Semana após semana são local de romaria. São palco para os artistas e tribuna para os espectadores de um dos espetáculos que mais mexe com as gentes. Aguentam saltos, gritos, lágrimas e sorrisos, em amálgamas de emoções tão instáveis quanto uma bola que rola mais para cá ou para lá. Todos lhes reconhecem a designação, mas poucos conhecem a história da figura por detrás e é por isso que vamos em busca da Anatomia de um nome.

«Quando cheguei ao Estrela encontrei um corpo inerte, quase condenado à destruição. Quando vinha para o campo trazia galochas para vencer o lamaçal. O clube não era nada. Então, elaborei um plano de intenções e chamaram-me louco e megalómano só porque prometi que o campo haveria de ter relvado e iluminação elétrica. E que haveria de chegar à primeira divisão no futebol.»

João José da Conceição Gomes. O nome, por extenso, pode dizer pouco ao comum adepto do futebol.

Mas tudo muda de figura se o tratarmos como ficou conhecido: José Gomes. Um homem que pegou no Clube de Futebol Estrela da Amadora no fundo do futebol português e que o levou ao topo. E que, de forma natural, se tornou bandeira do clube.

Quando José Gomes proferiu as palavras que abrem este texto, em 1988, cerca de 12 anos depois de chegar à presidência, o clube da Reboleira dava os primeiros passos no principal escalão do futebol nacional. Para trás ficara uma verdadeira revolução que teve como protagonista José Gomes.

Em 1976, quando foi eleito presidente pela primeira vez, o Estrela da Amadora, fundado no dia 22 de janeiro de 1932 - ainda que só se tenha filiado na AF Lisboa em dezembro de 1940 – tinha pouco mais de 800 sócios, número que, numa dúzia de anos aumentaria para perto de 19 mil.

Agora, quando se cumprem 87 anos da fundação de um clube que se tornou mítico, e pouco depois de o Estádio José Gomes ter voltado a viver um ambiente de primeira divisão, vamos em busca da história do sócio 129 do clube. Do homem que era comerciante de joalharia e ourivesaria em part-time… e presidente do Estrela a tempo inteiro. E que foi dirigente do clube durante 23 anos, 14 dos quais como presidente.

Página de um relatório sobre o clube, em 1976, quando José Gomes chegou à presidência

O ourives que deu brilho ao Estrela

Uma revolução. Não há outra forma de nos referirmos ao que José Gomes fez no Estrela da Amadora durante os 13 anos em que foi presidente.

Para o fazer, José Gomes investiu muito do seu tempo, mas também do património. Durante anos, ouviam-se histórias de que nos primeiros tempos de presidente, era ele que levava o esquentador de sua casa para que os jogadores do clube pudessem tomar banho de água quente. Ou que falhava o pagamento das suas contas de eletricidade para pagar as do Estrela.

Histórias que corriam quase como lenda, até que… José Gomes confirmou a veracidade das mesmas.

«Tudo isso aconteceu, realmente. E coisas muito mais dramáticas que estão no segredo dos Deuses… Cheguei a gripar o meu carro a alisar o campo», confidenciou numa entrevista publicada numa revista no início da década de 90.

«Há muitos anos que sou empregado do Estrela – um empregado não remunerado e cada vez mais apaixonado. Um empregado capaz de trabalhar 18 horas seguidas pelo clube», descrevia ainda o homem que além de ter sido o presidente responsável pela remodelação total do estádio do clube, até as camisolas mudou.

«Fizemos um acordo com o Fluminense do Brasil e em nome disso deixámos de jogar com as camisolas verdes, para jogar com esta camisola tricolor», contou, revelando que as primeiras camisolas listadas do Estrela «foram oferecidas pelo presidente do Fluminense que veio cá entrega-las».

Bingo! A ideia que foi a sorte do clube

O crescimento do Estrela da Amadora pela mão de José Gomes demorou menos tempo a ver-se em termos desportivos do que de infraestruturas. Depois de ter sido eleito em 1976, conforme já foi referido, o clube subiu à terceira divisão em 1977-78 e, na seguinte, chegou à segunda.

Mas mais do que ser o próprio a elogiar os méritos da sua presidência, podemos dar a palavra a alguns dos dirigentes que pegaram no clube quando a saúde do emérito estrelista o obrigou a afastar-se.

