Há jogos que deixam marca. E jogadores que gravam o seu nome na história com uma simples jogada. Ou uma inicial. Como o gigante Z que paira ainda sobre Hampden Park, que anos antes até tinha visto a magia de Puskas e Di Stéfano em dia de recorde. A final de 2002 será sempre a do vólei de Zidane a quem a MFTOTAL dá os parabéns atrasados pelo 43 aniversário. E de pouco mais.

«Foi o melhor golo decisivo numa final que eu tenha visto, inacreditável. É tudo de que se fala quando se chega ao fim de um encontro», lembrou Steve McManaman, que entrou para o lugar de Figo nessa noite de Glasgow.

Em 2002, o Real Madrid dos galácticos está em festa. É um Real centenário. E dois anos depois da oitava persegue a nona Taça dos Clubes Campeões Europeus, agora chamada Liga. No entanto, antes de Glasgow, todos os planos de ser um ano em grande para o mundo madridista saem furados: terceiro lugar na liga e final da Copa del Rey perdida para o Depor. Toda aquela arrogância de início de época, a apontar para o triplete, esgotara-se.

Perante o fervoroso público escocês, e tendo do outro lado um resiliente Bayer Leverkusen, que na sua primeira final reage quase de imediato ao primeiro golpe dado por Raúl, parece que o eterno e sempre na moda ditado do não há duas sem três será novamente repetido.

Zizou, grande figura galáctica, está cercado pelos homens de Klaus Toppmöller. O homem que descobria espaços com roletas e uma palete grande de toques de génio não tem tempo para respirar tranquilamente. Os caminhos para a área de Butt são tormentosos.

A caminhada para Glasgow

A Liga dos Campeões teve este ano duas fases de grupos. Na primeira, o Bayer termina em segundo, atrás do Barcelona, qualificando-se à frente de Lyon e Fenerbahçe. A seguir, vence o seu grupo, eliminando Deportivo, Arsenal e Juventus. Nos quartos de final, abate o Liverpool. Nas meias, cai o Manchester United, com Alex Ferguson a ver ser-lhe negado o regresso à sua Glasgow.

Os alemães, que chegam à primeira final, vêm de um percurso mágico, depois de eliminadas das melhores equipas continentais.

Do outro lado, o Real é sempre favorito e, mesmo assim, conta com um nível um pouco inferior em alguns adversários. Vitória nos dois grupos, primeiro à frente de Roma, Lokomotiv Moscovo e Anderlecht, depois perante Panathinaikos, Sparta Praga e FC Porto. Bayern e Barcelona são derrotados, num súbito acréscimo de grau de dificuldade, nas duas fases a eliminar.

Um Real de Zidanes y Pavónes

Poucos se lembram, mas o Bayer tem jogadores de enorme qualidade: Butt, que viria a passar pelo Benfica muitos anos depois; o brasileiro Lúcio e o argentino Placente; os internacionais alemães Ballack, Schneider, Ramelow e a máquina-goleadora Ulf Kirsten; o talento turco Bastürk e ainda um jovem búlgaro de 21 anos chamado Berbatov.

O Real Madrid assenta na classe individual de Roberto Carlos, Makelele, Raúl e, claro, do português Luís Figo. O maestro é Zidane, que finalmente encontrara a posição em campo que melhor o potenciava: a 10. 

«Logo após a chegada de Zidane, tivemos de lutar para encontrar o seu lugar mais natural na equipa», lembrou Vicente Del Bosque.

O projecto de Florentino Pérez tinha trazido galáticos, que juntava a jogadores formados ou ainda em formação na cantera merengue. É um Real de Zidanes y Pavónes, em alusão ao jovem central, que em Hampden, não sairá do banco. «Éramos como os Beatles, uns miúdos a jogar no campo», recordou Figo.


Raúl mais uma vez implacável (FOTO: Reuters)

Leverkusen: da ingenuidade ao génio de Zizou

Os alemães sofrem o primeiro golo aos nove minutos, na sequência de um lançamento lateral, ainda muito perto da linha de meio-campo.

Roberto Carlos apercebe-se do desequilíbrio na defesa contrária e lança longo para Raúl, que ilude Lúcio e só tem Butt pela frente. Um toque subtil tira o guarda-redes da jogada e abre o marcador.

O central redime-se da desconcentração aos 14. Livre de Schneider sobre a esquerda, com o brasileiro a ganhar no ar a Hierro e a bater César.


