelo rio e pelo ar, uma imensa onda espontânea a engolir a equipa.

Na Luz, a decisão começou depois de uma curta cerimónia de encerramento, sobre um chão feito calçada portuguesa e com Nelly Furtado a cantar «Força», o hino do Europeu. O resto é a história da grande desilusão portuguesa. A incapacidade para, uma vez mais, contornar a organização defensiva grega, a lesão de Miguel antes do intervalo e o minuto 57, aquele em que Charisteas saltou mais alto e cabeceou para a baliza de Ricardo.

Portugal não conseguiu dar a volta e acabou a lidar com a imensa desilusão, espelhada nas lágrimas de Cristiano Ronaldo, consolado nesta imagem por Eusébio. Mas tinha sido maior que nunca.