«Uma opinião enraizada na maioria esmagadora dos estrelistas, com sentida admiração, é que o obreiro e responsável desta obra que é hoje o Estrela da Amadora, em todas as suas vertentes, dá pelo nome de José Gomes, há anos presidente da direção, agora afastado da direção por motivos de saúde», escrevia a revista Foot, no final da década de 80.

«Com uma política quase sem dinheiro, mas com muita vontade para levar por diante o seu pensamento e ideal, sempre acompanhado por estrelistas de alma e coração, gente de antes quebrar que torcer, José Gomes logrou que o Estrela chegasse àquilo que é hoje, um clube que, não sendo rico, não tem dívidas, um clube com um historial digno, que tem um passado limpo, um presente de que se orgulha e que faz com que todos sintamos que o futuro é nosso», Júlio António, dirigente do clube na altura da chegada à primeira divisão.

Numa altura em que o objetivo, concretizado durante pouco mais de uma década, era consolidar o Estrela entre os clubes maiores do futebol português.

«A meta é dar ao clube uma imagem verdadeira de grandeza, grandeza essa que tornará possível a criação de uma mística própria na qual o desejo maior seja o de ver o Estrela entre os melhores e que essa posição seja uma constante», afirmava Pedro Santos, outro dirigente à mesma publicação.

Inegável é a influência que teve a aposta de José Gomes no Bingo do Estrela, ferramenta que deu ao clube algum desafogo financeiro e que precipitou o crescimento dos estrelistas. Apesar de assumir a importância da casa de jogo, José Gomes recusava que fosse a única origem do sucesso.

«O Estrela já era grande antes do Bingo, nem sequer tenho dúvidas de que o Estrela chegaria à primeira divisão mesmo sem o bingo. Poderia era demorar mais tempo, mas era certo como o destino», declarou o presidente, pedindo que fosse reconhecido ao clube, pelo menos, o mérito da conquista da licença para concessão de um Bingo na Amadora, para o qual concorreram cinco entidades. «Batemos contra a força económicas muito fortes, contra políticos corruptos», garantiu.

Um rosto sempre presente entre os adeptos

Quem já assistiu aos jogos do Clube Desportivo Estrela, que esta época voltou a ter equipa sénior a competir e que nasceu das cinzas do Clube de Futebol Estrela da Amadora, não pôde deixar de reconhecer na bancada o rosto da bandeira maior do clube: José Gomes, pois claro.

Este ano, a Magia Tricolor, claque que também começou do zero no início da presente época, quis «marcar a diferença», ao mesmo tempo que homenageava um nome que deu tanto ao Estrela. A história é contada por Marco Fernandes, líder do grupo de adeptos.

«No início da época, um colega da claque, o Diogo Morgado, disse-me que não ia conseguir acompanhar todos os jogos do clube, mas que ele e a mulher queriam oferecer uma bandeira gigante à claque. Falámos sobre o que podíamos imprimir, se o símbolo da claque ou o do clube, mas lembrei-me do rosto do José Gomes, que era uma ideia que já tinha há algum tempo», explica.

«Uma bandeira com o símbolo do Estrela ou o da claque não teria o mesmo impacto e desta forma homenageamos um homem que deu tanto ao nosso clube e que muitos nem conheciam a cara», reforça, explicando a origem da bandeira.

Isso mesmo, se percebe em cada jogo do Estrela. «Há sempre alguém a perguntar ao colega do lado quem é o rosto na bandeira», garante, orgulhoso da ideia «simples, mas com bastante significado» que a claque colocou em prática.

Assim, já não desculpa para que alguém não conheça o rosto de José Gomes, mais um dos nomes míticos do futebol português. E o mesmo se pode dizer da história, já agora. Talvez só não corresponda inteiramente à verdade dizer que não é o símbolo do clube que está impresso naquela bandeira de de 5 por 5 metros. José Gomes é o maior símbolo do Estrela da Amadora.

Refira-se ainda que José Gomes faleceu em 1989, tendo, no ano seguinte, a autarquia da Amadora, juntamente com o Estrela da Amadora decidido batizar então Campo de Jogos João Pimenta como Estádio José Gomes.

Uma decisão que ecoa na história do futebol português.

[artigo originalmente publicado às 23h59, de 21-01-2019]

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