Testemunho recolhido por David Marques, jornalista do Maisfutebol

* Foto de capa gentilmente cedida por Ricardo Reis

«A época tinha começado com um empate 0-0 nas Pedras Salgadas. Na semana a seguir a esse jogo, fiz uma rotação num ‘meiinho’ durante um treino. O som do estalar do joelho ouviu-se na bancada. Nunca pensei que fosse muito grave, mas depois o joelho começou a inchar e fui fazer uma ressonância. Diagnóstico: rotura total do cruzado anterior direito.

Tinha 25 anos e era o guarda-redes titular do Montalegre, onde estava desde a época anterior, que acabou no início de março por causa da pandemia. Acredito que o facto de ter ficado parado muito tempo pode ter contribuído para me ter lesionado com gravidade. Ganhei algum peso, depois voltei ao peso normal, mas os joelhos ainda não estavam muito bem calibrados. Como eu, houve muitos outros jogadores que tiveram roturas de ligamentos nessa altura.

A recuperação demorou sete meses. Falhei o resto da época e tive de trabalhar duro nas férias, muitas vezes sozinho, para tentar voltar bem na época seguinte. Passei muitas manhãs no estádio a fazer reabilitação.

No final de novembro de 2021, mais de um ano depois da lesão, ia finalmente voltar. Sentia-me (mesmo) bem. Íamos ter jogo com o Fafe e nessa semana o treinador deu-me a entender – e mais tarde confirmou-me – que ia voltar nesse jogo. Nessa mesma semana voltei a lesionar-me. Da outra vez, o joelho direito; agora, o esquerdo.

Rotura do ligamento cruzado do joelho esquerdo com lesão no menisco. Nem tive tantas dores como na primeira vez, mas era mais grave. Senti-me o jogador mais azarado do Mundo. Nunca tinha tido lesões nos joelhos e, pouco mais de um ano, tinha tido duas, esta última a dias de voltar a jogar.

Depois da operação, o médico, o mesmo que me tinha operado da primeira vez, fez-me um aviso: ‘É melhor começares a pensar no que queres para a tua vida…’. Afinal de contas, já eram os dois joelhos, o que me obrigaria a ter muito cuidado. Mas aquilo nem sequer me ‘bateu’. Entrou por um ouvido e saiu por outro. Nem liguei.

Tinha pela frente muitos meses de recuperação, mas sabia que, se fizesse bem as coisas, ia dar a voltar por cima. Seria fácil deixar-me abater, mas não me passou pela cabeça desistir do futebol. Não desisto facilmente das coisas e muito menos do futebol. Quando coloco uma meta, tento sempre alcançá-la. E a meta era recuperar para voltar a jogar. Sabia que ia levar tempo, que não seria fácil, mas que ia lá com o tempo.

Sempre fui muito apoiado no Montalegre, a quem estou muito grato. Depois da primeira lesão continuaram a acreditar em mim, esperaram que eu voltasse e era o que ia acontecer naquele jogo com o Fafe. Estive dois anos lesionado e o clube nunca deixou de me pagar. Não acredito que outro clube fizesse o mesmo. Sou muito grato ao presidente Paulo Reis, que esteve sempre disponível para mim.

Depois de recuperar da segunda lesão senti-me bem, mas nunca mais voltei a jogar. Era uma realidade nova: antes da primeira lesão, sempre joguei nos clubes por onde passei e agora estava a ver os jogos do banco ou da bancada, à espera de uma oportunidade que nunca surgiu. Estava sem jogar há muitos anos e desmotivei.

No final da época passada, deram-me a escolher entre continuar a jogar ou treinar os guarda-redes do Montalegre. Decidi experimentar algo do qual também gosto e deixei de jogar. Já com a época em andamento, deixei o clube e ao fim de duas ou três semanas, em novembro de 2023, recebi um convite do Vilar de Perdizes para voltar a jogar: Vilar de Perdizes pertence ao concelho de Montalegre e há uma grande rivalidade entre os dois clubes. Mas eu ainda tinha dentro de mim o ‘bichinho’ e aceitei.