O golo de Lúcio (FOTO: Reuters)  

Cai literalmente do céu, antes do intervalo, um dos melhores golos da história da competição. Roberto Carlos combina com Solari
que passe!
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e surge bem adiantado sobre a esquerda. O cruzamento em balão, aparentemente inofensivo, precipita-se sobre a área. Sozinho, numa das poucas vezes em que se esqueceram dele, Zizou acerta com dois passinhos curtos a posição em relação à bola. Lança a perna esquerda para trás e, no regresso, acerta-lhe em cheio. Zivkovic e Ballack só chegam agora, já tarde. Mágico, fabuloso, indefensável. Um golo inesquecível! 

«Acompanhei a subida do Roberto Carlos pela esquerda e depois vi o quão bom era o cruzamento. Não tirei os olhos da bola e acertei-lhe sem pensar. Foi intuição.»

Para lá de Zidane sobra Casillas

A segunda parte traz um Bayer muito ofensivo e a lesão de César aos 65 minutos, depois de um choque com Lúcio. Ao sair do aquecimento, Casillas pede que lhe cortem as mangas da camisola, e entra em campo, aos 21 anos, para o primeiro grande momento da carreira.

É ele quem sustém a avalanche germânica, emergindo como herói com três grandes defesas nos últimos suspiros da partida. «Toda a gente fala do meu golo, mas o verdadeiro herói foi Casillas, com as suas defesas», reconhece Zizou.


A festa no final, com Casillas também como herói (FOTO: Reuters)


Toppmöller, o treinador alemão, sente-se injustiçado: «O desapontamento é enorme. Nem sempre somos recompensados pelo que fazemos no futebol, e ninguém o sabe melhor do que nós depois do que fizemos e passámos aqui. Temos de procurar consolo. Fazer o que fizemos significa que conseguimos uma época muito boa, mas o que aconteceu é para nós difícil e deixa-nos um sabor muito amargo.»

Hampden Park volta a ser blanco 42 anos depois das obras-primas de Ferenc Puskas e Alfredo Di Stefano em 1960, no célebre 7-3 ao Eintracht. Pelo tempo que vai deixar os madridistas a desesperar até à Décima, conquistada em Lisboa, esse pontapé genial ainda se torna mais poético, mais saboroso na história. E por ter sido conseguido numa final eleva o internacional francês
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ou talvez apenas reforce a sua presença
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à galeria dos melhores de todos os tempos. 

FICHA DE JOGO:

Real Madrid-Bayer Leverkusen, 2-1
Final da Liga dos Campeões de 2002
Hampden Park, em Glasgow (Escócia)
Árbitro: Urs Meier (Suíça)

REAL MADRID – César (Casillas, 68); Michel Salgado, Hierro, Helguera e Roberto Carlos; Figo (McMananan, 61), Makelele (Flavio Conceição, 73) e Solari; Zidane; Raúl e Morientes Treinador: Vicente del Bosque BAYER

LEVERKUSEN – Hans-Jörg Butt; Sebescen (Ulf Kirsten, 65), Zivkovic, Lúcio (Babic, 90) e Placente; Ramelow; Schneider, Ballack e Brdaric (Berbatov, 39); Bastürk; Neuville Treinador: Klaus Toppmöller Marcadores: Raúl, 9; Lúcio, 14; Zidane, 45

Primeira parte:


Segunda parte:



Outras anatomias de um jogo:

1953: Inglaterra-Hungria, o jogo que mudou o jogo (e um país)

1958: Brasil-URSS, Garrincha, Pelé e os melhores três minutos da história​

1967: Celtic-Inter, a primeira ferida mortal infligida ao catenaccio

1970: Itália-Alemanha, o jogo do século

1973: Ajax-Bayern, o futebol nunca foi tão total

1974: RFA-RDA, o dia em que a Guerra Fria chegou ao Grande Círculo

1982: França-Alemanha, o jogão que o crime de Schumacher abafou

1986: Argentina-Alemanha, a vitória de uma nova religião

1994: Milan-Barcelona, o fim do sonho do Dream Team

1994: Leverkusen-Benfica, empate épico sentido como grande vitória

1999: Bayern-Manchester United, o melhor comeback de sempre

2004: Holanda-Rep. Checa, o futebol de ataque é isto mesmo

2004: Sporting-FC Porto, o clássico da camisola rasgada

2005: Milan-Liverpool, o fim do paradigma italiano

2005: Argentina-Espanha, a primeira página da lenda de Messi

2009: Liverpool-Real Madrid, pesadelo blanco aos pés da besta negra

2009: Chelsea-Barcelona, Ovebro vezes 4, Iniesta e o início do super-Barça​


ANATOMIA DE UM JOGO é uma rubrica de Luís Mateus (
@luismateus
 
no Twitter), que recorda grandes jogos de futebol do passado. É publicada de três em três semanas na
 
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