O país mais rico do mundo tem uma «febre desportiva» que se prolonga há mais de uma década, mas o primeiro mundial a céu aberto, de ciclismo de estrada, que decorre até domingo em Doha, tem feito vítimas. O Qatar tem um grande plano em marcha, que já incluiu o PSG, o Barcelona, o Mundial 2022 e até direitos televisivos. O calor, porém, tem sido a principal barreira à aceitação da comunidade internacional, com relevo claro para os atletas que sofrem na pele.

O Maisfutebol conta-lhe as razões pelas quais aquele país do Médio Oriente investiu tanto no Desporto e, através da Federação Portuguesa de Ciclismo, procurou saber se os efeitos que o calor extremo está a ter nos competidores é para lá do aceitável.

As imagens brutais de ciclistas derrotados pela temperatura, aliada, obviamente, à dureza dos quilómetros, coincidem com os testemunhos.

«Ao fim de 15 minutos, já estava em sobreaquecimento, a partir desse momento, foi uma tortura», disse Tony Martin, citado pelo Deutsche Welle, após se sagrar campeão do mundo em contrarrelógio por equipas, um título ao qual juntou o individual nesta quarta-feira.

Anouska Koster, ciclista holandesa, não suportou o calor e, pura e simplesmente, caiu, derrotada pela temperatura na terça-feira. As compatriotas admitiram após o fim do contrarrelógio que o calor «é impossível». Chantal Blaak declarou: «Até os pulmões me doem!»

No site oficial, a UCI explicou que um grupo de especialistas iria avaliar diariamente a meteorologia e não descartava encurtar a distância das provas.

Resultados à parte, o médico Filipe Quintas revelou-nos que «tudo tem corrido bem até ao momento na delegação portuguesa», mas frisou que se preveniu antes de embarcar e teve de efetuar alterações.

«Foi a pedra de toque de toda esta delegação, foram tomadas medidas como mudança de alimentação, ter um maior rigor sobre o que os atletas comem e também o acondicionamento à questão ambiental, vir com alguma antecedência. Protetor solar também é importante, tudo o que seja para diminuir a temperatura é», explicou o clínico.

O ciclismo já é duro por natureza, por isso poderá haver aqui um limite para lá do que é razoável no Qatar. Filipe Quintas admite que há um debate sobre o assunto.

«Temos falado entre colegas e todas as provas que se realizem em condições para lá do que é recomendável em termos fisiológicos causa dúvidas», declarou ao Maisfutebol.

«É um tema em debate, apetecível não só nas equipas médicas como nas outras partes. Não digo que vá para lá das condições fisiológicas possíveis, mas tem de haver um trabalho mais específico e integrado do que noutras provas», considerou.

«Tenho reticências em todas as modalidades ou qualquer tipo de desporto em condições anormais, seja no Qatar ou na Finlândia. Pode ser o caso. Estamos na fronteira», acrescentou.

A «febre» que o Qatar tem pelo Desporto começou há mais de dez anos. Embora haja já outro objetivo definido, uns Jogos Olímpicos, essa «febre» terá como ponto alto o Campeonato do Mundo de futebol da FIFA.

Pela primeira vez, o organismo que tutela o futebol mundial decidiu que o Mundial se joga quando é inverno no Hemisfério Norte. Ou seja, afeta diretamente as ligas europeias.

As altas temperaturas obrigaram a essa mudança, mas Filipe Quintas acredita que os futebolistas poderão não estar tão sujeitos ao calor como os ciclistas.

«Creio que isso pode acontecer, pois as condições podem ser muito mais controladas, jogam num estádio, o ciclismo é completamente outdoor», argumentou. Antes, o clínico assumira que «a nota a reter é para se ter cuidado redobrado.»

O grande plano do Qatar

Com base no PIB e no poder de compra per capita, o Qatar é o país mais rico do mundo.

E, como já se percebeu, tem investido e de que maneira no Desporto. Não só no país, como fora dele. A organização do Mundial 2022 é o lado mais visível dessa política cuja praticabilidade começou em 2004, mas teve no ano seguinte um passo decisivo: a criação do Qatar Sport Investment (QSI).