Mas não o nego: os primeiros tempos no Vilar de Perdizes custaram-me bastante. Estive parado alguns meses e foi difícil voltar e chegar a casa cansado. Mas é um cansaço bom.

Desde que cheguei, trabalhei e esperei pela minha oportunidade: chegou a 4 de fevereiro, contra o Limianos. Sentia-me bem, que podia ajudar a equipa e que esta podia ser uma semana, mas só soube que ia jogar no próprio dia, quando entrei no balneário e vi as folhas de jogo. Foi melhor assim: da outra vez, quando esperava jogar com o Fafe, correu mal.

Foi uma alegria enorme, um momento de muitas emoções descarregadas. Antes do jogo, comentei com colegas meus que sentia-me uma criança. Era como se estivesse a caminho do primeiro jogo da vida, com aquela ansiedade natural de quem já não jogava há tanto tempo: afinal de contas, foram 1.232 dias.

Mas quando o árbitro apitou para o início do jogo, a ansiedade passou. Senti-me o Nuno de antes, como se nunca tivesse parado. Perdemos o jogo, mas esse dia vai ficar guardado para sempre no meu coração. Recebi muitas mensagens, desde treinadores, alguns dos meus tempos de camadas jovens, a jogadores e dirigentes. Foram todas especiais, mas uma delas tocou-me em particular: a de um dirigente do Maria da Fonte, que superou um problema de saúde muito delicado e que me disse que nunca podemos desistir: felizmente, hoje estamos os dois bem.

Em cima, de amarelo à esquerda. Nesta equipa do Sporting estavam jogadores como Daniel Podence, Francisco Geraldes, Bruno Wilson, Cristian Ponde, Rafael Ramos, Reko Silva, Mauro Riquicho entre outros

Fui formado no Sporting, onde estive sete anos. Aprendi quase tudo lá e o que mais me fascinou em todos aqueles anos foi a importância que davam ao lado humano: mais do que formar jogadores, preocupavam-se em formar homens. Tínhamos várias diretrizes. Os treinos eram muito exigentes, exigia-se respeito máximo pelos treinadores e as notas na escola eram muito importantes: se fossem más, não jogávamos, fosse quem fosse, fosse contra quem fosse. Quando o meu pai faleceu, passei cerca de duas semanas na academia. Recebi apoio psicológico e ainda hoje sou muito grato ao Sporting por isso.

Em Alcochete, todos tínhamos a ambição de chegar ao futebol profissional. Acho que o facto de se ligar muito à altura dos guarda-redes condicionou-me. Nesses tempos, quando chegávamos aos juvenis a altura era um critério de seleção dos guarda-redes. Eu, que tenho 1,81 metros, tinha outras vantagens, como o jogo de pés, que hoje é mais valorizado, mas na altura não se ligava tanto a isso.

As lesões também me impediram de atingir outros patamares. Antes de ter a primeira lesão, estava bem. Era novo e ambicionava chegar a outros níveis. Havia treinadores que falavam comigo e que me diziam que estavam a observar-me. Acreditava que seria capaz de dar o salto para uma II Liga.

Não posso criar grandes objetivos para o futuro enquanto jogador. Ainda estou a ver como estou, mas quero jogar mais alguns anos e, se continuar assim, subir mais uns degraus.

Apesar de tudo, acho que o futebol e a vida têm sido generosos comigo. Fui pai há menos de um ano e só o facto de poder treinar com os meus colegas não tem preço. Acordo todos os dias com uma alegria enorme por poder treinar. É algo que passei a valorizar depois das lesões e ainda mais agora.

Quando estamos no futebol, o tempo passa muito rápido e, por vezes, só valorizamos o que temos quando já é tarde. E eu senti isso quando passei para treinador: a falta que o treino me fazia. Aos mais novos e mais velhos, digo que há que aproveitar cada momento, porque depois vão sentir muita falta.»