«Cartão de Memória» pretende ser um espaço semanal de opinião/recordação acerca dos mais míticos jogos internacionais do futebol português do século XXI, o tempo de existência do Maisfutebol. A ordem dos jogos não segue qualquer hierarquia, refletindo apenas a vontade do autor.

25 de Junho de 2006: Portugal-Holanda, 1-0

O Jorge era um rapaz normal com pouco jeito para o futebol. Um pouco como eu, mas eu tinha algo que me valorizava imenso: era o dono da bola. E por isso tinha o direito de fazer as equipas e começar a escolher. Primeiro os amigos, depois os que jogavam bem. Algures no processo alguém vinha segredar-me: «O Jorge não, que só dá cacete». E eu respondia: «Quero o Jorge».

O Jorge era um caceteiro. Não há outra forma de o dizer. Qualquer eufemismo barato só tira o prazer de, passados todos estes anos, recordar aquela personagem da minha escola primária. Para quase todos o Jorge era persona non grata nas peladas de recreio.

Não fintava bem, raramente marcava um golo e corria muito pouco. Resmungava muito e arranjava sempre confusão. E eu queria-o na minha equipa.

Porque um jogador que faça bem muitas coisas é um polivalente. E faz falta. Mas se o futebol fosse para tipos polivalentes, os treinadores não preferiam um especialista para cada posição. Eu queria os que marcassem muitos golos, os que fintassem toda a gente, os que corressem muito e o Jorge. Para dar cacete.

Num mundo de milhões, de trocas constantes de clubes e de contratos chorudos, o bom e velho sururu entre jogadores serve para lembrar que ainda há amor à camisola. Não é isso que os adeptos tanto pedem?

O Portugal-Holanda do Mundial 2006 é, por isso, a minha referência principal na nobre arte de dar cacet...perdão, ter amor à camisola. A «Batalha de Nuremberga». Dezasseis cartões amarelos. Quatro cartões vermelhos. Recorde em campeonatos do mundo. Uma vergonha!

Eu não achei. Para mim foi apenas um jogo entre duas equipas que queriam ganhar. Só que em vez de vingarem pelos golos que marcassem, quiseram fazer a diferença nas pernas do adversário. E nas costas. E nas camisolas. No que aparecesse à frente, no fundo.

Atenção, podia ter corrido mal. Antes dos dez minutos, a Holanda já tinha dois cartões amarelos e já tinha lesionado o Ronaldo. E Portugal a ver jogar!

O Maniche foi o primeiro a perceber as regras e a passar a palavra ao resto da equipa. Depois equilibrámos. Costinha, Deco, Figo, Petit, Nuno Valente, até o Ricardo. Scolari no banco, atento, pronto a «defender os meninos». E eles respondiam como podiam. Davam luta (em todos os sentidos).

Pelo meio o Maniche meteu uma bola na baliza do Van der Sar e no final foi o que contou. Ganhou Portugal.

Para trás, 90 minutos de um estranho Código Morse orquestrado pelo russo Valentin Ivanov que desapareceu do mapa entretanto. Com cãibras no braço, diria eu.

Portugal e Holanda tinham o mundo de olhos postos naquele retângulo verde em Nuremberga. Todo um planeta à espera de uma finta do Deco, uma arrancada do Figo, uma diagonal do Robben ou um remate venenoso do Van Persie. E eles passaram o tempo todo a dar cacete.

Eu não esquecerei aquele dia. E tenho a certeza que o Jorge também não.