Aquele fundo soberano foi criado numa iniciativa conjunta entre o Ministério das Finanças e o Comité Olímpico do país. É ele que está por detrás de vários investimentos, como a aquisição do PSG, o patrocínio ao Barcelona, os direitos de TV adquiridos pela Al Jazeera e até a Aldeia Olímpica de Londres foi comprada por uma subsidiária do QSI.

Desde a criação do fundo, o país já organizou mundiais de halterofilismo, voleibol (clubes), atletismo de pista coberta, natação, ciclismo. Em 2018, recebe a ginástica e em 2022, o futebol. Tem ainda alguns eventos anuais. Antes de 2005, tinha organizado um campeonato do mundo de ténis de mesa e três eventuais anuais: de ténis, golfe e motociclismo.

Com a indústria de exploração de petróleo e gás a ser responsável por cerca de 70 por cento da economia do país, os líderes do Qatar pretendem diversificá-la, conforme referiu no seu estudo o professor universitário Mahfoud Amara, de Universidade de Loughborough, Inglaterra.

O Qatar ficou em segundo no Mundial de Andebol que organizou. A equipa tinha uma série inusitada de jogadores naturalizados

O Desporto foi visto como uma plataforma para desenvolver os setores de comércio, imobiliário e turismo.

Como se disse, a estratégia passa pelo desenvolvimento interno, mas também pela expansão a outros mercados.

Na televisão, por exemplo, entrou em competição com dois dos grandes broadcasters mundiais no desporto, como a ESPN e o Canal+, através da beIn Sports.

A companhia aérea Qatar Airways, considerada uma das melhores do mundo, patrocina o Barça. Nada tem sido feito ao acaso.

Até 2011, a camisola do Barcelona era imaculada. Nunca tinha tido publicididade. Primeiro foi a Qatar Foundation, depois a companhia aérea

Dentro de portas, todos os mundiais que o país organizou na última década e todos os que vai organizar no futuro dotaram o Qatar com infraestruturas modernas, não só a nível desportivo, mas também noutras áreas.

A Aspire Zone Foundation, conhecida como a cidade desportiva de Doha, contém não só uma academia como um hospital ortopédico e especializado em medicina do Desporto. Como seria de esperar, o Qatar também importou dos maiores especialistas na matéria.

«A nível do apoio pré-hospitalar, infraestruturas e logística que têm disponível é bastante boa, e comparável com outros grandes eventos a nível mundial. Têm protocolos muito bem estabelecidos, e tratamento de atletas. Têm infraestruturas com bastante qualidade e pessoas com conhecimento. Visitei toda a estrutura de apoio pré-hospitalar e tenho elogios a tecer. Demonstram ter tudo antecipado», Filipe Quintas, ao Maisfutebol

Aquela área tem 2,5 quilómetros quadrados e foi naquela academia que se formou Mutaz Essa Barshim, o primeiro natural do Qatar a vencer uma medalha olímpica (bronze, no Salto em Altura de Londres 2012).

O Qatar não conseguiu ficar com os Jogos Olímpicos de 2020, apesar de se ter candidatado, mas espera ser concorrente em 2028 e não o esconde. Pelo contrário, torna-o público. Todos os eventos têm, de alguma maneira, servido de ensaio para isso.

Antes das conclusões, Mahfoud Amara escreveu: «No entanto, a influência do Qatar no Desporto não é bem vista por toda a gente. Alguns analistas afirmam que o investimento não pode ser explicado apenas por aspetos económicos. Argumentam que é antes um fenómeno político, resultante da globalização que permite que pequenos países periféricos, mas ricos, adquiram influência política.»

O Qatar pagou as viagens e estadias, os adeptos espanhóis foram até Doha apoiar a seleção local...que até jogou frente a Espanha no Mundial de Andebol

O facto de ser palco de eventos tão mediáticos levou também a um maior escrutínio do país. O Campeonato do Mundo da FIFA, por exemplo, ficou envolto numa tempestade de corrupção. A público vieram também as condições laborais dos emigrantes que trabalhavam na construção das estruturas e, ainda, levantaram-se questões ambientais sobre a quantidade de edifícios a serem construídos.

O Qatar tem passado, e de alguma maneira ultrapassado, essas relevantes questões. Inclusive, a falta de adeptos em alguns eventos foi contornada com o pagamento a figurantes .

Há, porém, um aspeto que o Qatar ainda não conseguiu ultrapassar: o calor que o atrapalha.